A loucura e seus encontros ao longo da Idade Clássica


”Uma das principais teses de Foucault acerca da loucura desde seu primeiro livro, Doença mental e psicologia, consistia em dizer que: “Foi numa época relativamente recente que o Ocidente concedeu à loucura um status de doença mental” (Foucault, 1975a, p.75). No início da Idade Clássica, a loucura era tida como pertencente às quimeras do mundo. Dessa maneira, podia viver entre elas, não sendo separada, a não ser quando tomava formas extremas ou perigosas. Antes do século XVIII, segundo Foucault, a experiência da loucura era bastante polimorfa, e seu confisco, em nossa época, pelo conceito de “doença” não deve nos deixar cegos em relação aos seus outros sentidos. Somente a partir do fim do século XVIII, ela passa a ser uma realidade sobre a qual é preciso agir sob a perspectiva objetivista da medicina.

Alguns comentadores insistiram no ponto de que Foucault escrevera, em a História da loucura, um livro sobre a natureza da loucura, como se ela pudesse, em sua essência ou fundamento, guardar algo. No entanto, o problema, para Foucault, nunca foi outro a não ser tentar averiguar os efeitos dos encontros e das relações que a loucura manteve em séries históricas contingentes por toda a Idade Clássica, e não apenas com a medicina em meados do século XVIII. A genealogia de Foucault consiste em pesquisar essa série de acontecimentos em que a loucura aparece entre uma enxurrada de personagens sempre pronta a navegar por águas estranhas, como stultifera navis, a perseverar por entre os vícios, libertinagens e crimes mais atrozes, ou entre as artes. É a loucura como fluxo que se encontra, por exemplo, com a Igreja e, uma vez se desterritorializando da Igreja, reterritorializa-se na medicina. Como diz Michel Serres em seu estudo sobre o livro em questão, “[...] de repente, compreende-se que não há essência da loucura a não ser a própria situação” (Serres, 1962, p.175). Para Serres, Foucault escrevera a história de uma constituição lenta, complexa e plurívoca de encontros possíveis que envolviam não somente a loucura, mas toda a desrazão. Foucault já antecipava, ainda que não à maneira de uma teoria formal, aquilo que ele iria desenvolver em Vigiar e punir, ou seja, o poder como relação. A construção da História da loucura não residia, portanto, numa seqüência de causas psicológicas, mas numa teoria das relações ou dos encontros possíveis que a loucura traçara ao longo da Idade Clássica.

É em O alienista que se pode encontrar um ressoar em relação ao esforço de Foucault, quando Machado de Assis mostra como a loucura aparece em uma outra disposição antes de seu encontro com o médico Simão Bacamarte. Segundo o narrador, “A idéia de meter os loucos na mesma casa, vivendo em comum, pareceu em si mesma um sintoma de demência, e não faltou quem o insinuasse à própria mulher do médico” (Assis, 1961, p.53). Certamente, esse conto aponta inicialmente para o tema do poder como repressão do alienista em relação à loucura; contudo, é para mais tarde mostrar o quanto esse poder definia-se por uma tensão de forças em que ele ora reprime a loucura, enclausurando-a, ora sofre seus efeitos. Percebe-se o estranhamento que causa aos personagens machadianos o enclausuramento da loucura, como se seu parentesco com a medicina não fosse estabelecido desde o início dos tempos ou se constituísse como uma finalidade. Nesse sentido, diz Foucault, é preciso escutar a história para perceber que a familiaridade rapidamente aceita entre a loucura e a medicina, presente na maioria das histórias da psiquiatria publicadas antes da História da loucura, nem sempre ocorreu e não necessariamente está fadada a ser um fim. É essa teoria da relação que poderá fornecer a Foucault os meios de seguir o curso de sua investigação acerca da legitimidade do rapto e da captura da loucura sob o jugo de doença mental.

No intuito de entender como a loucura vai aparecer entre os muros dos grandes asilos do século XVIII, em companhia da “boa consciência” dos alienistas, deve-se em primeiro lugar atentar para seus outros caminhos. Os historiadores da psiquiatria orgulham-se, ainda hoje, em mostrar que a medicina “libertou” a loucura das punições físicas que ela sofria por seus excitamentos. Eles regozijam-se também ao afirmar que a medicina liberou a loucura das correntes que a prendiam nas antigas instituições do século XVII; no entanto, esquecem-se de mostrar como ela passa a ser punida por seus erros e como vai se constituir em torno dela uma instância perpétua de julgamento: a disciplina. É preciso, contudo, um pouco mais de calma se quisermos compreender essa transição.

De acordo com Foucault, a partir do século XVII, o mundo da loucura torna-se o da exclusão. A princípio, as internações eram compartilhadas por todos que fossem considerados desprovidos não só de razão, mas também de princípios morais e sociais. Em toda a Europa, criaram-se locais destinados à internação de uma série de indivíduos bastante diferentes entre si. Nesses locais, além dos loucos, eram inseridos os mendigos, os inválidos pobres, os desempregados, os portadores de doenças venéreas, os libertinos de todos os tipos, as pessoas cuja família ou o poder real quisesse evitar o castigo público; em suma, todos aqueles que, em relação às ordens da razão, da moral e da sociedade, davam mostras de “alteração”. É com esse intuito que o governo da França cria o Hôpital Général e que, na Inglaterra, são criadas as Workhouses.

Inicialmente, essas instituições não têm relação alguma com a medicina. Ninguém é levado a esses lugares para ser tratado, ou corrigido, mas porque não pode ou não deve mais fazer parte da sociedade. Essas internações, a princípio, não colocam em questão a relação da loucura com a doença, mas as relações da sociedade consigo própria. No entanto, essa internação em que a loucura aparece entre os desatinados não dura mais de um século.

Esse mundo de pecados, crimes e erros em que a loucura está encerrada começa a se deslocar. A loucura não rompe o circuito de internamento, mas se desloca e começa a tomar distância em relação aos seus antigos irmãos. Ela encontra uma nova pátria: “deslocação pouco perceptível, tanto o internamento permanece fiel ao estilo do antigo, mas que indica que alguma coisa de essencial está acontecendo, algo que isola a loucura e começa a torná-la autônoma em relação ao desatino com o qual ela estava confusamente misturada” (Foucault, 2000a, p.384). A loucura está agora isolada e seu isolamento denuncia-a naquilo que ela tem de irredutível, de insuportável para a razão. Rompeu-se o grande envolvimento no qual estava a confusa unidade do desatino no Hospital-Geral; eis o nascimento do asilo.

Em torno da loucura, uma nova forma de visibilidade atravessada por novos enunciados e diferenciações marca o nascimento do asilo no século XVIII. O hospital-asilo deve ser a instância perpétua de julgamento: o louco tem de ser vigiado nos seus gestos, rebaixado em suas pretensões, contradito em seus delírios e ridicularizado em seus erros. Cabe ao médico impor um controle ético sobre o paciente e exercitar sobre a alma do doente suas sínteses morais. De um lado, Philippe Pinel e os demais médicos franceses tentam dar à loucura, insistentemente, uma objetividade e uma precisão dentro de uma organização que deve apresentá-la em uma verdade pura. De outro, a figura de Samuel Tuke e sua sociedade de amigos está pronta, em seu assistencialismo, a tratar os loucos em suas casas de internamento, seu Retiro.

O que de semelhante, à primeira vista, entre o asilo de Pinel e o Retiro de Tuke é seu caráter filantrópico. Locais que, segundo a dramaturgia da história psiquiátrica, não mais são jaulas do homem, mas uma espécie de república perfeita onde as relações só se estabelecem numa transparência virtuosa. No entanto, enquanto o asilo de Pinel visa curar o louco, estabilizando-o num tipo social moralmente reconhecido e aprovado, no Retiro de Tuke deve-se reproduzir a sociedade religiosa e moralista dos Quakers. “[...] onde, longe de estar protegido, ele será mantido numa eterna inquietação, incessantemente ameaçado pela Lei e pela Falta” (Foucault, 2000a, p.478). Foucault mostra como, no Retiro, o louco deve coibir-se a si próprio diante das sínteses morais dos intendentes.

O medo e as sanções inseridos nesse local dirigem-se ao louco não através de punições físicas, como no antigo internamento, salvo quando se julgar necessário, mas em discursos que devem delimitar e ressaltar a região de sua responsabilidade. O Retiro de Tuke liberta a loucura de suas correntes. Mas que nova disposição é essa em que a loucura é atravessada por um poder incorpóreo? As forças de coação devem se inserir de diversas formas: o trabalho vem em primeira linha nesse tratamento, juntamente ao olhar do alienista, que deve vigiar a “autocontenção” do louco. É nesse ambiente que o louco se atribui a culpabilidade de sua desrazão: passagem de um mundo de pura reclusão e reprovação para o de julgamento.

A proposta asilar de Pinel, ao contrário do Retiro de Tuke, deve ser um “domínio religioso, sem religião, domínio da moral pura, da uniformização ética” (ibid., p.487). Essas casas de internamento, que traziam consigo ainda os limites dos antigos leprosários, aparecem, no século XVIII, como uma continuidade da moral social. Os valores da família, do trabalho e das virtudes em geral são encontrados nos asilos, onde se tem por objetivo o reino homogêneo da moral. Tuke propunha uma segregação religiosa com fins de purificação espiritual; para Pinel, é necessário instaurar um movimento disciplinar, neutro, caro à vida social burguesa da época. devem ser apagadas ou corrigidas, através de sínteses morais, as alienações que nascem na fronteira ou nos limites da vida social. O trabalho dos vigilantes e dos médicos seria fazer cumprir essas sínteses, que não visam mais diretamente os corpos, mas as almas dos alienados e dos que vivem à margem.

O personagem do médico é o ponto central para o qual devem convergir as obras de Pinel e de Tuke. É ele que deve julgar, em seus enunciados, os que ficam e os que saem dos asilos. Esse personagem limita a loucura não por conhecê-la, mas porque a domina. Ele exerce sua autoridade sobre o mundo asilar, na medida em que seu papel deve ser o de representar o pai e o juiz, a família e a lei. Foucault nos mostra como o espaço fechado do internamento deve servir de suporte para análise da tecnologia de poder disciplinar que envolve não apenas a loucura, mas todo o espaço social. Essa problematização dos espaços, das margens e das delimitações extensivas, que se desenrola por toda a História da loucura, diz respeito ao esforço de Foucault em mostrar os efeitos repressivos desse poder que exila, discrimina e cerca.

Trata-se de um poder que aparece não apenas exercido sobre o corpo do louco, mas também nos mecanismos de dominação da alma dos que são vigiados, treinados e corrigidos. Isso se aplica desde as crianças e os escolares, até os colonizados e os que são fixados a um aparelho de produção e controlados durante toda a existência. Contudo será preciso esperar Vigiar e punir para entender como o estudo do poder em sua forma de codificação repressiva atendia apenas a uma das faces do confinamento asilar. Em uma entrevista, Foucault dirá:

Quando escrevi a História da Loucura usei, pelo menos implicitamente, esta noção de repressão. Acredito que então supunha uma espécie de loucura viva, volúvel e ansiosa que a mecânica do poder tinha reduzido ao silêncio. Ora, me parece que a noção de repressão é totalmente inadequada para dar conta do que existe justamente de produto no poder. Quando se definem os efeitos do poder pela repressão, tem-se uma concepção puramente jurídica deste mesmo poder; identifica-se o poder a uma lei que diz não. Ora, creio ser esta uma noção negativa, estreita e esquelética do poder que curiosamente todo mundo aceitou. Se o poder fosse somente repressivo, se não fizesse outra coisa a não ser dizer não, você acredita que seria obedecido? O que faz com que o poder se mantenha e que seja aceito é simplesmente que ele não pesa só como uma força que diz não, mas que de fato ele permeia, produz coisas, induz ao prazer, forma saber, produz discurso (Foucault, 1979, p.7-8).

Faz-se necessário, portanto, recorrer às análises de Vigiar e punir para compreender como Foucault desenvolverá uma nova concepção de poder. Um poder que, para além do caráter repressivo, deve constituir uma produtividade através dos meios de confinamento que formam o corpus social. Foucault deu o nome de disciplina a esse novo movimento sobre o corpus. Pode-se, então, realizar uma outra leitura do movimento asilar no século XVIII, segundo essa nova concepção de poder.

Vigiar e punir
inaugura uma outra teoria do poder em seu envolvimento com os corpos e as almas. De acordo com Foucault, as teorias tradicionais do poder o encaravam ora como propriedade conquistada por uma classe, ora como poder de Estado. Nesses dois casos, o poder deveria ser tomado como puramente repressivo.

François Ewald nos esclarece a esse respeito:
Toda uma tradição falou do poder procurando sua origem (Rosseau), suas condições ou causas (Marx-Engels), reduzindo-o a outra coisa à luta de classes, por exemplo fazendo dele um efeito, um produto ou uma superestrutura. Como se o poder devesse sempre ser explicado, interpretado, como se tivesse um sentido inscrito no ser ou na história; dependia de quem determinasse da melhor maneira esse sentido ou essa natureza do poder (Châtelet, 1993, p.365).

Foucault, no entanto, apresenta o poder como estratégia. Os efeitos desse poder não devem ser, portanto, atribuídos a uma “apropriação”, mas a disposições, manobras, táticas, técnicas e funcionamentos. O poder não possui homogeneidade, ele passa por diversos pontos singulares, define-se por singularidade: “o poder se exerce mais do que se possui, não é privilégio adquirido ou conservado da classe dominante, mas o efeito de conjunto de suas posições estratégicas” (Foucault, 1987, p.26).

Esse modo funcional de encarar o poder não nega a existência de classes ou mesmo de suas lutas, mas as insere, segundo Deleuze, “num quadro totalmente diferente, com outras paisagens, outros personagens, outros procedimentos, diferentes desses com os quais nos acostumou a história, inclusive a marxista” (Deleuze, 1988, p.35). A pergunta a ser feita sobre o poder não é o de sua natureza, mas como ele se exerce, como se forma e por que está em toda parte.

Foucault mostra que o próprio aparelho de Estado aparece como efeito ou resultante de uma multiplicidade de engrenagens que se situam num nível bem diferente do estatal. É o poder que se rebate sobre um plano extensivo, isto é, ele deve estar em todos os lugares sem, contudo, se fixar a um aparelho de Estado, sujeito ou classe. Seu aparecimento se dá segundo sua funcionalidade em suas relações de força nos corpos e nas almas. Deve-se, portanto, abandonar as perguntas clássicas: “Por que alguns querem dominar?”, “O que procuram?” e “Qual sua estratégia?”. Em outros termos, o poder não deve ser representado pela forma de indivíduos, no entanto, ele passa por eles: “o poder passa pelos indivíduos que ele mesmo constituiu” (Foucault, 1979, p.184).

Em uma expressão, François Châtelet (1983, p.673-683) soube resumir o intuito inovador de Foucault em relação ao funcionamento do saber e do poder: “o poder como exercício e o saber como regulamentação”. Se o poder como estratégia se dirige aos corpos, os saberes, por sua vez, devem servir de regulamentação para o exercício desse poder. Realizar uma microfísica do poder significa, portanto, entender como é possível através de mecanismos e processos, sujeitar um corpo, dirigir seus gestos e reger seus comportamentos. A esse respeito, acrescenta Ewald:

É preciso reconsiderar completamente a oposição da matéria e do espírito, do corpo e da alma, do idealismo e do materialismo. Nas relações de poder, não existe jamais nada além de corpos, confronto de corpos, e o próprio pensamento não escapa a essa física universal, seja quando funciona como instrumento da tomada do poder sobre os corpos, seja quando for seu efeito. O pensamento se dirige sempre ao corpo, talvez mesmo lhe dê corpo, é uma maneira de ser, para um corpo, indispensável
(Ewald apud Châtelet, 1993, p.373).

Antes de entrar em seus estudos detalhados sobre os meios de confinamento disciplinar, Foucault retrocede até um modelo não muito distante de nós, o das sociedades de soberania. O importante, ao estudar esse modelo, é mostrar o quanto nossas engrenagens punitivas já se diferenciaram em termos de objetivos e funções.

Ao analisar a ostentação dos suplícios, Foucault mostrará que são verdadeiras peças teatrais erigidas por um poder soberano para apontar a culpabilidade de um indivíduo e sua afronta perante o príncipe. Foucault usa a definição clássica de suplício como uma arte quantitativa de sofrimento regulado sobre um corpo. Um processo que deve servir para produzir e reproduzir a verdade do crime.

Nesse teatro penal, se cada um dos atores desempenha bem seu papel, a cena adquire a eficácia de uma longa confissão pública. Essa máquina de produzir a verdade sobre um acusado a céu aberto, através de um sofrimento do corpo, busca salvar a alma ou abreviadamente lhe apresentar uma centelha do teatro do inferno. A punição tem a função de restituir o poder do príncipe, pois o crime ataca não somente uma vítima imediata, mas fere também os poderes do soberano “ataca-o pessoalmente, pois a lei vale como a vontade do soberano; ataca-o fisicamente, pois a força da lei é a força do príncipe” (Foucault, 1987b, p.41). O teatro de suplícios tem, portanto, uma função jurídico-política importante, ele é um cerimonial que deve recompor o poder soberano que fora ameaçado, ainda que por um breve instante.

A mecânica do poder soberano se exercia diretamente sobre os corpos através de sanções físicas. No entanto, quais são os inimigos que ameaçam esse poder e que forças podem se insurgir contra ele? Na ausência de uma vigilância ininterrupta sobre a ação dessas forças, fez-se necessário, para a manutenção desse poder, realizar um cenário particular de dor e sofrimento. Apesar da eficácia dessas técnicas punitivas, os séculos XVIII e XIX não as conhecem, salvo raros casos. O povo, um dos principais personagens que deveria dar o reconhecimento próprio a esse ritual, confere-lhe, a cada dia, um estatuto de reprodução cruel do crime que fora cometido. A cena ganha para o povo um caráter negativo. Passa-se a suspeitar que o cerimonial dos suplícios, que dava uma solução final aos crimes, mantinha com ele afinidades. Muitas vezes, os carrascos e os juízes podiam ser confundidos com o criminoso por sua ferocidade em aplicar a punição. “A execução pública é vista então como uma fornalha em que se acende a violência” (Foucault, 1987b, p.13). Percebe-se uma inversão de papéis, tal a ambigüidade com que se apresenta essa cena. O Iluminismo, os humanistas e os juristas lentamente lhe conferem o caráter de atrocidade. Por toda parte surgem novas forças prontas a exigir uma reforma. As visibilidades e luminosidades da punição devem ganhar um novo espaço. O suplício, aos poucos, perde sua funcionalidade e dá lugar a novos mecanismos. A punição deixa, então, o campo da percepção a céu aberto para entrar em um novo mundo de abstrações. Adota-se uma nova política em relação às sanções aplicadas sobre a sociedade. Elas devem tornar-se imanentes ao corpo social, nas palavras de Foucault: “não punir menos, mas punir melhor; punir talvez com uma severidade atenuada, mas para punir com mais universalidade e necessidade; inserir mais profundamente no corpo social o poder de punir” (Foucault, 1987b, p.70). Percebe-se aí, curiosamente, não um ato de sensibilidade, mas, talvez, um outro meio de se lidar com as ilegalidades.

Na sociedade de soberania, decidia-se sobre a vida ou a morte de um corpo supliciado. O modelo que lhe sucede, preocupa-se em gerir a vida mais do que decidir sobre a morte. Faz-se necessário, para todo um “novo” sistema judiciário e para a sociedade em geral, corrigir, reeducar e curar aqueles que cometem faltas agora não mais contra o soberano, mas contra toda a sociedade: “o direito de punir deslocou-se da vingança do soberano à defesa da sociedade” (Foucault, 1987b, p.76). A captura do louco é realizada então em nome da coletividade. A ameaça ou real agitação da ordem pública dá às autoridades o direito do seqüestro.

Para além de qualquer discussão acerca da real sensibilidade que se instaura por parte dos reformadores em função de suas sanções, o que nos importa é tentar entender o lugar que essas sanções ocupam nos mecanismos de uma nova política em relação aos movimentos aberrantes do corpo e da alma que vão aparecer a partir do século XVIII.

É nessa nova ambientação de gerência da vida que encontraremos o lugar próprio da loucura, caro aos alienistas do século XVIII, e é nesse mesmo espaço que ela se encontrará até que se possa realizar com o louco, ou ao menos com uma parte deles (os neuróticos), uma relação contratual que implique uma outra codificação."

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Fonte:
Pedro Fraga dos Santos: "Dispositivos e diagramas na filosofia de Michel Foucault". (Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UERJ como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Filosofia. Orientadora: Prof. Dr. James Bastos. UERJ – Universidade do Estado do Rio de Janeiro - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas Programa de Pós-Graduação em Filosofia). Rio de Janeiro, 2007.

Nota
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As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Disponível digitalmente no site: Domínio Público

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