Machado de Assis e o Realismo



“O Rio de Janeiro, capital do império na época, era o centro do país, e conseqüentemente o grande pólo intelectual do Brasil. Machado de Assis, que ali vivia, era um arguto observador da realidade de um modo geral. Tanto da realidade política e social brasileira, como também do ser humano e de seus anseios mais secretos, de suas ações e suas atitudes. Como observador psicológico, Machado, através de seu narrador, pode também acompanhar crises, angústias e as mudanças pelas quais passava esse homem no Brasil do segundo reinado. Foi de fato o pioneiro, o grande renovador de nossa Literatura em um sentido amplo. Tanto no campo psicológico como no campo da linguagem e da composição em geral. Transcreveremos a seguir, uma reflexão de Antônio Cândido, que é um dos maiores estudiosos deste período, e que sintetizará bem esta nossa definição.

Se voltarmos, porém as vistas para Machado de Assis, veremos que esse mestre admirável se embebeu meticulosamente na obra dos predecessores. A sua linha evolutiva mostra o escritor altamente consciente, que compreendeu o que havia de certo, de definitivo, na orientação de Macedo para a descrição de costumes, no realismo sadio e colorido de Manuel Antônio, na vocação analítica de José de Alencar. Ele pressupõe a existência dos predecessores, e esta é uma das razões da sua grandeza; numa literatura em que, a cada geração, os melhores recomeçam da capo e só os medíocres continuam o passado, ele aplicou o seu gênio em assimilar, aprofundar, fecundar o legado positivo das experiências anteriores. Este é o segredo da sua independência em relação aos contemporâneos europeus, do seu alheamento às modas literárias de Portugal e França. Esta, a razão de não terem muitos críticos sabido onde classificá-lo
. ( CÂNDIDO,1975, p.117 )

Como escolhemos José de Alencar e suas obras mais representativas como modelo de Romantismo para facilitar a explicação sobre esse período, elegemos a segunda fase de Machado de Assis, embora o seu realismo seja de certo modo diferente, para comentar o período Realista. Dentre as personagens mais significativas do autor, podemos citar Virgilia, (Memórias Póstumas de Brás Cubas) com sua falta de pudor e sua tendência nata para o adultério. Sofia, (Quincas Borba) e sua infidelidade e ambição desmedida. Porém, nos ateremos àquela que foi sem dúvida, a mais instigante e um dos símbolos da dissimulação e da sagacidade realista machadiana: Capitu. (Dom Casmurro) Nessa obra singular, revelando traços marcantes da psicologia feminina, como por exemplo, a capacidade de dissimulação aprestada por Capitu, o autor contribuiu muito para fortalecer uma personagem com características realistas e bem ao estilo machadiano.

A importância de Machado de Assis e suas personagens na vida literária brasileira não encontra paralelo, pela qualidade e abundância de sua obra e pelo caráter inconfundível de Machado como escritor que atravessou incólume todos os movimentos e escolas, constituindo um mundo à parte, um estilo composto de técnicas precisas e eficazes, e uma galeria de tipos absolutamente realizados e convincentes.

A obra de Machado de Assis revela muita independência com relação aos estilos e modas literárias de seu tempo. A existência dele cruzou com várias tendências artísticas da vida brasileira: Romantismo,Realismo, Naturalismo, Impressionismo, Parnasianismo, Simbolismo. Ele contribuiu para a formação de quase todas essas tendências, mas não se filiou com exclusividade a nenhuma em especial, extraindo delas apenas o indispensável para a criação de seu próprio estilo.
( TEIXEIRA, 1998, p..3 )

Sua arte se distancia muito dos excessos sentimentais do Romantismo e da frieza do Naturalismo; em Machado se destaca a capacidade de fazer objetos perfeitos, aptos a provocar no espectador aquela suspensão admirativa e essa espécie de sabor particular que o espírito encontra nas obras do espírito.

Um aspecto interessante é sua visão amarga e melancólica, dominada por mágoas e ressentimentos. Sem dúvida, é lícito afirmar que, filtrada pela ótica do narrador, Machado de Assis insinua que a existência humana sempre desemboca em solidão e tédio, pois tudo vai se desfazendo desde a aurora da existência humana: a graça, a beleza, a alegria juvenil dão lugar a uma existência cinza e vazia. Como é próprio da literatura realista machadiana, o propósito dos seus livros é desmascarar o ser humano, revelando o seu interior e a hipocrisia das relações sociais. Nelly Novaes Coelho nos dá uma idéia desse estilo realista adotado por Machado e que será abordado em nossa pesquisa.

A área predileta do Realismo vai ser o romance, forma literária que alcança nesse período o mais absoluto sucesso junto à crítica e ao público. [...] Preocupa-se em ser o verdadeiro retrato da sociedade, dos segredos de seus bastidores, dos seus vícios e defeitos sistematicamente denunciados para que uma outra mais perfeita e mais feliz se organize. Dentro desse objetivo essencial, portanto o romance realista vai refletir o mundo das relações humanas apreendido através de uma atitude que pretendeu ser tão científica quanto a dos homens de laboratório”.
( COELHO, 1980, p.174-175)

O Realismo tem também uma técnica e um método específico. Assim é que a precisão e a fidelidade na observação e na pintura são essenciais características realistas. Usam-se detalhes aparentemente insignificantes na pintura de personagens e ambientes. Esses detalhes devem ser reunidos e harmonizados, para dar a impressão da própria realidade. Selecionados os fatos há que se dar uma certa ordenada com propósito artístico, a fim de criar a unidade e a coesão que o realismo exige. “Se não estudou latim com o Padre Cabral, foi porque o padre, depois de lhe propor gracejando, acabou dizendo que latim não era língua de meninas. Capitu confessou me um dia que esta razão acendeu nela o desejo de o saber ”. (MACHADO DE ASSIS, 1988, p. 66 )

Apresentando uma visão amarga e pessimista da vida humana, Machado de Assis sempre se revela sarcástico e irônico na sua obra: desmascara o ser humano na sua hipocrisia e torpezas, desnudando-o nas suas entranhas; desmistifica crenças e instituições. Diferente das mocinhas nobres e idealizadas de José de Alencar, a personagem no realismo é mostrada por outro prisma. Ao apresentar o perfil de Capitu em Dom Casmurro, O narrador focaliza, em câmera lenta, a infância e a adolescência da personagem, dada a necessidade de traçar o seu perfil psicológico revelando, desde as entranhas, o seu caráter e as suas afinal, o adulto sempre se assenta no pilar da infância, como insinua Dom casmurro, no final da narrativa, ao referir-se a Capitu: “Se não lembras bem da Capitu menina, hás de reconhecer que uma estava dentro da outra, como a fruta dentro da casca”. ( MACHADO DE ASSIS, 1988, p. 88 )

Confrontando com os romances românticos, que nos passam uma visão idealizada do amor e do casamento (como o próprio romantismo), Dom Casmurro mostra o lado patético do casamento, do amor e da vida. Embora a vida humana e o casamento possam ter os seus encantos, a visão apresentada por Machado de Assis acerca de tudo isso é amarga e niilista, vista pela ótica de um narrador ressentido e magoado pelas agruras da vida. Distante do amor exacerbado, exagerado e sincero dos românticos, em que o casamento é, geralmente, uma verdadeira comunhão de amor e felicidade, em Dom Casmurro e no realismo em geral o casamento é encarado apenas como um negócio, um jogo de interesses e conveniências.

Tomando como parâmetro o modelo de romantismo e de Realismo apresentado nesse capítulo, nos embasaremos teoricamente nele, para discutirmos as características estéticas de Helena e Iaiá Garcia ao longo da pesquisa: a atitude de ambas em relação ao amor e se de fato são totalmente românticas ou se alguma delas já apresenta indícios de Realismo."

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Fonte:
MOISÉS RAIMUNDO DE SOUZA: "A personagem feminina na primeira fase machadiana : Helena e Iaiá Garcia". (Dissertação apresentada como exigência parcial para obtenção do grau de Mestre em Literatura e Crítica Literária à Comissão Julgadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob a orientação da Profª Drª Olga de Sá). São Paulo, 2007.

Nota
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A imagem (Machado de Assis e sua esposa Carolina) inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

Disponível digitalmente no site: Domínio Público

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