A mulher desempenhando novos papéis sociais



"A mulher exercia como papel principal na sociedade a de reprodutora, de acordo com sua estrutura biológica. É justamente a maternidade que une e amarra os laços familiares, dando maior estabilidade à família enquanto célula mater da sociedade.

O capitalismo e o crescente processo de urbanização dos grandes centros começavam a pontuar uma nova sociedade na qual a mulher saía de casa mais vezes do que mencionava um antigo ditado, a saber, três vezes: para o seu batizado, para o seu casamento e para o seu enterro. Ela começava a participar de forma efetiva na sociedade como mão-de-obra. No entanto, nas classes consideradas mais abastadas, apesar do acesso à educação ser menos dificultoso, o mercado de trabalho era visto de forma desprestigiada, pois deveria restringir-se às mulheres que dele necessitavam. Só se compreendia a atitude de buscar um lugar no mercado de trabalho àquelas que passassem por dificuldades financeiras, por falta dos maridos. A própria mulher envergonhava-se de ter de declarar que dividia as despesas com os maridos, quer trabalhando fora, quer desenvolvendo atividades em casa como costura, lavagem de roupas ou fazendo quitutes. Não se deve esquecer que em Portugal, sempre levando em consideração o contexto sócio-cultural, a elite social portuguesa era formada por ex-escravocratas para quem o trabalho diminuía o prestígio do homem perante a sociedade. As mulheres mais abastadas engrossavam o coral masculino no sentido de que era real a incompatibilidade entre as atividades domésticas e o trabalho fora de casa.

O distanciamento que ocorria entre a Igreja e o Estado facilitava a saída da mulher em busca do trabalho fora do lar: a própria Igreja não possuía mais condições financeiras de arcar com as consideradas “desvalidas”. As operárias, em sua grande maioria, preocupavam-se mais com melhores condições de trabalho do que com direitos de cidadania. O comércio também as recebe como trabalhadoras. Mas é no âmbito doméstico, como não poderia deixar de ser, e na educação que a mulher descobre uma maior oportunidade de estabelecer-se. No primeiro caso, não há necessidade de qualificação, apenas o conhecimento de prendas domésticas. Já no segundo, a capacitação necessária é pequena. As aulas particulares adequavam-se tanto às necessidades delas quanto ao pensamento masculino da época: as mulheres trabalhavam mantendo-se no âmbito doméstico, quer nos seus lares, quer nos lares dos alunos. As menos qualificadas especializaram-se no mercado da moda como modistas ou esteticistas de salões de beleza.

Como cita Rosa Maria Barboza de Araújo em A Vocação do Prazer, “Apesar dos avanços, era notória a resistência masculina ao trabalho da mulher. Ela tem origem não só na esfera econômica da competição no mercado, mas também na quebra dos valores tradicionais de seu papel social, ameaçando a ordem de dominação masculina”. (1995, p. 22)

No final do século XIX e início do século XX, as oportunidades de ingresso no mundo acadêmico para a mulher eram extremamente reduzidas. Escolas estatais secundárias só permitiam, na prática, o acesso feminino após 1906. Até então, algumas moças, muito determinadas, cursavam os liceus masculinos. Não se deve esquecer que era um número insignificante, estatisticamente falando. Para a sociedade da época, o aprendizado feminino não deveria ir além das prendas domésticas, considerando-se o ensino escolar até como nocivo.

No que tange à Literatura, um novo fato começava a acontecer: as mulheres com maior grau de instrução começavam a ganhar espaço nas revistas femininas portuguesas, escrevendo artigos que discutiam a questão da educação da mulher tanto na Europa como nos Estados Unidos. Em Portugal, Maria Amália Vaz de Carvalho publica Cartas a Luísa para defender a tese de que a educação escolar feminina devia ser um direito conquistado. Como já era de se esperar, a reação masculina, contrária à escritora, veio de forma marcante e contundente para criticar a obra. Oliveira Martins, intelectual da Geração de 70, escreve que sendo a mulher doente, o que ela necessita é de médico:

(Antes) Deus era o médico da mulher: hoje o seu médico e o tutor dessa pupila eterna é o homem: o pai, o marido, o filho. Ai da mulher que não se submeter, dócil e amoravelmente, a cada um destes médicos nos períodos sucessivos da sua existência!
(ALONSO, 1997, p. 22)

Apesar da luta desigual, as mulheres foram conseguindo seu espaço dentro da Literatura, inicialmente de forma muito tímida. Foi no início do século XX que esse movimento ganhou mais intensidade. As mulheres usaram a poesia como bandeira para representar a sua luta pelo direito de conquistar espaço igual no mundo. Em Portugal, as revistas femininas publicam artigos que relatam o que pensavam as mulheres de outros lugares do mundo e também publicam suas poesias, mesmo sabendo da inevitável repercussão negativa. Em 1916, Florbela escreve para sua amiga Júlia Alves: “Mas a propósito de versos: visto que seu jornal só com cem páginas por semana poderia conter a porção de coisas boas e más que metade das mulheres de Portugal para lá envia numa febre de escritoras, literatas, poetisas e cozinheiras (...) (ALONSO, 1997, p. 209)

Em 1905, o manifesto feminista Às Mulheres Portuguesas de Ana de Castro Osório (ALONSO, 1997, p. 25) marcou o início da luta das mulheres portuguesas pelos seus direitos na vida pública. Em 1914 a criação do “Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas” veio reforçar os esforços das mulheres em sua luta; no entanto, foi com o advento da Primeira Guerra Mundial que o papel da mulher ganhou efetiva importância, devido à necessidade da utilização de seus serviços. Daí em diante, cresceu o interesse no que dizia respeito a esse novo universo: o mundo das mulheres.

As poetisas receberam especial atenção no mundo literário. Em 1917, Nuno Catarino Cardoso publica Poetisas Portuguesas, uma antologia contendo vida e obras de 106 poetisas portuguesas. Pode-se imaginar o quanto este número é significativo para a época. São mulheres de classe média e alta que tinham acesso à educação formal. Duas novidades tomam conta da sociedade: os salões literários e as poetisas. As reuniões para o chá, reunindo entretenimento e cultura, abrem espaço literário para as mulheres: é ainda no lar (espaço privado), seu lugar natural, que ela se revela como artista das letras, abrindo as portas dos salões para os saraus.

Na década de 20, cresce a popularidade das poetisas, que ganham espaço na imprensa tanto para publicações de suas produções quanto para entrevistas. No entanto, os críticos não as poupam,como por exemplo, Câmara Lima no Correio da Manhã:

Mas meu Deus, todas fazem sonetos. O soneto e a saia curta estão na moda. O pior é que todas ferem a mesma tecla, dizem a mesma coisa. O teu amor já não me serve. Vai-te embora. Vem depressa. Não posso passar sem ti. Aí tens as tuas cartas. Porque não me escreves? Nunca mais. Até amanhã. Que tortura. Que delícia. Dá cá um beijo. Some-te daqui para fora
. (ALONSO, 1997, p. 30.)

Florbela Espanca não fugiu à regra: sua primeira publicação Livro de Mágoas recebeu apenas uma crítica; já o Livro de Sóror Saudade, que foi publicado no auge do sucesso feminino – 1923 – recebeu da imprensa uma atenção especial. É importante salientar que as críticas foram, em sua maioria, favoráveis a ela, que teve seu trabalho reconhecido pela classe literata, como demonstram as críticas publicadas no Correio da Manhã, novamente, por Câmara da Lima (ALONSO, 1997,p.29): “Outra poetisa. O contingente das senhoras cresce dia a dia. Sejam sempre bem-vindas quando, como esta, saibam versejar”.

Não podia ser outro o assunto tratado pelas mulheres que não o amor, afinal, era com ele e para ele que elas viviam. Quanto à escolha da forma de soneto dado às suas poesias, é como escolher uma identidade, um rosto. Florbela destaca-se no sentido de apresentar sua poesia de maneira diferenciada das demais, o que não significa que haja aceitação imediata da crítica.

Em “Horas rubras”, falar de amor sob uma nova ótica conferiu-lhe conotação negativa, quase imoral. No Livro de Sóror Saudade o erotismo é um traço marcante e não usual em relação às demais poetisas portuguesas:
E a tua boca rubra ao pé da minha É na suavidade da tardinha Um coração ardente, palpitando... (ESPANCA, 2003, p.73)"

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Fonte:
Eliana Beatriz Moreno : "A loucura e o feminino na obra de Florbela Espanca". (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro/UERJ, para obtenção do título de Mestre em Literatura Portuguesa. Linha de pesquisa: Literatura Portuguesa e outros campos do saber. Orientadora: Profª Drª Nadiá Paulo Ferreira). Rio de Janeiro, 2007.

Nota
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A imagem (Revista Moderna, 1960 - APESP) inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Disponível digitalmente no site: Domínio Público

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