 

“Nesta  seção,  percorro  algumas  discussões  conceituais  que  me  permitem  olhar  para  a  emergência  daquilo  que  chamo,  neste  estudo,  de  “aluno-problema”.
Em  suas  discussões  sobre  os  conceitos  de  normal  e  anormal,  a  partir  dos  estudos  de  Foucault,  Márcio  Alves  da  Fonseca  (2002)  refere  que  tais conceitos estão intimamente ligados à noção de “desenvolvimento”. Essa noção emerge  das práticas  de  psiquiatrização  da infância, especialmente no século XIX. Para Fonseca (2002):
Esta  noção  permitirá  o  estabelecimento  de  uma  certa  linha  de  separação  entre  vários  tipos  de  caracteres.  Em  alguns  indivíduos, haveria uma interrupção no desenvolvimento psicológico; em outros, não  há  interrupção,  mas  apenas  uma  lentidão,  e  nenhuma  dessas situações implicaria forçosamente em loucura, em doença mental. A importância  de  tal  distinção  está  na  idéia  de  que  o  desenvolvimento não  é  algo  de  que  se é dotado  ou  de  que  se é  privado,  mas  consiste num processo que afeta a vida psicológica e orgânica do indivíduo. O desenvolvimento  seria  uma  dimensão  comum  a todos os  indivíduos, podendo  ser  mais  lento  em  alguns,  ou  mesmo  ser  interrompido  
Nas  instituições  escolares,  os  processos  disciplinares  têm  a finalidade  de  capturar  todos  os  sujeitos  que  ali  circulam,  porém  dirigem-se de  maneira  mais  intensa  a  uma  parte  do  grupo  social:  às  crianças, compreendidas,  na  perspectiva  evolutiva,  como       incompletas,  imaturas, necessitando desenvolver-se  para chegar ao ápice de  seu desenvolvimento – a condição adulta. Para ilustrar essa discussão, trago um fragmento extraído de  uma  obra  escrita  por  psiquiatras  e  psicólogos  gaúchos,  abordando  a questão do aluno-problema.
Consideramos,  no  presente  artigo,  aluno-problema  aquele  que entrava seu  desenvolvimento pessoal,  impedindo um funcionamento flexível  e  harmonioso.  [...]  O  aluno-problema  é  uma  criança-problema.  Para  o  entendimento  e  manejo  efetivo  da  integração  em sala  de  aula,  o  primeiro  passo  deve  ser  o  de  avaliar  o  grau  de comprometimento  da  criança  e  associar  o  nível  de  desempenho  do aluno  ao  momento  em  que  o  processo  de  desenvolvimento  dessa criança se viu prejudicado (FERREIRA E ARAÚJO, 1996, p. 30).
Ora, não é difícil de perceber, nesse fragmento, o entendimento que embasa  tal  obra:  a  existência  de  uma  interioridade.  O  aluno-problema  traz uma  essência  problemática,  que  é  uma  criança-problema,  o  que  barra  seu desenvolvimento,  o  processo  “natural”  a  ser  percorrido.  Esse  entendimento aponta para uma concepção evolutiva de sujeito, que vê a criança como um ser  em  desenvolvimento  e,  por  isso,  incompleta,  tendo  um  caminho normativo de crescimento a ser percorrido.
Larrosa  (1998),  ao  discutir  a  infância  e  nossas  intervenções  nela, refere que:
[...]  a  infância  é  o  outro:  o  que,  sempre  muito  além  de  qualquer tentativa  de  captura,  inquieta  a  segurança  de  nossos  saberes, questiona  o  poder  de  nossas  práticas  e  abre  um  vazio  no  qual  se abisma o edifício bem construído de nossas instituições de acolhida (p. 69).
Pensar  a  infância  como  o  outro,  aquele  que  traz  a  condição  de acontecer  e  de  escapar  aos  projetos  estabelecidos  para  ele,  cria  a possibilidade  de  vermos,  então,  o  sem-fim  de  tentativas  de  produzir conhecimentos, de estabelecer procedimentos, pedagógicos ou não, para que se atinja a criança idealizada – satisfeita, quietinha, aprendente, interessada, dócil, “normal” – pelo olhar dos adultos. Se, por um lado, os entendimentos, as  práticas,  os  métodos  extraídos e  direcionados  à  infância  transformaram-se em tentativas de capturá-la e fabricá-la, por outro, a infância permanece  sendo  aquilo  que  nos  escapa,  que  é  diferente  dos  adultos,  que  não compreendemos  totalmente,  que  não  atingimos  adequadamente,  não domesticamos  como  gostaríamos.  Algo  na  criança  sempre  foge  do  ideal projetado pelo adulto. Para Larrosa (1998):
A infância como algo outro não é o objeto (ou objetivo) do saber, mas o que escapa a qualquer objetivação e o que desvia de todo objetivo; não  é  o  ponto  de  ancoragem  do  poder, mas  o  que  marca  sua  linha de despenhadeiro, seu limite exterior, sua absoluta impotência; não é o que está presente em nossas instituições, mas o que permanece ausente, inabarcável, brilhando sempre fora dos seus limites (p. 70).
Nesse  sentido,  a  alteridade  da  infância  torna  sua  presença  um enigma  que  não  conseguimos  decifrar:  algo  que  diz  da  sua  absoluta diferença  e  heterogeneidade  em  relação  a  nós  e  ao  nosso  mundo.  Assim, pensar a infância numa outra direção exigiria olhar aquilo que nos escapa e inquieta,  interrogar  o  que  supomos  saber  e  como  agimos  em  relação  a  ela, questionando  as  verdades  e  os  lugares  construídos  sobre  e  para  ela (LARROSA,  1998).  Isso  exige  dar  lugar  à  presença  da  infância  enquanto mistério,  aquilo  que  é  difícil  de  compreender  e  problematizar  em  nossas formas de escutar, de agir e de receber as crianças.
A  presença,  nas  escolas,  de  indivíduos  cujos  ritmos  e comportamentos  não  correspondem  aos  padrões  da  escola  e  também daqueles  que  resistem  às  práticas  disciplinares  aponta  para  a  força  da heterogeneidade  ali  presente.  No  entanto,  tais  indivíduos  são  posicionados ou  como  portadores  de  dificuldades  de  aprendizagem  (em  menor  escala), aqueles  que  não  aprendem  os  conteúdos  escolares  dentro  de  um  padrão preestabelecido, ou como portadores de desvios de conduta/comportamento (na  maioria  das  queixas  escolares),  aqueles  que  não  correspondem  às expectativas  de  como  devem  ser:  disciplinados,  racionais,  autônomos, cooperativos, dedicados, etc.
Diante  de  tal  diversidade,  as  tentativas  de  homogeneização produzem, muitas vezes, aquilo que é chamado de “fracasso escolar”: trata-se  de  sujeitos  que,  por  não  corresponderem  às  expectativas  dos pressupostos  educacionais,  são  desqualificados,  reprovados  ou  eliminados nos processos  escolares de avaliação.  Para  Deacon  e  Parker (2000), quando “aparece” o fracasso educacional:
A  reação  padrão  [...]  consiste  em  fornecer  mais  educação,  de  forma que  a  educação  se  torna  o  remédio  para  seus  próprios  males. Entretanto, as anomalias [...] surgem, proliferam e são reforçadas, ao invés  de  serem  superadas,  como  a  educação  proclama.  A  educação está  planejada  para  fracassar;  ela  produz  necessidades  e  sujeitos necessitados, a fim de justificar sua própria necessidade (p.105).
Nesse duplo movimento que sustenta a educação, podemos pensar as  práticas  escolares  tanto  como  ferramentas  pedagógicas  para  dar  conta das  heterogeneidades,  na  tentativa  de  capturá-las  nos  processos  de normalização,  quanto  produtoras  das  anormalidades  e  fracassos.  Ao discutirem  sobre  essas  questões,  Deacon  e  Parker  (2000)  referem  que  “a generalização  da  normalização  opera  através  da  criação  de  anormalidades que ela [a educação], então, deve tratar e reformar” (p.105).
Tais  pensamentos  auxiliam-me  a  entender  os  movimentos  que cotidianamente  se  dão,  nas  instituições  escolares,  na  direção  de  corrigir aqueles  que  não  se  enquadram  nos  padrões  desejados  e/ou  considerados normais,  seja  de aprendizagem, seja de posicionamento ou de comportamento.
A discussão empreendida por Zigmunt Bauman (1999) aponta para o  fato  de  que  a  existência  só  “é  moderna  na  medida  em  que  se  bifurca  em ordem  e  caos,  [...]  em  que  contém  a  alternativa  da  ordem  e  do  caos”  (p.14). Tal  discussão  ajuda-nos  a  questionar  as  pretensões  de  ordem  da Modernidade,  na  medida  em  que  a  criação  da  ordem  cria  a  desordem  ou  o caos, como refere o autor. Para ele, “a negatividade do caos é um produto da autoconstituição  da  ordem,  seu  efeito  colateral,  seu  resíduo  e,  no  entanto, condição sine qua  non  da  sua  possibilidade  (...)  sem  o  caos,  não  há  ordem” (p.15).
Na  tentativa  de  organizar  o  mundo,  estabelecem-se  nomeações, categorias, padrões que se movimentam no sentido de capturar as coisas do mundo, inclusive os indivíduos. Busca-se, dessa maneira, definir também o que é normal, criando-se, simultaneamente, o que é anormal. Nesse sentido, Bauman aponta para as dicotomias, referindo:
Em  dicotomias  cruciais  para  a  prática  e  a  visão  da  ordem  social,  o poder  diferenciador  esconde-se  em  geral  por  trás  de  um  dos membros  da  oposição.  O  segundo  membro  não  passa  do  outro  do primeiro, o lado oposto (degradado, suprimido, exilado) do primeiro e sua criação. Assim, a anormalidade é o outro da norma, o desvio é o outro  do  cumprimento  da  lei,  a  doença  é  o  outro  da  saúde  [...]  a insanidade  o  outro  da  razão,  o  estrangeiro  o  outro  do  súdito  do Estado,  o  público  leigo  o  outro  do especialista.  Um  lado  depende  do outro, mas a  dependência  não é simétrica.  O segundo  lado depende do  primeiro  para  o  seu  planejado  e  forçado  isolamento.  O  primeiro depende do segundo para sua auto-afirmação (1999, p.22-23).
As  questões  que  o  autor  levanta  movem-me  no  sentido  de  atentar para  a  necessidade  que  temos  de  encontrar/produzir  categorizações, explicações, procedimentos para aquilo ou aquele que foge ao que tomamos como normal, na busca de garantir a suposta normalidade.
Os  entendimentos  que  apresentei  nesta  seção  levam-me  a direcionar  o  meu  olhar  não  para  o  indivíduo-aluno,  mas  para  a  rede  de elementos  que  se  engendra  no  cotidiano  escolar,  fabricando  o  “aluno-problema”, a rede à que ele acaba por submeter-se e em que se constitui."
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Fonte:
ANELISE SCHEUER RABUSKE "ALUNOS-PROBLEMA": DISCUTINDO PRÁTICAS IMPLICADAS NA PRODUÇÃO DO ANORMAL". (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação (Linha de Pesquisa Estudos Culturais em Educação) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre 
Nota:
A imagem (revista "A Cigarra", 1914 - APESP)  inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Disponível digitalmente no site: Domínio Público
 
 
 
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