“Raymond Williams, considerado um dos mais conceituados pensadores e críticos da Nova Esquerda Inglesa amplia o conceito já conhecido e esteriotipado que temos de tragédia.
O autor de “Tragédia Moderna” nos explica que a ideia que temos de tragédia “chega a nós a partir da longa tradição da civilização européia” (p. 33), ou seja, a interpretação é concatenada, dissiminada e estabelecida como “verdade” a partir de pensamentos de povos de além-mar.
Porém, deve-se atentar para o fato de que ideias relacionam-se com a história e, portanto, é necessário observar o lugar em que foram produzidas, e especialmente a função que exercem em relação à diversidade e multiplicidade da experiência atual.
“Na obra de Hebbel, diz Williams (2002, p. 58) “a tragédia é o conflito entre o indivíduo, na sua capacidade humana mais geral, e a “Ideia”, que, por meio de instituições sociais e religiosas, tanto lhe dá forma quanto o limita”.
Nessa formulação, Williams (2002) relaciona o conceito de tragédia ao esfacelamento da moral humana devido as crises decorrentes no seu desenvolvimento enquanto pessoa. E é a isso que ele chama de nova visão da tragédia: o relacioná-la à história, ao desenvolvimento humano e à crise ética.
Diante disso, podemos pensar na tragédia de Rubião ligando-a a todos os elementos citados acima. O personagem chave do romance criado por Machado de Assis carrega um sentido universal e, sobretudo, atemporal. Suas novas experiências enquanto rico, seu relacionamento com Camacho e com o casal Palha e sua vida ociosa e esbanjadora fê-lo desgastar todo e qualquer vestígio de moralidade que ainda possuía.
Nesse sentido, tragédia pode ser vista como uma série de experiências, convenções e instituições, e não como um tipo de acontecimento que é único. Williams (2002).
Raymond Williams (2002) é novamente reconvocado a colocar em pauta a denominação simplista que temos da tragédia. Segundo ele, pensamos tragédia relacionando-a a mortes, assaltos, catástrofes, guerra, fome, trabalho, tráfego e política. Para ele, tragédia “é, de fato, uma ideologia”. (p. 72).
E é tão veraz esta definição que na época de Machado a morte de um escravo ou de um servidor não era considerada como um evento trágico. Isso era pensado por ser o sentido trágico sempre relacionado à cultura e a história.
O autor de “Tabu do Corpo”, José Carlos Rodrigues (1979, p. 11), deixou impresso que “viver em sociedade é viver sob a dominação dessa lógica e as pessoas se comportam segundo as exigências dela, muitas vezes sem que disso tenham consciência”.
E foi esta a tragédia de Rubião. Deixar-se levar ingenuinamente pelas elucubrações do casal Palha e de seus colaboradores. O que parecia ser um mundo novo, real e cheio de luzes, era apenas uma construção, ou melhor dizendo, uma armadilha. O que
as pessoas normalmente chamam de “mundo real” é inconscientemente construído a partir dos códigos da sociedade. O cérebro humano seleciona e processa as informações que lhe oferecem os órgãos dos sentidos segundo um “programa” que lhe é introjetado pela socialização. A consciência individual tem a impressão de estar lidando com um mundo intrinsicamente ordenado. Entretanto, essa ordem postulada pela Cultura não se confunde com a ordem da Natureza, nem é apenas uma substituição de uma ordem natural por outra que não o seja; também não é um ordenar específico de coisas já existentes no mundo; ela institui no mundo novos elementos, imprevisíveis, inconhecíveis e mesmo inexistíveis sem a lógica que lhes é imposta. (RODRIGUES, 1979, pp. 12/13)
Neste sentido, sentir-se culturalmente e socialmente aceito significava, para Rubião, ser e fazer a maneira de seus circunstantes. Para alcançar os objetivos que ora propunha, não poderia deixar de integrar-se a qualquer custo à ideologia dominante. Entretanto, ele não imaginava que seus caminhos eram erráticos.
Por sua vez, Schwarz (2006) argumenta que entre indivíduo e sociedade há uma ligação inexorável, que “não deixa lugar para o transcendente: nada tão divino ou “celeste” como imaginar-se por cima na concorrência com o próximo” (p. 159).
Em suma, o que Schwarz pretende nos dizer é que na luta entre indivíduos e sociedade, o poder, munido com seu arsenal competitivo e sua força destruidora, sempre terá a primazia.
Para Machado todos os sistemas sociais têm como combustível a manipulação e o interesse, que utilizando-se de força, como dito anteriormente, e de astúcia, dificilmente perdem uma investida.
Enlaçado pela ilusão e pela vontade de vencer na vida, Rubião não conseguia divisar que seus pés estavam sob areia movediça. Ele sabia que para conseguir tal fim deveria estreitar uma ligação com o poder, revestindo-se de sua aparência; mas sua falta de perspicácia, inteligência e maturidade potencializou o desejo de seus algozes vê-lo como uma marionete, ou melhor, um objeto facilmente destrutível.
“De forma oblíqua e confusa, reconhece-se que a luta por dinheiro substituiu a luta por poder como um motivo humano e um motivo trágico”. (WILLIAMS, 2002, p. 128).
A verdade é que os desejos dos homens são tão intensos, tão impensáveis que não os deixa raciocinar que a “sociedade é identificada como convenção, e a convenção, como inimiga do desejo” (WILLIAMS, 2002, p. 129).
A impossibilidade de Rubião em alcançar com sucesso os objetivos que havia proposto consiste em ter fugido de si mesmo, travestindo-se de máscaras que não eram as suas, acreditando assim em ações sem fundamento. Em busca de uma autoafirmação ele encontrou a negação da vida devido a sua associação com uma sociedade mentirosa.
O que poderia minimizar tais situações é o entendimento de que
a sociedade é que se constitui, inevitavelmente, da soma dos seus relacionamentos, e quando estes estão perversamente errados, ou quando as pessoas não mais os compreendem, há uma complicada estrutura de culpa e ilusão que é vivenciada em cada setor da experiência, assim como nos mais óbvios pontos de confluência. (WILLIAMS, 2002, p. 192).
As palavras de Williams casam com a própria existência de Rubião, estendendo-se ao homem contemporâneo. Para o estudioso, travar relações balizadas pela honestidade e sinceridade é impossível, e a única fonte de candura ou inocência é a fantasia.
E foi na ilusão, a partir da figura de Napoleão III, que o amigo de Quincas se refugiou. (Cap. 146). Quando por ocasião em que um barbeiro foi realizar o seu ofício em sua casa, Rubião pediu-lhe que fizesse sua barba à semelhança de Napoleão III. Tendo um busto do oficial em sua casa, não foi difícil para o barbeiro fazer o que o cliente desejava.
Este delírio de Rubião soa como resposta a uma sociedade hostil que nubla, burla e, muitas vezes, destrói o próprio modo de ser das pessoas. E neste contexto encontra-se nosso personagem que, não tendo consciência de sua própria condição, desenha seu destino rumo a um lugar onde todos que vão encontram a tragédia do existir como parceira."
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Fonte:
EDUARDO FERNANDO BAUNILHA: "A LÓGICA DO ABSURDO: Loucura, Reificação e Cinismo
Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Disponível digitalmente no site: Domínio Público
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