O mais belo e precioso sintetizador do Consumismo: o Corpo



O pensamento de Nestor Garcia Canclini (1995) corrobora acerca da percepção do que possa representar, na sociedade de consumo, novos referentes na construção da cidadania:

Ser cidadão não tem a ver apenas com direitos reconhecidos pelos aparelhos estatais para os que nasceram em um território, mas também com as práticas sociais e culturais que dão sentido de pertencimento, e fazem com que se sintam diferentes os que possuem uma mesma língua, formas semelhantes de organização e de satisfação das necessidades. (CANCLINI, 1995, P. 22)

O conceito tradicional de cidadania, no qual o recorte é essencialmente político, não consegue dar conta da paradigmática dinâmica da vida social moderna. O ator social se constitui enquanto ator, mergulhado em uma diversidade de polifonias narrativas e policromias visuais, ensejando campos alternativos de sociabilidade e novos referentes de pertencimento. Dentro da visão de cidadania pontuada por Canclini (1995), o consumo torna-se um atributo fundamental: “consumo como o conjunto de processos socioculturais em que realizam a apropriação e os usos dos produtos” (Op. Cit. P. 53).

Desse modo, exibir-se em “praça pública”, adornados por todos os adereços da indústria capitalista e cultural, não deixa de representar uma tentativa de “inserção social” e de reconhecimento de cidadania. O “corpo panorâmico” nas sociedades complexas passa a representar o recurso, por excelência, utilizado para que se efetive a visibilidade e, consequentemente, para que se estabeleçam os liames de pertencimento social.

Pode-se perceber facilmente a relação intrínseca entre consumo e comunicação visual, isto é, a cultura de consumo é uma cultura da comunicação visual. Porém, devem-se indagar quais os modos de “fazer ver”, de “exibir-se” e de “implicações” que marcam uma diferença em relação aos ritos e aos atores sociais, personagens emblemáticos de nossa atualidade.

Achamos pertinentes apresentar alguns posicionamentos de Baudrillard (1990; 2001 e 2003), sociólogo antimarxista, defensor do liberalismo clássico e “verdadeiro legista do contemporâneo” como o definem acidamente seus opositores teóricos com base no materialismo histórico como Fredric Jameson (1993), Warren Montag (1993) e Terry Eagleton (pseudônimo de Thomas Warton) (1998).

Esclarece Baudrillard (2003) que não estaríamos mais nos atendo a problemática da falta e da alienação e que a última e mais radical análise desta estaria nas contribuições de Debord (1997) com o conceito de espetáculo e de alienação espetacular. Segundo Baudrillard (2003) existiria para Debord (1997) uma chance de desalienação, uma chance para resgate de autonomia e de soberania.

Radicalmente Baudrillard (2001) afirma que a crítica situacionista radical está superada e anuncia um mundo virtual – entendido como interativo e vinculada à comunicação digital - que a tudo precede constituindo um estado de privação total do Outro, ou mesmo de qualquer alteridade. É eminente o assassinato do real e não por ausência, mas por excesso, excesso esse que incide em seu fim: “nós nos movemos para um mundo onde tudo que existe apenas como idéia, sonho, fantasia ou utopia será erradicado, porque tudo isso será imediatamente realizado, operacionalizado” (BAUDRILLARD, 2001, P. 73-74) e é esta realidade pura, absoluta e virtual que chama de “Crime Perfeito”.

Essa realidade, denominada “Crime Perfeito”, denota a mutação primordial de um estado crítico e histórico marcado por massas de tensões e contradições para um estado catastrófico de irrupção de algo anômalo com funções, regras e formas desconhecidas e paradoxais. De forma profética, ressalta que a humanidade pode estar fadada ao desaparecimento e de forma inócua apresenta como estratégia analítica exercitar um desaparecer com arte, propondo um pensamento paradoxal com vista delirante.

Teríamos substituído, como afirma Baudrillard (1990 e 2003), o “drama da alienação” marxista pelo “êxtase da comunicação”? O espetáculo como signo emblemático da forma mercadoria, a propaganda como estilo de vida e a serialidade vazia como laços de simulacro?

Cremos não ser prontamente e muito menos em uma pincelada que pensaremos e apresentaremos resolutividade à complexidade desses questionamentos, mesmo porque tais colocações podem nos levam a uma dialética que não nos propomos aqui, a um confronto entre os “pós modernistas” e os “materialistas históricos” que não nos instigaria e/ou um posicionamento excludente e universalista que não visaria uma intercessão entre os diversos pensamentos que desde o início nos propomos a articular para enriquecer nossa problemática do corpo em nosso contemporâneo.

Seguiremos analisando mais detalhadamente outra obra de Baudrillard (2003), intitulada A Sociedade de Consumo que aqui tem relevante importância. Nessa obra, o autor, caracteriza a sociedade de consumo como a universalidade do “fait divers” na comunicação de massa, ou seja, toda informação política, cultural e histórica aparece dramatizada no modo espetacular e, simultaneamente, distanciada pelos meios de comunicação e reduzida aos signos desta mesma semiótica.

Nesse contexto, a lógica fetichista constitui a ideologia de consumo. Já que a vida cotidiana é o lugar por excelência do consumo, com o compromisso entre os princípios democráticos e igualitários, sustentáveis tanto pelo apego ao mito da abundância e do bem-estar, quanto pelo imperativo de uma ordem de privilégio e de domínio: “não há direito ao espaço senão a partir do momento em que já não existe espaço para todos e em que o espaço e o silêncio constituem o privilégio de uns quantos, à custa dos outros”. (BAUDRILLARD, 2003, P. 57)

Dois aspectos fundamentais podem servir de analisadores para o processo de consumo:
1° O processo de significação e de comunicação abordados por uma análise estrutural. Aqui o consumo revela-se como troca e equivale-se a linguagem. O consumo é ilimitado, já que não se consome o objeto em si, no seu valor de uso, mas sim, se manipulam os objetos, aos signos referentes ideais, ou seja, um estatuto que permite o acesso aos diversos grupos sociais.
2° O processo de classificação e diferenciação social. Os objetos/signos se ordenam através de valores estatutários em uma cadeia hierarquizada com as implicações de outros significantes sociais: cultura, poder, saber, por exemplo.

O consumo revela sua dimensão de coação no 1° sendo dominado pelo constrangimento de significação ao nível da análise estrutural; e no 2° dominado pelo constrangimento de produção e do ciclo de produção, na análise estratégica sócio-político-econômica.

O cidadão, moderno e consumidor, deve aspirar à felicidade e ao prazer, e se deixar cooptar por estes, dispondo-se a produção e inovação contínua das próprias “necessidades” e bem-estar de forma imediata. Esse processo se estende pela operacionalidade de uma reciprocidade de implicação a todos os atores sociais.

Percebemos que essas articulações caminham para demonstrar um novo modo de socialização com a emergência de novas formas de produtividade e conseqüente reestruturação monopolista do sistema econômico.

O campo do consumo em oposição a uma visão homogênea do mesmo é um “campo social estruturado em que os bens e as próprias necessidades, como também os diversos indícios de cultura, transitam de um grupo modelo e de uma elite diretora para as outras categorias sociais, em conformidade com seu ritmo de “promoção” relativa” (Op. Cit. P. 61). Nessa ideologia, a violência, a sedução e o narcisismo são vistos previamente como modelos de produção dos MASS Mídia e, passíveis de transformação pelos signos referenciáveis, de forma que o consumidor/cidadão, “encontra a própria personalidade no cumprimento de tais modelos”. (Op. Cit. P. 97)

O corpo tornou-se, na Sociedade de Consumo, o objeto sintetizador mais belo e precioso. Sob o signo da liberação física e sexual adentramos um período de “redescobrimento do corpo” que tramita, onipresentemente, na publicidade, na cultura das massas e na moda – lócus do culto da juventude, do par feminilidade/virilidade e o do mito do prazer – propiciando atribuir a esse corpo um correlato de simulada salvação: “explorar o corpo como jazigo a pesquisar com o fim de dele extrair os signos visíveis da felicidade, da saúde, da beleza e da animalidade triunfante no mercado da moda”. (Op. Cit. P.138)

Nessa função moral e ideológica, para Baudrillard (2003), o corpo substituiu a alma. Fizeram-se esforços inócuos, durante séculos, para convencer as pessoas de que eram desprovidas de corpo; hoje sistematicamente alimenta-se um processo de convencê-los do próprio corpo. Nesse ponto Baudrillard (2003) e Eagleton (1993 e 1998) convergem e mostram-se intrigados pelo levante massivo da temática acerca do corpo.

Administra-se e regula-se o corpo como patrimônio, para manipulá-lo como um dos múltiplos significantes do estatuto social. Queremos dizer que o modo de organização da relação ao corpo incide diretamente sobre o modo organizacional da relação com os objetos e com o social, para tanto, o estatuto do corpo é um fato de cultura, pondera Baudrillard (2003) e ratifica Eagleton (1993 e 1998).

No cenário da Sociedade Capitalista, o estatuto geral da propriedade privada aplica-se ao corpo, à prática social e à representação que deste se tem. Ao acoplar-se ao corpo uma visão instrumental induzida pelo processo de trabalho e pela relação à natureza, inaugura-se o corpo como capital e como objeto de consumo (feitiço) e em ambos os casos, “é necessário que o corpo, longe de ser negado ou omitido, se invista (tanto no sentido econômico como na acepção psíquica do termo) com toda a determinação”. (Op. Cit. P. 137)

Para uma melhor exemplificação do corpo enquanto objeto passível de manipulação e de consumo subjetivo achamos pertinente trazer, através do sociólogo, as falas confessionais de leitoras que revelam: “Eu descobria o meu corpo. A sensação invadia-me em toda sua pureza” “Entre mim e o meu corpo, houve como que um abraço. Comecei a amá-lo. E ao amá-lo, quis ocupar-me dele com a mesma ternura que tinha pelos filhos”. (Op. Cit. P. 138)

Recuperado como expoente de prestígio, o corpo torna-se objeto de investimento sob a opacidade do mito da libertação com que se desejava o simular, para em seguida, dissimular a alienação e a exploração envoltas nesse processo. Percebe, Baudrillard (2003) que o corpo se encontra vinculado: 1° - às finalidades da produção enquanto suporte econômico; 2° - ao princípio de integralidade psicológica dirigida do indivíduo; e 3° - a um determinismo estratégico para uma política de controle social.

Fazendo a construção de uma relação entre o corpo e a “história das ideologias” pela leitura do sociólogo, percebemos que o corpo era alvo crítico e ofensivo das ideologias tidas como espiritualistas, moralizantes e centradas na alma. A partir da Idade Média, para as heresias eram atribuídas uma espécie de reivindicação carnal e a priori ressurreição dos corpos. Depois do século XVIII a filosofia empirista e materialista passou a atacar os dogmas religiosos tradicionais, desagregando toda a valoração histórica constituída em torno da alma, o que culminou em um processo de dessacralização em proveito do corpo que atravessou todo o Ocidente.

Em um primeiro olhar há um triunfo do corpo, entretanto, o preocupante é que o corpo ao invés de construir “uma instância viva e contraditória, instância de “desmistificação”, veio apenas apoiar a época como instância mítica, como dogma e como esquema de salvação” (Op. Cit. P. 144). Esse corpo libertado, só o foi, para substituir a ideologia inadequada e obsoleta da alma e para auxiliar de forma mais funcional o ideal moderno de preservação de um sistema de valores individualistas. Transitamos de um tradicional corpo subserviente para um moderno intimismo de pôr-se ao serviço do próprio corpo.

Com isso, Baudrillard (2003) explana sobre a virtualidade revolucionária da mulher, do jovem e do corpo, mas alerta para o risco de serem integrados e recuperados como “mitos de emancipação”, isto é, categorias desdobradas em transcendência e objetivação míticas para manutenção da ordem estabelecida. Vejamos o que o autor expõe:

Às mulheres oferece-se para o consumo a Mulher, aos jovens o Jovem e, em semelhante emancipação formal e narcisista, consegue-se conjurar a sua liberação real. (...) A emancipação de certas mulheres (e relativa de todas – porque não?) de alguma maneira constitui somente o benefício secundário, a base e o álibi da imensa operação estratégica que consiste em circunscrever na idéia da mulher e do respectivo corpo todo o perigo social da liberação sexual, em circunscrever na idéia da libertação da mulher, em conjurar na Mulher/Objecto todos os perigos da libertação social das Mulheres
. (Op. Cit. P. 146-147)

Na visão moderna, existem para a representação objetiva do corpo, duas modalidades complementares: a - o investimento narcisista e fazer-valer e b - a dimensão psíquica e a dimensão estatutária. E é nestes dois sentidos que se reelabora a acepção de saúde, que passa a ser compreendida como um imperativo social ligada ao estatuto e impregnada por uma valoração do fazer-valer. Eis sua articulação: “a síndroma corporal do fazer-valer, que une o narcisismo e o prestígio social, lê-se também com toda clareza: toda a decepção de prestígio ou todo o revés social ou psicológico, seja qual for, aparece automaticamente somatizado”. (Op. Cit. P. 149).

Vimos acima que para Baudrillard (2003) a teoria do corpo é fundamental para a teoria de consumo, já que o corpo seria a síntese de todos os processos ambivalentes: ao mesmo tempo, investido narcisicamente como objeto de erotização, e investido somaticamente como objeto de preocupação e de agressividade."

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Fonte:
Ana Paula de Campos: "Corpo Intensivo: incessantes composições e (de)composições". (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia do Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Psicologia, na área de concentração de Clínica e Subjetividade. Orientadora: PROFª.DRª. Teresa Cristina Othenio Cordeiro Carreteiro. Co-orientador: PROF. DR. Auterives Maciel Júnior). Niterói, 2006.

Nota
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A imagem (Revista Ilustração Brazileira, 1910) inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Disponível digitalmente no site: Domínio Público

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