O método foucaultiano de análise descritiva dos discursos



“Michel Foucault, ao longo de A Arqueologia do Saber, procura distinguir a arqueologia de outros tipos de análise discursiva. Após abordar e colocar em suspenso a escanção do discurso segundo grandes unidades, define um domínio, o do campo enunciativo e do enunciado e, para estabelecê-lo, faz uso de uma série de noções tais como formação discursiva, positividade, práticas discursivas. Ele reconhece a possibilidade de se pensar o conceito geral de regra de aparição na teoria do discurso e pergunta pelas condições de possibilidade do discurso.

Diversamente de Heidegger , de grande parte da tradição hermenêutica e de Wittgenstein, para os quais só as práticas não discursivas determinando o mundo subjacente às práticas discursivas podem fornecer o horizonte de compreensão do discurso, Michel Foucault reconhece que se pode não somente isolar senão também explicar o fato enunciativo previamente a toda investigação nos fatos não-discursivos. O Professor do Collège de France aborda os discursos do ponto de vista de sua regularidade, ou seja, das regras que descrevem uma formação discursiva. Ele mostra a contraface plural e dispersa dos objetos, do sujeito, dos conceitos e do tema. Trata-se, em lugar de reconstituir cadeias de conclusões, estabelecer quadros de diferenças, descrever sistemas de dispersão, de estabelecer formações discursivas, ou seja, a descrição de uma certa regularidade dos enunciados, o que possibilita estabelecer , como denomina Foucault, uma positividade, entendida como um espaço no qual é possível estabelecer se fala ou não do mesmo objeto, se os diversos sujeitos envolvidos se situam ou não no mesmo nível, se utilizam os mesmos conceitos, se trata ou não dos mesmos temas. Se não existisse nenhuma regularidade, nenhuma relação, nenhuma possibilidade de comparação entre um enunciado e outro, a descrição das formações discursivas seria impossível. Delineam-se, assim, as linhas-mestras, os traços mais gerais de “uma certa forma de interrogação e um conjunto de estratégias analíticas de descrição” (LARROSA, 1994, p. 37) de um domínio onde estão em questão os enunciados, as regularidades dessa dispersão, irredutível análises gramaticais, lógicas que tomam o enunciado como tão óbvio, que não o analisam; a especificidade do método foucaultiano de análise descritiva dos discursos. Um método, uma certa forma de interrogação que pergunta pelas condições de possibilidade, de existência dos discursos. Um método de descrição do discurso, não mais como conjunto de signos e elementos significantes que remeteriam a determinadas representações e conteúdos, tal como pensavam os estruturalistas tributários de Saussure, mas como um conjunto de práticas discursivas que instauram os objetos sobre os quais falam, legitimam os sujeitos enunciadores, definem os conceitos com os quais operarão e fixam as estratégias que rareiam os atos discursivos.

O texto de A Arqueologia do Saber constitui-se, pois, numa descrição do método arqueológico, das regularidades que, independentemente das relações primárias e secundárias, das práticas sociais e da subjetividade, visam descrever do ponto de vista de existência, as condições de possibilidades específicas de objetos, das modalidades enunciativas, dos conceitos , das estratégias discursivas e das possibilidades de reinscrição dos enunciados, as quais não se reduzem nem as possibilidades da frase enquanto frase nem as possibilidades da proposição enquanto proposição.

Foucault, em sua análise do discurso, interessa por esse grupo de regras que são imanentes a uma prática e a definem em sua especificidade. A análise descritiva do discurso, numa perspectiva foucaultiana, considera, quanto a formação dos objetos, o conjunto das regras que permitem formá-los como objetos de um discurso e constituem suas condições de aparição, ou seja, as relações que se estabelecem entre superfícies de emergência, instâncias de delimitação e regras de especificação. Localizar as superfícies de emergência é localizar donde se fala desse objeto, que já não será o mesmo em cada caso. Descrever instâncias de delimitação implica em identificar os diferentes estamentos sociais que designam, nomeiam ou instauram os objetos e de que se diferenciam (a medicina, a justiça, a autoridade religiosa, a crítica literária e artística).

Pela análise das regras de especificação vê-se os sistemas segundo os quais se separa, se opõe, se conecta, reagrupa, classifica, se fazem derivar uns das outros as diferentes objetos de um discurso; exemplo, as diferentes ‘loucuras’ como objetos do discurso psiquiátrico. As superfícies de emergência , as instâncias de delimitação e as regras de especificação desenham o espaço intradiscursivo no qual podem aparecer os objetos, ser nomeados e descritos. Elas não explicam como o objeto está constituído, senão porque em uma determinada época se começou a falar de certo objeto. Assim, o discurso é outra coisa distinta do lugar ao que vem a depositar-se e sobrepor-se; se caracteriza não por objetos privilegiados senão por como forma os seus objetos. Neste sentido, os discursos vêm considerados como uma prática, pois, constróem seus objetos.

O Professor do Collège de France postula subjetividades como posições, lugares ocupados no discurso, a partir das regras de formação; regras que definem o estatuto de quem, por regulamento ou por tradição, por definição jurídica ou por aceitação espontânea, pronuncia ou escreve um enunciado; os âmbitos institucionais que circundam o falante; as diversas maneiras em que pode situar-se com respeito a determinados objetos ou um domínio de objetos e as relações entre estas instâncias constituem o sujeito de um enunciado. Portanto, no seu método de análise do discurso, quanto a formação das modalidades enunciativas, Foucault considera o estatuto do falante, os âmbitos institucionais e as posições do sujeito.

A análise foucaultiana do discurso, recorta a região da linguagem para interrogar o estatuto de quem enuncia, de quem tem o direito de entrar na ordem do acontecimento discursivo.

Esta pergunta se desdobra em quem fala e no interior de que instituições. Foucault responde, por intermédio do exame das modalidades enunciativas, que demarcam um campo de regularidades para as diversas posições que ocupa, fazendo surgir o sujeito do discurso como uma dispersão.

Na configuração do campo enunciativo, ele considera as formas de sucessão, ou seja, a maneira como as séries enunciativas se ordenam mutuamente (inferência, demonstração, esquema de generalização, o modo no qual a temporalidade espacializa na linealidade dos enunciados); aos tipos de tipos de dependências enunciativas (hipótese-verificação, asserção-crítica, lei geral – lei particular) e esquemas retóricos (articulação, deduções e descrição em um texto).

As formas de coexistência estabelecem um campo de presença, permitem descrever um campo de concomitância e comporta um domínio de memória. Os enunciados já formulados em outra parte, admitidos, criticados ou excluídos estabelecem o campo de presenças. Os enunciados que pertencem a outro domínio de objetos ou a outro tipo de discurso, mas que intervém a título de analogia ou de premissa ou de princípio geral permitem descrever um campo de concomitância. Os enunciados a respeito dos quais, sem ser admitidos ou discutidos, se estabelece uma filiação ou uma gênese ou uma continuidade ou uma descontinuidade comportam um domínio de memória.

Os procedimentos de intervenção que podem aplicar-se legitimamente aos enunciados contemplam as técnicas de rescritura, métodos de transcrição dos enunciados, modos de tradução de enunciados quantitativos em qualitativos e reciprocamente, meios para acrescentar a aproximação e refinar sua exatidão, a maneira como se redelimita o domínio de validade dos enunciados; a maneira em que se transfere um enunciado de um campo de aplicação ao outro; os métodos de sistematização de proposições. Esta descrição não pode valer por uma descrição direta e imediata dos próprios conceitos. Busca-se determinar segundo que regras os enunciados podem estar ligados uns aos outros em um tipo de discurso; como os elementos recorrentes dos enunciados podem reaparecer, se dissociar, se recompor, ganhar em extensão ou em determinação, ser retomados no interior de novas estruturas lógicas, adquirir, em compensação, novos conteúdos semânticos, constituir entre si organizações parciais. Esses esquemas permitem descrever uma dispersão que caracteriza um tipo de discurso e que define, entre os conceitos, formas de dedução, de derivação, de coerência, e também de incompatibilidade, de entrecruzamento, de substituição, de exclusão, de deslocamento.

Os discursos dão lugar a certas organizações de conceitos, a certos reagrupamentos de objetos, certos tipos de enunciação que formam temas e teorias, convencionalmente, chamados estratégias. Assinalar os pontos de difração do discurso, ou seja, evidenciar os pontos de incompatibilidade, os pontos de equivalência e os de enganche de uma sistematização; explicitar a economia da constelação discursiva que dá conta do porquê não todas as combinações possíveis se verificaram e caracterizar a função que deve exercer o discurso em um campo de práticas não discursivas, todo este jogo de relações constitui um princípio de determinação que permite ou exclui no interior de um discurso dado certo número de enunciados. Foucault substitui as intenções puras de não-contradição por uma rede emaranhada de compatibilidades e incompatibilidades. Os pontos de incompatibilidade evidenciam enunciados que, ainda quando aparecem na mesma formação discursiva, não podem pertencer a mesma série; os de equivalência, enunciados que respondendo as mesmas possibilidades de existência e situando-se em um mesmo nível representam uma alternativa. Os pontos de enganche em uma sistematização, evidenciam como a partir dos pontos de equivalência ou incompatibilidade se derivam uma série coerente de objetos, de formas enunciativas e de conceitos com outros pontos de incompatibilidade ou equivalência. No estudo da economia da constelação discursiva determina-se o papel que desempenha em um discurso determinados enunciados com respeito a outros; trata-se de um sistema formal do qual outros são aplicações em campos semânticos diversos; de um modelo concreto que é necessário referir a outro de maior grau abstrato; se encontra em uma relação de analogia, de oposição ou de complementariedade com respeito a outros discursos; se podem delimitar-se mutuamente. No que concerne à função que o discurso deve exercer em um campo de práticas não discursivas, Foucault (2002, p. 74) salienta que a análise das riquezas desempenhou um papel não só nas decisões políticas e econômicas dos governos, mas nas práticas cotidianas pouco conceitualizadas e pouco teorizadas do capitalismo nascente e nas lutas sociais e políticas que caracterizaram a época clássica. No tocante aos processos de apropriação do discurso, esta propriedade do discurso, entendida ao mesmo tempo como direito de falar, competência para compreender, acesso ilícito e imediato ao corpus dos enunciados formulados, capacidade de investir esse discurso em decisões, instituições ou práticas, está reservada a um grupo determinado de indivíduos (FOUCAULT, 2002, p. 75). E, por fim, a possibilidade de o discurso estar relacionado com o desejo não é apenas o fato do exercício poético, romanesco ou imaginário do discurso, pois, os discursos sobre a riqueza, linguagem, natureza, loucura, vida e morte, entre outros, podem ocupar, em relação ao desejo, posições bem determinadas.

Segundo o quanto sustenta a esta altura, Foucault pretende “fazer aparecer” a positividade dos discursos, suas condições de existência, os sistemas que regem sua emergência, seu funcionamento e suas modificações” e os efeitos de verdade. Para alguém que adote uma perspectiva foucaultiana, sua análises se deslocam “para fora” das proposições e centrará em questionamentos tais quais: “que visibilidades são ativadas por esse enunciado?”, “que posições de sujeito se criam com esse enunciado?”, “a que vontade de verdade atende esse ou aquele enunciado?”, “como se engendraram os saberes que precisaram ser ativados para que se chegasse a esse enunciado?”.

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Fonte:
GILBERTO ALVARO: "A ARQUEOLOGIA COMO METODOLOGIA DE ANÁLISE DO DISCURSO". (Dissertação apresentada à Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE como um dos pré-requisitos para a obtenção do título de mestre em Letras – área de concentração em Linguagem e Sociedade e linha de pesquisa: Funcionamento dos Mecanismos Lingüísticos. ORIENTADOR: Prof. Dr. Daniel Omar Perez). Cascavel, 2006.

Nota
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