O nascimento da ciência moderna



"O nascimento da ciência moderna é um acontecimento fundamental para entendermos como a categoria de sujeito aparece na história da humanidade. A constituição do conhecimento, por sua vez, nas diversas fases do processo de civilização que antecederam a modernidade não trazia em seu corpo conceitual a categoria de sujeito. Podemos observar que as definições acerca da constituição desse conceito estão intimamente ligadas a uma determinada época. O homem nem sempre percebeu suas relações particulares como algo da subjetividade. Na perspectiva histórica, esta categoria nasce e se desenvolve passando por diversos momentos, inclusive, sendo reduzida ou comparada a outros conceitos:

Podemos dizer que a categoria de sujeito é uma idéia que nasceu e cresceu ao longo da história perpassando por diversas vicissitudes e sendo confundida com as noções de indivíduo, pessoa e eu. Não podemos negar que o ser humano sempre teve o sentimento do seu corpo individual, mas a possibilidade de reflexão sobre a subjetividade enquanto algo privado e a possibilidade do gozo da liberdade individual coincidem com o pensamento moderno
(MOREIRA, 2002, p.16).

O homem, em sua relação com o mundo e a produção de conhecimento que pode advir deste encontro, não apresenta efetivamente a posição de sujeito. Essa condição não deve ser entendida como intrínseca ao mundo humano, para que esta categoria se estabelecesse enquanto possibilidade, foi necessário um logo percurso histórico. A inserção do sujeito como mediador e principal agente do conhecimento foi se estabelecendo à medida que o universo cultural se dinamizava. Um novo conjunto de signos e símbolos foi criado e universalizado com a intenção de se compreender a complexidade da vida humana. Paulatinamente, o homem se apresenta para tecer sua singularidade, lugar de sujeito, na universalidade cultural, constituindo de forma particular uma leitura sobre o conhecimento.

Platão (1999), em A República, apresenta um de seus trabalhos mais ricos e interessantes para entendermos a dinâmica discursiva na construção do conhecimento e sua relação com a noção de sujeito. Ao estabelecer um diálogo entre Sócrates e Glauco, o filósofo grego apresenta a história de homens aprisionados dentro de uma caverna. O mundo que tais habitantes tinham acesso se restringia às sombras, imagens obscuras projetadas na parede, pela luz que existia fora da caverna. Nas trilhas do mito encontramos um homem que se liberta e vai até o mundo exterior e, nesse momento, tem acesso a uma nova perspectiva da realidade, até então desconhecida. Deslumbrado com sua descoberta, volta a sua antiga morada e conta aos seus companheiros que o mundo até então conhecido eram apenas sombras e havia muito mais a ser descoberto.

O destino desse aventureiro de novas terras fica para especulação do leitor, mas é possível, a partir deste pequeno fragmento da obra de Platão, apostar que o conhecimento produzido por este sujeito não é constituído sem preço. O homem, ao enfrentar o mundo fora da caverna, precisou elaborar formas de apreender a realidade exterior. A vida dentro da escura casa não obrigava seus habitantes a mirar horizontes para além das sombras. Para garantir sua sobrevivência, o homem desafiou a morte que o assombrava: “saiu da Caverna e inventou a racionalidade, seu primeiro instrumento”. (BARROS, 2003b: 68).

Segundo Weber (1983), a produção de racionalidade ocupa papel fundamental na construção de modelos para o entendimento do mundo, estruturas de pensamento indispensáveis para que o homem possa trilhar novos rumos diante do perigo que habita a vida. As engrenagens desse processo de conhecimento produzem o enredamento de vários conceitos que fundamentam uma noção de verdade, estruturada sobre uma realidade concreta. E, a partir da progressiva racionalização do mundo, o homem pode constituir um cálculo para suportar minimamente a ausência de garantias. Drawin (1998) apresenta um homem que, ao distanciar-se de sua relação natural e instintiva com a realidade, encontra inevitavelmente o desamparo e a angústia.

Do deslumbramento humano com a natureza à reflexão e construção de sentido sobre aquilo que se apresenta sem sentido, o processo de racionalização se destaca como ferramenta indispensável para a sobrevivência e a criação de uma nova morada para o humano desalojado de sua condição animal. Assim, o homem vai constituindo a arquitetura de um saber sobre o mundo, processo que se desenvolve e fomenta novos modelos culturais, enlaçando os conceitos no interior de um quadro de pensamento em resposta aos descaminhos da realidade:

A vida é irracional, algo sobre o que não se sabe, não se tem controle, nem garantias previamente estabelecidas, como diz o adágio popular: a vida é uma caixinha de surpresas. a racionalidade, (...), pode ser entendida como capacidade humana de fazer prognóstico e orientar sua ação no sentido desse cálculo intuitivo. O acaso, o real impensável é o que à vida seu colorido, seu vigor... paradoxalmente, é seu maior perigo. Para lidar com a irracionalidade da vida, o homem inventa instrumentos de orientação e cálculo
(BARROS, 2003b, p. 68).

O homem que agora habita o exterior da caverna precisa constituir leituras do mundo aparentemente desconhecido. Para tanto, elabora modelos para compreender a irracionalidade que perpassa a vida. No âmbito desses modelos podemos destacar algumas formas de olhar o mundo que marcaram a história da humanidade. Laville (1999) enfatizam, inicialmente, os saberes espontâneos, cujas maneiras de constituir o conhecimento e entender o mundo foram de extrema importância para o homem na idade pré-histórica. Ao utilizar objetos do cotidiano para construir ferramentas que garantiam a sobrevivência, o homem que vivia nesse período inaugurou um padrão de procedimentos com a finalidade de facilitar a vida, uma forma de tratar o mundo pela experiência cotidiana.

O homem primitivo, utilizando dois pedaços de pedra, percebeu que ao atritá-los sobre um monte de folhas secas produzia uma faísca capaz de queimá-las. Desta forma, o homem “havia constituído um novo saber: como acender o fogo (LAVILLE, 1999, p.15). Tal produção de conhecimento fundamentalmente articulada com as experiências cotidianas se apresenta geralmente como um conjunto de opiniões – saber pessoal e contingente que não se preocupa com causas, uma leitura simples dos fenômenos que se apresentam no dia-a-dia.

Para avançar em direção à constituição do conceito de sujeito, é necessário prosseguir pela linha da história até chegarmos ao mundo grego. Encontramos na Grécia Antiga os cidadãos gregos preocupados com a constituição da polis, forma de organizar o conhecimento cultural que atendia minimamente às questões da época, modelo que gerava maneiras pontuais de agir e pensar, destacando-se a proeminência da palavra como instrumento de poder. A fala enquanto argumentação marcava a constituição da esfera política. Assim, os cidadãos da polis eram convocados a dizer de seu lugar, defender suas idéias na Ágora, no espaço público.

O conhecimento se constituía no saber-fazer política, arte de convencer o outro da posição mais adequada. A educação era monopolizada pela aristocracia e se voltava para a participação de poucos na vida política das cidades. A produção discursiva e o poder de argumentação do indivíduo eram amplamente valorizados. Os gregos, que nos primórdios de sua civilização, localizavam nos deuses uma forma de ler os fenômenos do mundo, apresentaram uma ruptura na aurora de seu pensamento. Promovendo a passagem do Mito ao Logos, surge a idéia de que o mundo caminha por leis próprias, leis que contêm em si mesmas o segredo de seu entendimento, não condicionadas aos desejos divinos.

O nascimento da filosofia na Grécia nos apresenta uma faceta interessante na constituição do conhecimento. A sociedade grega clássica acreditava que a elaboração de um saber se dava pela contemplação da natureza. Entretanto, para que alguns se dedicassem a esta tarefa, uma massa considerável da sociedade deveria ocupar-se do trabalho. Para haver a ociosidade de parte dos membros, existia uma divisão muito clara da sociedade, na qual uma classe dominante explorava o trabalho de outra, geralmente representada por escravos. Desta forma, alguns gregos eram liberados de tarefas cotidianas, podiam se dedicar à contemplação da natureza, para que dela pudessem extrair o verdadeiro conhecimento.

Apesar de todo avanço cultural produzido pelos gregos em constituir o cidadão responsável pela polis, não temos ainda a emergência da categoria de sujeito como virá a aparecer no mundo moderno. A experiência grega se aproxima desta categoria, delimitando a singularidade e a individualidade, mas o cidadão grego, quando convocado a se posicionar, não se orientava em direção ao mundo interior e particular, mas, sim, para fora, para o mundo exterior, vislumbrando o desenvolvimento da polis. Bezerra (1989) aproxima esta vivência grega à noção de eu, mas de forma muito diferente da experiência moderna, marcada pela liberdade individual. O eu grego manifesta-se pelas ações, movimentos, atividades que executa, passando pelo registro da consciência: “não nada que se parece com nossa moderna noção de mundo interior, de eu recôndito, tesouro de uma identidade última a ser desvendada pela exploração introspectiva” (BEZERRA, 1989, p.224).

O homem grego vivencia sua singularidade vinculada intrinsecamente ao cosmo, submetido a uma ordem transcendente e superior. Bezerra (1989) destaca que, mesmo com a vinculação de vários fenômenos psicológicos associados diretamente aos Deuses gregos, não se delimita claramente a emergência de um sujeito. Por exemplo, Phobos, que na atualidade nomeia uma das luas de Marte e é também o radical que origem à palavra fobia, era associado ao medo no momento das batalhas. Um outro exemplo é a deusa, filha de Urano e Geia, chamada de Mnemosine, considerada a protetora da memória. Segundo Bezerra (1989):

Mesmo a noção de psyché, presente nos textos platônicos, se conforma a estas características. A psyché é em cada um de nós, uma entidade impessoal ou supra-pessoal. É a alma em mim mais do que minha alma. Desse modo, a alma não traz a marca da singularidade pessoal, da existência individual única e irrepetível. Ao contrário, ela manifesta a integração absoluta do indivíduo com o cosmo, ela justamente exclui o que há de particular para acentuar o que liga imanentemente o homem ao universo, ao todo
(BEZERRA, 1989, p. 225).

Podemos afirmar, segundo Pacheco (1996), que a experiência subjetiva vivenciada na Grécia, pelo menos até o pensamento platônico, aparece articulada a um projeto de fortalecimento da coletividade. O projeto individual de cada cidadão grego está intimamente ligado à dimensão social, à existência marcada pela busca da excelência na vida em comunidade. Mesmo a experiência da askesis moral dos cidadãos que objetivava controlar os excessos e as paixões práticas, que poderíamos aproximar a uma dimensão subjetiva, considerando-a como uma atividade mental voltada para si, era feita em referência ao mundo exterior, para o bem da polis.

Em “Subjetividade Moderna e o campo da Psicanálise”, Bezerra (1989) apresenta que os primeiros resquícios de uma aproximação da dimensão de sujeito aparece por volta dos séculos III e IV d.C. Nesta época surgem várias práticas voltadas para o auto-exame, o autocontrole e a possibilidade de criar uma estilística na existência, que marcam a Antigüidade Clássica. No entanto, somente com o cristianismo começa a grande transformação, uma forma de conhecimento que possibilita a valorização da interioridade, a partir da categoria de pessoa, marcada pela dimensão espiritual.

O pensamento cristão é o ponto de partida para entendermos o novo modelo de compreensão da complexidade do mundo. O homem medieval, marcado pelo pensamento teológico, vai se organizar em pequenas sociedades, nas quais as necessidades individuais vão estar subordinadas à comunidade. A filosofia patrística e escolástica colocam religião e fé em um dueto indissociável, no qual o conhecimento vai estar a serviço e será dado por Deus. O homem, nesta perspectiva, é tomado como criatura, identificando-se com o Absoluto enquanto imagem e semelhança do Criador. Essa relação especular vai produzir a conexão entre busca do conhecimento atrelada ao encontro com Deus.

Assim, o conhecimento vai se constituir pela via da divindade. As verdades sobre o mundo estavam sempre entrelaçadas com a religião. As revelações e inspirações divinas apresentavam os desígnios de Deus aos seus escolhidos, relação de interioridade com o Sagrado, que, nesta época, eram quase sempre representados por autoridades do Clero. O homem criado à imagem e semelhança de Deus era, naquele momento, superior à natureza. Tudo foi criado para abrigá-lo temporariamente, o homem grego que contemplava a natureza em busca da verdade dá lugar ao homem senhor da natureza. Nessa relação com o divino não se configura efetivamente o surgimento da categoria de sujeito e, sim, o conceito de pessoa, que está atrelada a uma visão holista, hierarquizada e transcendente.

Segundo Moreira (2002), a experiência da transcendência vai possibilitar ao indivíduo experimentar a categoria de pessoa, articulando-se a diversos aspectos da vida humana. O corpo biológico ganha um contorno simbólico e o psiquismo se apresenta na intencionalidade da consciência de si e para si. E a espiritualidade, que abre um leque de experiências com o objetivo de constituir sentido sobre o mundo. Neste momento, a categoria de sujeito ainda não aparecia como fundamento para a construção do conhecimento, mas havia todo um processo de subjetivação que possibilitava o surgimento do sujeito no início da Modernidade:

Se é no início da era cristã que a concepção moderna de sujeito encontra seus primeiros vestígios, no entanto, é somente na época moderna que ela passa, do plano da reflexão e das práticas, a se impregnar progressivamente na cultura e no tecido social, tornando-se uma categoria central na esfera dos discursos e saberes, mas também servindo de alavanca para criação de instituições, de práticas coletivas, de representações sobre o papel da sociedade, do Estado, da religião, etc; e principalmente habitando cada vez mais a consciência dos indivíduos, dos agentes sociais
(BEZERRA, 1989, p. 227).

Na segunda metade do século XV começa a surgir uma série de revoluções nas artes, no pensamento religioso, na política, movimento nomeado de Renascimento, momento marcado pelo aparecimento de novas formas de pensamento, teorias e grandes descobertas, período que antecede o nascimento do racionalismo cartesiano: uma nova forma de se pensar o homem em relação à vida, uma nova concepção de organização social, na qual o mundo pode ser conhecido e modificado pelo homem, ocorrendo o rompimento com a hierarquização mítica e sagrada anterior, que sustentava toda uma tradição. O homem ganha um lugar até então nunca ocupado: senhor absoluto de si mesmo. A produção de conhecimento vai se desconectando da exterioridade do homem e passa a ser algo intrínseco. O homem solitário e indeciso está agora entregue às próprias convicções, não se orientando mais pelos velhos modelos de conhecimento.

A revolução empreendida por Copérnico tem grande importância na ruptura com as tradições medievais. O movimento de retirar a Terra do centro e apresentar o universo enquanto infinito desloca a finitude humana para um ponto perdido no espaço. Neste modelo, o homem passa a ocupar um lugar bem inferior ao que postulava a religião: “o descentramento astronômico anuncia um descentramento antropológico e epistemológico. Diante da vivência de ruptura e de dissolução da ordem, o homem tenta reorganizar, reinstaurar um pólo orientador” (MOREIRA, 1997, p.11). O universo mudo e vazio de divindade passa a ser explicado e entendido pela consciência humana, pela racionalização do universo, tendo o homem como fundamento de todo conhecimento.

Este novo modelo de pensamento teve como principal expoente o filosofo francês René Descartes. As idéias cartesianas constituíram o fundamento inicial para a era da razão e o nascimento da ciência na modernidade. Um corte epistemológico que vai atribuir ao homem a possibilidade de vivenciar, pela primeira vez, enquanto condição sociocultural o lugar de sujeito, agente de sua história e responsável por constituir suas convicções diante da realidade do mundo, sem interferências externas.

O cogito cartesiano instaurava um novo tempo, fundamentando o projeto da modernidade que visava à independência do sujeito pela via da razão, produzindo conseqüentemente o bem coletivo ao oferecer verdades inabaláveis, garantindo bases seguras para escolher o caminho certo, projeto de um sujeito racional, emancipado e livre. Descartes desafiou a irracionalidade presente no mundo pela via da razão, constituindo um método para chegar a verdades seguras e confiáveis. O sujeito moderno “não busca a verdade num além, em algo transcendente; a verdade agora significa adquirir uma representação correta do mundo. Essa representação é interna, ou seja, a verdade reside no homem” (...) (FIGUEIREDO, 2003, p.30). Assim, nasce o sujeito cartesiano, racional por excelência, senhor de si e embaixador das verdades do mundo."

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Fonte:
FABRÍCIO JUNIO ROCHA RIBEIRO: “DA RAZÃO AO DELÍRIO: Por uma abordagem interdisciplinar do conceito de loucura”. (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Psicologia. Orientadora: Jacqueline de Oliveira Moreira). Belo Horizonte – MG, 2006.

Nota
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