O Nascimento do Manicômio



Podemos dizer que o manicômio cumpre basicamente com duas funções, a saber: a m dica e a social (aqui incluída a fun ão de „prote ão social‟ para salvaguardar a sociedade de um contingente populacional incômodo). Os grandes asilos, enquanto mecanismos de apartação, possuem uma finalidade social clara: a proteção da sociedade, via a exclusão dos grupos indesejáveis. Este é o objetivo deste tipo de instituição, para a qual a proteção dos doentes fica num plano secundário. Em artigo publicado na Rivista Sperimentale di Freniatria, Franco Basaglia trata, entre outras coisas, da função do manicômio e do psiquiatra e ressalta:

Historicamente, o manicômio nasceu para a defesa dos sãos. Os muros, quando a ausência de terapias impossibilitava a cura, serviam para excluir e isolar a loucura, a fim de que não invadisse o nosso espaço. Mas até hoje eles conservam essa função: dividir, separar, defender os sãos mediante a exclusão de quem já não é são. Dentro dos muros, que o psiquiatra faça o que puder. Concedam-lhe ou não os meios para trabalhar, consintam-lhe ou não tratar de quem lhe foi confiado, ele deve antes de tudo responder pela segurança da sociedade, que quer ser defendida do louco, e pela do próprio louco
(2005, p. 49).

Segundo Goffman toda institui ão tem tendência de „fechamento‟, embora algumas apresentem mais esta característica do que outras. Uma instituição pode ser definida como total quando existe uma “barreira rela ão social como o mundo externo e por proibições à saída que muitas vezes estão incluídas no esquema físico [...]” (2001, p. 16).

Uma das características mais importantes de uma instituição total é, pela existência de uma barreira de contato com o mundo externo ou não institucional, a ocorrência da realização das mais distintas atividades em um mesmo espaço. Se fora do mundo institucional existem espaços específicos para a realização de atividades distintas (trabalho, lazer, descanso), a instituição total rompe com esta separação e todas as atividades passam a ser realizadas num mesmo local.

Numa instituição total os sujeitos têm a sua rotina diária previamente estabelecida. Nestes locais todo o processo de admissão (anamnese, recolhimento dos bens pessoais, higiene pessoal) serve para tirar o novo interno que chega das suas referências anteriores e para prepará-lo para o início de outra vida, agora de acordo com as normas institucionais. Tudo tende a ser padronizado: roupas, atividades, horários para realização das atividades, inclusive as pessoais. As atitudes também são padronizadas, já que os sujeitos não podem se expressar livre e autonomamente.

Os sujeitos que se encontram neste tipo de instituição têm espoliado uma das coisas mais caras ao ser humano na modernidade: a sua autonomia, especialmente para gerir as suas necessidades pessoais mais fundamentais. Fora do mundo institucional, por mais subordinada que uma pessoa seja à outra(s), ela não perde necessariamente a gerência sobre sua vida no que tange aos atos pessoais mais íntimos. Numa instituição com características totais nem isto é preservado. Mesmo quando o sujeito tem capacidade física e mental para realizar determinadas coisas não o faz porque não tem autoridade para isto, precisando constantemente pedir permissão para realizar tarefas simples (Goffman, 2001).

Algumas decisões como quando e com quem falar, o que vestir e comer são
atitudes que comumente são tomadas fora do espaço institucional sem que seja preciso pensar muito sobre as possíveis conseqüências destas escolhas. No entanto, na instituição total até as atitudes mais comuns podem se tornar problemáticas. Isto por seu turno abala o “eu civil” do internado através do processo de despojamento institucional, pelo qual é transmitido ao interno um conjunto de regras e normas (que se não cumpridas geram sanções e castigos) que reorganizam a sua vida e conduta pessoal. Com tudo isto, a vida civil parece não ser possível para aqueles que estão internados em instituições totais (Goffman, 2001, p. 27).

Uma das formas mais eficientes para perturbar a “economia‟ da ação de uma pessoa é a obrigação de pedir permissão ou instrumentos para atividades secundárias que a pessoa pode executar sozinha no mundo externo, por exemplo: fumar, barbear-se, ir ao banheiro, telefonar, gastar dinheiro, colocar cartas no correio”
(Goffman, 2001, p. 44).

É nestes espaços que ocorre ainda o que o autor chama de mortificação do eu. Pela densidade desse conceito não pretendemos aprofundá-lo, faremos somente uma breve explicação. A mortificação do eu é definida como uma das características das instituições totais, ou melhor, um dos seus produtos, especialmente de prisões e asilos. O interno chega a estes lugares como portador de uma „cultura aparente‟ (Goffman, 2001, p. 23), e segundo o autor não ocorre uma substituição do que já foi formado pela cultura específica no sentido de aculturação - mas sim um desaculturamento. Após longos períodos de internamento o sujeito poderá estar temporariamente incapaz de gerenciar alguns aspectos da sua vida cotidiana. Isso não significa que ele não conseguirá restabelecer alguns papéis na sua vida quando retornar para o mundo fora do asilo, mas certamente haverá perdas significativas e irrecuperáveis.

Destarte, a instituição total a partir das suas próprias características, das práticas imanentes e de todo o seu ritual (anamnese, vestuário único, homogeneização dos sujeitos) contribui negativamente para a manutenção da identidade do paciente. Ao contrário, ela produz o que Goffman (idem, ibidem) chama de “curso natural da doen a” e a “mortifica ão do eu” do sujeito, `a medida que impõe uma identidade outra, que é a institucional.

Alguns exemplos de situações que contribuiriam para a mortificação do eu:
- As práticas padronizadas nestes lugares;
- A perda do nome;
- O confisco de bens pessoais, ou seja, a separação entre a pessoa e as suas coisas;
- Exposição contaminadora, em que o sujeito é obrigado a conviver com coisas com as quais não se identifica e mantinha certo distanciamento (sujeira, alimentos estragados...);
- Perturbação entre o ator individual e o seu ato. Em muitos casos as atitudes dos sujeitos são usadas contra eles próprios, seja para ridicularizá-los ou castigá-los.

Tudo o que vimos citando sobre as características do manicômio converge num processo de institucionalização em que não ficam claramente evidentes quais os sintomas que o doente apresenta referentes à doença mental e quais são decorrentes da sua institucionalização. A essa altura, o homem, já dominado pela serpente que o tomou, não consegue mais distinguir as suas vontades, necessidades, o seu desejo das normas institucionais que lhe foram impostas.

O internamento enlouquece, mas que, posto num espaço de coação, onde mortificações, humilhações e arbitrariedades constituem a regra, o homem [...] Objetifica-se gradativamente nas leis do internamento, identificando-se com elas
(Basaglia, 2005, p. 53).

E nesse jogo, a força que provoca a exclusão social dos sujeitos e os destitui de qualquer possibilidade de cidadania, enquanto autonomia, emancipação e possibilidade de fazer escolhas na vida, é a força da autoridade e do poder da psiquiatria e do manicômio lugar com extrema capacidade de desumanizar o humano - enquanto instituições sobre as quais a sociedade se ergueu.

Em suma, o manicômio surgiu como um instrumento, como tantos outros, voltado para a proteção dos cidadãos (que não devem ser perturbados) numa clara demarcação entre aqueles que a sociedade considera cidadãos e aqueles que podem ser qualquer outra coisa.

E assim, institucionalizada, a loucura passa séculos apartada do convívio social. Certamente os preceitos de Igualdade, Fraternidade e Liberdade difundidos com a Revolução Francesa, não se estenderam a este segmento (na prática não se estenderam a muitos outros). Ao contrário, a cidadania moderna e os preceitos que emergem neste contexto foram o argumento que justificou a exclusão da loucura do tecido social.

Em suma, a universalização dos ideais advindos com a Revolução Francesa no século XVIII é de difícil compatibilidade com a racionalidade imposta pelas das leis do mercado.

A criação da categoria de doença mental traria consigo, portanto, como uma marca congênita, o movimento de exclusão. Através dela, a psiquiatria teria oferecido uma solução racional ao dilema da sociedade burguesa emergente: como conciliar os preceitos de liberdade e igualdade com os processos reais de exclusão os loucos não são iguais, nem livres; são aliens, alienados.
(Bezerra, 1992, p. 118).

Com efeito, “a assistência psiquiátrica mergulha [...] no longo sono [...] e não considero exagero afirmar que deste pesadelo só começará a despertar na época da segunda grande guerra” (Resende, 2000, p.29). Com isto a experiência da loucura silenciada por um longo tempo, posto que “a linguagem da psiquiatria, que o monólogo da razão sobre a loucura, só se pode estabelecer sobre tal silêncio” (Foucault, 1961, p. IV)."

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Fonte:
Tathiana Meyre da Silva Gomes: "DE CIDADÃO E LOUCO... O DEBATE SOBRE A CIDADANIA DO LOUCO A PARTIR DO CASO DO CENTRO DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL". (Dissertação apresentada ao Programa de Estudos Pós-Graduados da Escola de Serviço Social da Universidade Federal Fluminense como requisito parcial para obtenção do Grau de Mestre. Área de Concentração: Política Social. Orientadora: Profª. Dra. Lenaura de Vasconcelos Costa Lobato). Niterói, 2006.

Nota
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