Sociedade de controle



“Em Deleuze, a Sociedade de Controle constitui um aprimoramento das Biopolíticas e do poder disciplinar. Segundo ele,

“Foucault situou as sociedades disciplinares nos séculos XVIII e XIX; atingem seu apogeu no início do século XX. Elas procedem à organização dos grandes meios de confinamento. O indivíduo não cessa de passar de um espaço fechado a outro, cada um com suas leis [...] Mas o que Foucault também sabia era da brevidade deste modelo: ele sucedia às sociedades de soberania cujo objetivo e funções eram completamente diferentes (açambarcar, mais do que organizar a produção, decidir sobre a morte mais do que gerir a vida); [...] Mas as disciplinas, por sua vez, também conheceriam uma crise, em favor de novas forças que se instalavam lentamente e que se precipitariam depois da segunda Guerra mundial: sociedades disciplinares é o que já não éramos mais, o que deixávamos de ser.”
(DELEUZE, 1998: 219).

O autor inicia a caracterização das Sociedades de Controle apontando que a crise generalizada das diversas instituições (Escola, Hospital, Empresa, Fábrica, Prisão, Família) indica indubitavelmente estarem condenadas. Sua resiliência mantém-se através de uma constante necessidade por reformas, reformulações, atualizações – supostamente necessárias, segundo o autor – “Trata-se apenas de gerir sua agonia e ocupar as pessoas, até a instalação das novas forças que se anunciam.” (DELEUZE, 1998: 220).

A referência ao “Controle”, Deleuze credita a Burroughs, “‘Controle’ é o nome que Burroughs propõe para designar o novo monstro, e que Foucault reconhece como nosso futuro próximo” (DELEUZE, 1998:220), e as idéias originais sobre seus dispositivos a Virilio: “Paul Virilio também analisa sem parar as formas ultra-rápidas de controle ao ar livre, que substituem as antigas disciplinas que operavam na duração de um sistema fechado” (DELEUZE, 1998:220).

As características mais marcantes descritas por Deleuze, em contraste com as Sociedades Disciplinares são:

1) Continuidade e fluidez
Ao passo que nas Sociedades Disciplinares a incursão em um novo espaço representava uma estaca-zero onde o sujeito iria, novamente, iniciar-se em processos de sujeição, a Sociedade de Controle é capaz de compatibilizar, adequar e ligar as diferentes fases e posições do sujeito. “Os confinamentos são moldes, distintas moldagens, mas os controles são uma modulação, como uma moldagem auto-deformante que mudasse continuamente a cada instante, ou como uma peneira cujas malhas mudassem de um ponto a outro. “(DELEUZE, 1998: 221).

As pequenas rupturas das Sociedade Disciplinares são “corrigidas”. Através delas e de sua molaridade, muitas brechas, muitos escapes, muitas micro-fissuras eram possíveis.

2) Interminável
Nas Sociedades de Controle nada mais se termina, a idéia de término ou finalização é suprimida. Reside um infindável estado de “há ainda mais a se fazer”. “Nas sociedades de disciplina não se parava de recomeçar (da escola à caserna, da caserna à fábrica), enquanto nas sociedades de controle nunca se termina nada, a empresa, a formação” (DELEUZE, 1998:221).

A doença na Sociedade de Controle não é um antígeno que invade o corpo, nele progride, e pode ser derrotado pela medicina; é uma “medicina ‘sem médico nem doente’, que resgata doentes potenciais e sujeitos à risco” (DELEUZE, 1998:225), ação preventiva, onde todos estão doentes em pequenos graus, e suas doenças são controladas continuamente sem nunca se extinguirem finalmente, encontrando, no máximo, em um nível “sob controle”; A educação contínua, semelhantemente, não encontra prazo para findar-se; a velhice recebe um novo nome cheio de luz e vitalidade: a “melhor idade”.

Este estado interminável invoca, convoca e engaja o sujeito, lhe mantendo preso as sujeições estabelecidas (o faz, e lhe mantém dócil e útil); retira de todo o funcionamento, a etapa que o libera destas relações e possibilita qualquer tipo de escape. Segundo Passetti,

“No regime do controle não se deve ter nada acabado, ao contrário, ele se fortalece por meio da noção de inacabado, convocando a todos a participarem ativamente da busca por maior produtividade e confiança na integração. Não se pretende mais docilizar, apenas criar dispositivos diplomáticos de construção de bens materiais e imateriais que contemplem a adesão de todos.”
(PASSETTI, 2003:30).

Se a Biopolítica investia na vida, em uma equação “fazer viver, e deixar morrer”, os sistemas de controle inventam o “fazer viver, e evitar ou impedir de deixar morrer”. Isto é, enquanto as Sociedades de Soberania alimentavam-se do poder sobre a morte, e as Sociedades Disciplinares do poder sobre a vida, as Sociedades de Controle sustentam-se do “poder contra a morte”.

Paula Sibilia desenvolve uma pesquisa intitulada “O homem pós-organico: corpo, subjetividades e tecnologias digitais”, onde investiga as técnicas através das quais os poderes-saberes contemporâneos têm se dirigido progressivamente não só para alongar a vida, mas impedir a morte, ou muitas vezes, tornar a vida possível sem o corpo físico e perecível, com o intuito de produzir um sujeito dócil e útil por um tempo prolongado que vá além do que a vida em termos orgânicos, “naturais” e “criada por Deus”, permitiria. Termos como “nível de morte” ou “autorização para reviver” já circulam fluentemente nos saberes e práticas médicas, segundo ela.

3) Amostras e Perfis
O termo “individuo”, na Sociedade de Controle, perde seu sentido. Ele é próprio de uma dicotomia válida apenas até as Sociedades Disciplinares, que também não viam, entre ele e as massas (ou comunidades e coletivos), uma oposição conceitual.

Uma pista surge da comparação entre as lógicas de funcionamento do regime disciplinar e da sociedade de controle. A primeira delas opera por moldes e visa à adequação às normas, pois é ao mesmo tempo massificante e individualizante: em um bloco único e homogêneo (a massa) são modelados os corpos e as subjetividades de cada indivíduo em particular. Na sociedade contemporânea, todavia, tanto a noção de massa quanto a de indivíduo estão perdendo força. No lugar dessas figuras, outras emergem. O papel do consumidor, por exemplo, assume uma relevância cada vez maior. Em vez de integrar uma massa – como os cidadãos dos Estados-nação da era industrial – ele faz parte de diversas amostras, nichos de mercado, segmentos de público, targets, bancos de dados.” (SIBILIA, 2002:33)

Substituem-se por indivíduos, a idéia de “perfis”, isto é, o conjunto de registros que o localizam em uma grande “amostra” ou na intersecção de várias destas.

“Nas sociedades de controle, ao contrário, o essencial não é mais uma assinatura e nem um número, mas uma cifra: a cifra é uma senha, ao passo que as sociedades disciplinares são reguladas por palavras de ordem (tanto do ponto de vista da integração quanto da resistência). A linguagem numérica do controle é feita de cifras, que marcam o acesso à informação, ou a rejeição. Não se está mais diante do par massa-indivíduo
.” (DELEUZE, 1988: 222)

As palavras de ordem, citadas por Deleuze, são os elementos integradores em um discurso; as formulações subjetivas circulando sociamente que fazem engajar, mobilizar, lutar. Podemos fornecer, como exemplo, formulações como “Devemos lutar por nossos direitos”, ou “o que importa é a beleza interior” – tais formulações subjetivas funcionam na medida que diversos sujeitos nelas se ligam, se engajam, se mobilizam, e se dispõem a defendê-las. São, na terminologia foucaultiana, palavras de ordem: em seu nome, por elas, ou para defendê-las, o sujeito realiza algo ou deixa que realizem algo em seu lugar.

A questão das palavras de ordem em uma Sociedade de Controle está restrita ao problema do “acesso”. Enquanto trafegava por espaços fechados na Sociedade Disciplinar, neste novo regime sem espaços formais, o sujeito passa a receber autorização para “acessar” estas formulações subjetivas ou o espaço intangível onde elas se encontram, ou constitui lutas em função de sua possibilidade de acesso.

“Félix Guattarri imaginou uma cidade onde cada um pudesse deixar seu apartamento, sua rua, seu bairro, graças a um cartão eletrônico (dividual) que abriria as barreiras; mas o cartão poderia também ser recusado em tal dia, ou entre tal e tal hora; o que conta não é a barreira, mas o computador que detecta a posição de cada um, lícita ou ilícita, e opera uma modulação universal.”
(DELEUZE, 1998: 224)

Não apenas, sua identificação em uma amostra, a comprovação de sua singularidade, enquanto dada por um número e uma assinatura (signos que só poderiam ser reproduzidos por cada sujeito singular) nas Sociedades Disciplinares, seriam agora dados pela senha – algo que apenas eles teriam conhecimento.

4) Pulverização
Uma sociedade de mudanças ultra-rápidas, ágil, flexível e dispersa. Os dispositivos da Sociedade de Controle tornam-se moleculares, isto é, adquirem maior precisão, eficiência e cobertura.

“Entretanto, eles parecem ter ganhado em eficácia, permitindo exercer um controle total ao ar livre. Com a dissolução dos limites que confinavam o alcance das antigas técnicas disciplinares, muitos desses mecanismos de outrora se sofisticam, alguns se intensificam e outros mudam radicalmente. Vai perdendo força a velha lógica serial, mecânica, descontínua, fechada, esquadrinhada, geométrica, progressiva e analógica das sociedades disciplinares, vencida pelas novas modalidades digitais, contínuas, fluidas, ondulatórias, abertas, mutantes, flexíveis, autodeformantes, que se espalham aceleradamente pelo corpo social. Assim a lógica de funcionamento associada aos novos dispositivos de poder é total e constante, opera velozmente e em curto prazo. Desconhece as fronteiras: atravessa todos os espaços e todos os tempos, engolindo o ‘fora’. Por isso, a nova configuração social se apresenta como ‘totalitária’ em um novo sentido: nada, nunca, fica fora de controle. Desse modo é esboçado o surgimento de um novo regime de poder-saber, ligado ao capitalismo de cunho pós-industrial.”
(SIBILIA, 2002:29)

Os muros das Sociedades Disciplinares resistem como signos de um regimento antigo e ultrapassado. Os dispositivos de controle se pulverizam e se localizam em todos os lugares em todos os momentos. A lentidão e imprecisão dos mecanismos molares é, além de tudo, perigosa. Há uma transição gradativa de formas menos concretas/permanentes para formas mais virtuais/imanentes e efêmeras.

Nesta nova formação de dispositivos dispersos, amplos, pulverizados (fragmentados e distribuídos), ágeis, flexíveis, adaptáveis, contínuos, nada fica de fora: o fora é apenas uma condição momentânea. Toda prática não-discursiva, toda subjetividade é rapidamente tornada útil e integrada nas relações de poder."

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Fonte:
GUILHERME RANOYA: "BIOPOLÍTICA, COMUNICAÇÃO E O PODER PASTORAL". (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação, Área de Concentração Estudo dos Meios e da Produção Mediática, Linha de Pesquisa Comunicação Impressa e Audiovisual, da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do Título de Mestre em Comunicação, sob a orientação do Prof. Dr. Mauro Wilton de Sousa). São Paulo, 2009.

Nota
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A imagem (Revista "A Cigarra", 1930) inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Disponível digitalmente no site: Domínio Público

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