“Verba testamentária”: um Brás Cubas sob o olhar médico



“O conto “Verba testamentária” foi publicado originalmente em 1882, no jornal Gazeta de Notícias e reunido no volume Papéis avulsos, no mesmo ano. A história de Nicolau é narrada por um “narrador onisciente neutro”, pois ele narra os fatos da vida da personagem sem intromissões diretas, deixando que prevaleça a situação vivida pelas personagens, embora o ponto de vista seja sempre o seu e não o delas. Partindo do tempo da escrita, narra os fatos que vão da morte da personagem a seu nascimento. Nicolau é um homem de posses que decide deixar em testamento a condição de ter seu caixão fabricado por um profissional tido como de má qualidade. O narrador parte desta cláusula excêntrica para explicar que, para além da magnanimidade de um defunto que vem do além “abençoar” aquele simples operário, está uma doença, uma patologia que conformou toda a vida da personagem e explicaria aquela disposição. Nicolau, desde muito cedo, demonstraria certa debilidade orgânica, que se manifesta por um sintoma não menos inusitado. Ele destrói os brinquedos que julga melhores que os seus e ainda agride os meninos que considera ou são considerados os mais bonitos e melhores alunos. Com a idade adulta, sua doença não o leva a agredir os que considera superiores, mas a dor e os embaraços físicos que sofre são uma constante. Seus pais morrem quando tinha por volta de 20 anos e sua irmã casa-se com um médico holandês, de modo que ela e o marido passam a ser os únicos parentes próximos que se propunham a amenizar a doença do rapaz. O narrador apresenta algumas situações da vida de Nicolau; profissionais, amorosas, domésticas, e até de entretenimento, que expõem claramente as diversas manifestações de sua “patologia” constitutiva, até culminar com a verba testamentária e o pasmo do cunhado por ver a escolha por um fabricante reles.

John Gledson (2006) assinala em Papéis avulsos o interesse de Machado de Assis em lidar com a identidade nacional. Passando por “Sereníssima república”, que representa as nossas práticas eleitorais corruptas, o autor mostra como os contos “O espelho”, “Verba testamentária” e “D. Benedita” tratam da identidade nacional através de identidades pessoais. Nesse sentido, Gledson centra sua análise, sobretudo, em “Verba testamentária” e em “O espelho”, procurando, inclusive, pontos de contato entre os dois contos. Para o autor, “Verba testamentária” é ainda mais significativo, pois possui demasiadas referências históricas para serem negligenciadas. O conto de fato abrange um período bem definido da história brasileira, ao passo que “O espelho” centra-se num único acontecimento da vida da personagem. Assim, “Verba testamentária” narra fatos que vão do final do século XVIII, Nicolau nasce em 1787, e vão até 1855, quando a personagem morre. “O que Machado faz aqui, bastante claramente, é dar-nos uma interpretação satírica da história dos primeiros anos da independência.” (GLEDSON, 2006, p. 77).

Por outro lado, “Verba testamentária” permite leituras distintas e nos dá pistas do posicionamento crítico de Machado de Assis em relação às concepções científicas da época. Não há dúvida da visão crítica do escritor sobre sua sociedade e os trabalhos de Roberto Schwarz (1977, 1990) e de muitos outros nos dão provas disso. Através da estilização da realidade social, Machado de Assis expõe a violência que perpassa a estrutura social. Publicado originalmente com o subtítulo “caso pathológico dedicado à escola de medicina”, a sátira ao comportamento patológico da personagem Nicolau, ironiza a pretensão da ciência ao imputar causas orgânicas a um comportamento, em grande medida, influenciado por causas sociais, fruto de uma determinada estrutura social. Pretende-se, assim, analisar a narrativa como uma crítica de Machado ao cientificismo do século XIX, bem como apontar para uma visão mais profunda da realidade brasileira que o escritor apresenta por meio da ironia.

O narrador principia o conto reproduzindo a verba testamentária que condiciona a fabricação do caixão de Nicolau e os desdobramentos de tal disposição, desde o despeito dos demais fabricantes ao estrondo que provocou na população. Como afirma Sidney Chalhoub (2003), em relação ao testamento do Coronel Vale, em Helena (1876) que, mesmo depois de morto, dispõe a seu bel prazer da vida dos vivos, colocando Helena no seio de sua família, exercendo um poder quase divino capaz de mudar os destinos dos que lhe são inferiores. Com isso, a determinação de Nicolau pode ser pensada da mesma forma, pois, quase unanimemente (somente os demais fabricantes não concordaram), sua ação foi vista com respeito e valorização, “aquela mão, saindo do abismo para abençoar a obra de um operário modesto, praticara uma ação rara e magnânima.” (ASSIS, 1997, v. 2, p. 357-358).

O que nos chama atenção, para além do poder extra-túmulo da personagem, é o esforço do narrador em justificar o porquê do esquecimento em que a vontade de Nicolau acabou caindo, muito embora tenha corrido pelos quatro cantos, chegando até às províncias. A ironia presente nessas linhas demonstra que a ação de Nicolau tem como causa o “desejo de nomeada”, que também afligia Brás Cubas, mais do que uma causa patológica como ele começa a descrever logo em seguida. Voltaremos a esse ponto.

O narrador “diagnostica” a personagem procurando explicar seu último ato como decorrência de um mal físico.

Sim, leitor amado, vamos entrar em plena patologia. Esse menino que aí vês, nos fins do século passado (em 1855, quando morreu, tinha o Nicolau sessenta e oito anos), esse menino não é um produto são, não é um organismo perfeito. Ao contrário, desde os mais tenros anos, manifestou por atos reiterados que há nele algum vício interior, alguma falha orgânica.
(ASSIS, 1997, v. 2, p. 358).

A “falha orgânica” – uma espécie de “complexo de inferioridade”, que origina uma reação violenta a qualquer possibilidade de sentir-se inferiorizado e que impele o menino a destruir os brinquedos dos outros, mas apenas os que lhe são superiores – é sutilmente colocada em xeque quando o narrador posiciona a personagem pai de Nicolau. Embora o isente da culpa, pois sempre repreende o filho e atribua a força ao “impulso interior” de Nicolau, o narrador, ao descrever o comportamento acima de suspeitas do pai, suscita-nos associações significativas com Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), e que nos permitem questionar a causalidade puramente biológica da situação.

A primeira associação é o próprio sobrenome abreviado da personagem, que o narrador minimiza logo no início do conto ao tratar do caixão em que foi enterrado o “pobre Nicolau B. de C.”. Como o outro Brás Cubas, Nicolau também é filho de um “honrado negociante ou comissário”, possuidor de certa proeminência, mas o que mais nos atrai a atenção é o desejo de titulação tão peculiar aos aspirantes à nobreza do início do século XIX. Conforme John Gledson (2006), a prática de criar e vender falsas honrarias é peculiar a monarquias absolutistas e é um tema que Machado de Assis também apresenta em “O alienista”, através da tributação do uso de enfeites nos cavalos para angariar a verba necessária à construção da Casa Verde, o hospício de Itaguaí. Já em “Verba testamentária” o narrador, ironicamente, descreve a situação de falta de recursos para construção de um cais e o modo como o vice-rei, o conde de Resende, resolveu o problema. “Homem de estado, e provavelmente filósofo, engendrou um expediente não menos suave que profícuo: distribuir, a troco de donativos pecuniários, postos de capitão, tenente e alferes.” (ASSIS, 1997, v. 2, p.358).

Para Gledson (2006, p. 77), parafraseando o narrador, essa maneira “profundamente filosófica” de angariar fundos, depende do orgulho, da inveja e do gosto por uniformes vistosos. O autor chega a assinalar a posição do pai de Nicolau, mostrando sua situação como significativa de uma classe dependente, ávida por imitar a nobreza ou a alta burguesia, associando-o inclusive à postura do pai de Brás Cubas. Entretanto, o autor não desenvolve o argumento, mas nos dá pistas importantes para compreensão do comportamento “doentio” de Nicolau.

Roberto Schwarz (1990) apresenta a crítica que Machado de Assis faz ao Naturalismo inspirando-se nele para explicar a origem do caráter de Brás Cubas. Rememorando sua infância, o meio familiar e a educação que tivera, Brás, com toda sua volubilidade, afronta qualquer tipo ideal, ressaltando apenas os defeitos que se combinaram para sua formação, pautando-se nos postulados da ciência, inclusive a idéia de hereditariedade que ele percebe na melancolia recebida da mãe e na vaidade do pai. Contudo, como bem pontua o autor, esse tipo de descrição e desenvoltura, menos direta e atenta às escolas raciais, antes de significar um desejo de Machado de “atenuar ou idealizar”, ressalta sua crítica incisiva, apontando para as causas sociais que permitiram nascer a flor dos Brás Cubas.

[...] Machado quer bater o Naturalismo no terreno mesmo da descrição exata, do rigor explicativo, da percepção do escabroso, ainda que sem quebra de decoro. Assim, aos determinismos toscos de clima e raça ele opõe a força deletéria de formas culturais atrasadas, as quais estuda em monografias de poucas linhas, muito substanciosas, onde se combinam a intenção localista e o espírito analítico e crítico.
(SCHWARZ, 1990, p. 123).

Assim, o autor ressalta a influência social transmitida pelo que há de pior no círculo doméstico que cerca Brás Cubas, herança mais que genética de um comportamento de classe nos seus diferentes matizes. Da mãe submissa ao tio libertino entre as escravas e da superioridade de aparência na figura do tio cônego, mais afeito ao culto que ao sentido espiritual, nota-se que, “O conjunto forma um ambiente social, dotado de força causadora, a ser contrastado com a causação quase física, e por isso mesmo ‘científica’, proposta pelo Naturalismo”. (SCHWARZ, 1990, p. 124, grifo do autor). O que temos no conto? Retomando a determinação do vice-rei, o pai de Nicolau percebe a importância de se figurar entre os grandes nomes, tal qual o pai de Brás Cubas, que criou uma genealogia nobre para explicar o nome Cubas, que lhe cheirava “excessivamente a tanoaria” (ASSIS, 1978, p. 18).

Divulgada a resolução, entendeu o pai do Nicolau que era ocasião de figurar, sem perigo, na galeria militar do século, ao mesmo tempo que desmentia uma doutrina bramânica. Com efeito, está nas leis de Manu, que dos braços de Brama nasceram os guerreiros, e do ventre os agricultores e comerciantes; o pai do Nicolau adquirindo o despacho de capitão, corrigia esse ponto da anatomia gentílica.
(ASSIS, 1997, v. 2, p. 358-359).

A ironia fina desta passagem aponta para o que assinalamos na análise empreendida por Roberto Schwarz (1990). Antes da causa científica para a doença de Nicolau, não há como ignorar a causa social, insinuada neste trecho, e por isso mesmo de grande importância. Hipótese reiterada na passagem em que, outro comerciante – que o narrador ressalta ser familiar e amigo do pai de Nicolau, mas que em tudo compete com ele – decide comprar a patente de alferes para seu filho de apenas sete anos, para compensar o fato de ter adquirido o título depois do concorrente. A narração do fato culmina com a primeira grande exposição da “inveja patológica” de Nicolau.

Tudo correu em segredo; o pai de Nicolau só teve notícia do caso no domingo próximo, na igreja do Carmo, ao ver os dous, pai e filho, vindo o menino com uma fardinha, que, por galanteria, lhe meteram no corpo. Nicolau, que também ali estava, fez-se lívido; depois, num ímpeto, atirou-se sobre o jovem alferes e rasgou-lhe a farda, antes que os pais pudessem acudir. Um escândalo
. (ASSIS, 1997, v. 2, p. 359).

Nesse sentido, podemos pensar a formação de Nicolau com base na idéia de habitus, pois como “lei imanente”, sedimentada nos agentes em sua educação primeira (BOURDIEU, 1994), evidencia que seu comportamento não advém de um mal interno e/ou biologicamente definido. Seu pai e o amigo comerciante também têm lá seu comportamento “patológico”, que os impele a buscar por falsas honrarias, bem como a se mostrarem ávidos por ostentar uma superioridade qualquer, tal qual o pai de Brás Cubas, capaz de inventar uma genealogia a fim de figurar entre os grandes nomes do tempo, sendo o mais interessante a sua crença sincera na própria invenção.

Depois do incidente, Nicolau apanha muito e é trancado em casa, e o narrador refere a “normalidade” do comportamento da personagem fora daquele “sestro mórbido”, mas após algum tempo, o pai decide colocar Nicolau na escola.

– Deixe-o comigo, disse o professor; deixe-o comigo, e com esta (apontava para a palmatória)... Com esta, é duvidoso que ele tenha vontade de maltratar os companheiros. Frívolo! Três vezes frívolo professor! Sim, não há dúvida, que ele conseguiu poupar os meninos bonitos e as roupas vistosas, castigando as primeiras investidas do pobre Nicolau; mas em que é que este sarou da moléstia? Ao contrário, obrigado a conter-se, a engolir o impulso, padecia dobrado, fazia-se mais lívido, com reflexos de verde bronze; em certos casos, era compelido a voltar os olhos ou fechá-los, para não arrebentar, dizia ele
. (ASSIS, 1997, v. 2, p. 359).

Essa descrição vai de encontro com o tipo de educação que a medicina social visava combater. Como afirma Jurandir Freire Costa (1999, p. 71), a higienização da família colonial objetivava formar o futuro cidadão e reduzir o poder do patriarca em favor do poder do Estado. As idéias científicas européias, revestidas com a aura da verdade e da modernidade, eram utilizadas pelos higienistas como forma de se infiltrar na família sem serem vistos como inimigos. Assim, mostravam que era por ignorância, mas também irresponsabilidade, quando não acatavam as prescrições médicas, que os pais e educadores erravam na formação do indivíduo. Foi através do desconhecimento que a medicina pôde dominar a família, tal qual no caso da loucura, criando infinitas classificações. “Os higienistas, para manterem viva a situação de tradutores exclusivos do obscuro, vão ser obrigados a inventar, cada vez mais, fatos, distinções e classificações novas do corpo dos indivíduos e do sentimento da família”. É exatamente a essa ignorância que se refere o narrador em relação ao comportamento de Nicolau, uma vez que o “impulso” do rapaz foi apenas parcialmente contido pelo tipo de educação “atrasada” do professor.

Por outro lado, se deixou de perseguir os mais graciosos ou melhor adornados, não perdoou aos que se mostravam mais adiantados no estudo; espancava-os, tirava-lhes os livros, e lançava-os fora, nas praias ou no mangue. Rixas, sangue, ódios, tais eram os frutos da vida, para ele, além das dores cruéis que padecia, e que a família teimava em não entender.
(ASSIS, 1997, v. 2, p. 359-360).

O garoto torna-se homem, mas sua patologia não o abandona. Se agora é capaz de poupar os outros de suas agressões, seu sofrimento não se extinguiu, apenas tem outras causas e gera outros tipos de reação.

Tinha ocasiões de cambalear; outras de escorrer-lhe pelo canto da boca um fio quase imperceptível de espuma. E o resto não era menos cruel. Nicolau ficava então ríspido; em casa achava tudo mau, tudo incômodo, tudo nauseabundo; feria a cabeça aos escravos com os pratos, que iam partir-se também, e perseguia os cães, a pontapés; não sossegava dez minutos, não comia, ou comia mal.
(ASSIS, 1997, v. 2, p. 360).

Seu sofrimento é minuciosamente descrito pelo narrador, que oscila entre o tipo de narrador neutro e o intruso, pois apresenta uma percepção maior da situação que a personagem, sendo inclusive, durante a maior parte da narrativa o único a diagnosticá-lo como doente. Contudo, novamente ele insinua causas e sintomas de um mal antes social que orgânico. O fato de um membro da elite descontar seus “infortúnios” em seres que considera inferiores, como escravos e cães, colocados na descrição do narrador em pé de igualdade, denota uma crítica sutil de Machado de Assis às teses médicas profusamente difundidas naquele contexto, preocupadas em disciplinar os indivíduos da elite, sem questionar a violência com que subjugavam os indivíduos das outras classes sociais, tidos como biologicamente inferiores, reiterando sempre os privilégios de classe, raça e gênero.

Interessante notar que o cunhado de Nicolau, médico holandês, é a única personagem a encarar o sofrimento de Nicolau como derivado de uma doença. Esse tipo de conceitualização ao relacionar físico e moral permitiu à medicina ater-se ao corpo e ao sentimento, afirmando que uma lesão física surtia efeitos na emoção do indivíduo e vice- versa. “A noção de ‘paixão’ estabelecia o vínculo material e teórico entre os dois fenômenos e legitimava a extensão da ação médica ao comportamento e às emoções.” (COSTA, J., 1999, p. 142). Várias emoções são fontes de desequilíbrio, colocando a saúde do indivíduo em perigo. Os exemplos descritos por Jurandir Freire Costa (1999), encontrados em teses médicas, ainda na primeira metade do século XIX, poderiam ser associados ao comportamento de Nicolau. O autor de uma dessas teses que discorre sobre as emoções, ao tratar da ira, acreditava que esta seria capaz até de matar, gerando hemorragias e convulsões, entre outros males. Já o zelo (ciúme) causa um espasmo geral e origina a dissimulação e a inveja. Diagnóstico perfeitamente adequado a Nicolau, como nas ocasiões em que, de “lívido”, ia a “verde bronze”. Além dessas manifestações, havia situações crônicas que afligiam as pessoas, seja pela força ou pela fraqueza, e somente ao médico caberia medir o grau de normalidade das paixões, “[...] pelo que o médico deve exercitar-se em ler no mostrador do coração os arcanos que o pudor, a honra, a pusilanimidade ou o crime buscam em não ocultar aos olhos de um atento e versado fisionomista.” (FIGUEIREDO, 1836, p. 4-5 apud COSTA, J., 1999, p. 143, grifo do autor). Tal qual o cunhado de Nicolau diagnostica e prescreve.

Na opinião deste, a moléstia do Nicolau estava descoberta; era um verme no baço, que se nutria da dor do paciente, isto é, de uma secreção especial, produzida pela vista de alguns fatos, situações ou pessoas. A questão era matar o verme; mas, não conhecendo nenhuma substância química própria a destruí-lo, restava o recurso de obstar à secreção, cuja ausência daria igual resultado.
(ASSIS, 1997, v. 2, p. 361).

A “descoberta” do verme estava em sintonia com um dos modos como a medicina entende a doença e que, segundo Georges Canguilhem (1995), ainda marca o pensamento médico. Assim, a doença é vista como um objeto estranho que entra e sai do corpo humano. Mas, no caso do Nicolau, como impedir tal secreção? E aqui entra a ironia machadiana satirizando o diagnóstico médico, que ao mesmo tempo naturaliza atitudes e comportamentos de uma elite bem brasileira. Logo, é necessário fazer Nicolau sentir-se o mais superior dos homens. Aí entram várias receitas: a noiva mais bela, um jornal forjado apresentando notícias agradáveis e, se possível, com louvores ao doente, nome em etiqueta de modista famosa, cartas de amor anônimas, enfim, tudo o que tornasse Nicolau o mais alto membro de sua classe social, uma verdadeira prescrição médica da “Teoria do medalhão”.

De acordo com John Gledson (2006), a identidade individual de Nicolau representaria a identidade nacional brasileira. Assim, ao associar a narrativa ao conto o “O espelho”, ressalta os símbolos históricos que Machado de Assis acentuaria, em ambos, sinalizando para a questão de uma identidade nacional. Em “Verba testamentária”, o impasse de Nicolau mostra sua relação problemática com modelos que aceita e rejeita. Estendendo sua análise para além do aspecto psicológico, Gledson pauta-se nas referências históricas recorrentes no conto e nos dá uma interpretação mais sociológica do fato. Assim, a aceitação dos modelos faz parte de uma sociedade de passado colonial, mas a rejeição implica num esforço de ser independente e original, situação que, no limite, reitera o poder simbólico desses mesmos modelos.

Num sentido, portanto, “Verba testamentária” pode ser interpretado muito convincentemente como a história do aparecimento – sem dúvida problemático nessa altura – de uma consciência nacional não só no contexto dos acontecimentos políticos, mas também no âmbito mais extenso da história intelectual e literário da nação
. (GLEDSON, 2006, p. 86).

Mesmo afeitos à interpretação da personalidade individual como metáfora de uma identidade nacional, não podemos negligenciar os pontos de contato entre Nicolau B. de C. e Brás Cubas. Além da origem e da genealogia similar, essas duas personagens nos dão mostras de um comportamento de elite, autoritário e extremamente violento para com os que, de alguma forma, lhe são inferiores; e complacente, e até reverente, ao que considera superior. A interpretação mais detalhada dos comportamentos de Nicolau permite-nos encontrar sentidos no conto machadiano que podem sinalizar para uma visão crítica não só dos acontecimentos históricos da primeira metade do século XIX, mas do momento de sua escrita. Como o próprio Gledson assinala, Papéis Avulsos, publicado um ano depois de Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), possui, como o romance, uma “energia, acima de tudo, satírica”. Assim, sua sátira reporta-se ao momento presente, bombardeado pela crença na ciência, sendo que sua ironia é muito mais significativa, quanto mais nos detemos à urdidura do conto. A sátira que Machado de Assis apresenta não aparece isolada, pois envolve o que está implícito nas explicações científicas em voga.

O cunhado médico, já intrigado com a possibilidade de uma doença, acredita na mudança de clima como paliativo e sugere ao “paciente”, que entre na diplomacia. Nicolau aceita a proposta e procura o ministro de estrangeiros. Todavia, a situação do rebuliço causado pela segunda queda de Napoleão, que presencia, impede-o.

A figura do ministro, as circunstâncias do momento, as reverências dos oficiais, tudo isso deu um tal rebate ao coração de Nicolau, que ele não pôde encarar o ministro. Teimou, seis ou oito vezes, em levantar os olhos, e da única em que o conseguiu, fizeram-se-lhe tão vesgos, que não via ninguém, ou só uma sombra, um vulto, que lhe doía nas pupilas, ao mesmo tempo que a face ia ficando verde. Nicolau recuou, estendeu a mão trêmula ao reposteiro, e fugiu.
(ASSIS, 1997, v. 2, p. 360).

Já discutimos na seção 4.3, na análise de “O enfermeiro”, a “filosofia da ponta do nariz” de Brás Cubas, na qual, o indivíduo centra-se em si mesmo e subordina tudo o mais a seus próprios interesses. Aqui a vemos aplicada plenamente. A diferença está na perspectiva de quem a vê. Se Brás Cubas a explica e justifica, Nicolau a exercita, mas sob o olhar de fora, tanto de um narrador onisciente, mas também do médico, que já desconfia de uma falha orgânica. Vemos aqui a explicação ou justificativa científica para um fenômeno largamente apresentado pelos membros da elite brasileira. A ironia fina está aí. No momento em que Machado de Assis descreve um tipo semelhante a Brás Cubas, mas visto pelo olhar médico, o comportamento condenável de visar apenas seus interesses é justificado pela ciência como resultado de uma afecção orgânica. O paliativo é encontrado pelo próprio Nicolau, que escolhe por amigos os tipos mais vulgares. Com eles, não padecia, não olhava para o próprio nariz, mas não porque ele os visse como seus iguais.

Além disso, não só eles lhe poupavam a natural irritabilidade, como porfiavam em tornar-lhe a vida, se não deliciosa, tranqüila; e para isso, diziam-lhe as maiores finezas do mundo, em atitudes cativas, ou com uma certa familiaridade inferior. Nicolau amava em geral as naturezas subalternas, como os doentes amam a droga que lhe restitui a saúde [...].
(ASSIS, 1997, v. 2, p. 361).

Esse trecho é claro. A “necessidade” de se olhar para o próprio nariz (que em Nicolau, é sinônimo de sofrimento físico) é suprida quando se vale de as prerrogativas de poder, trazendo para si as “naturezas subalternas”107. Sua posição na hierarquia social é assim reafirmada. Na forma de habitus incorporado, mesmo quando suas práticas aparentemente contradizem seu posicionamento, Nicolau traz em si as disposições de sua classe social que, embora não decorram de sua obediência às regras estabelecidas e prescritas por seu cunhado, acabam reafirmando a sua posição na estrutura social.

Machado de Assis nos mostra, então, como o discurso científico é utilizado para justificar um comportamento de classe à brasileira, que agride os escravos para em seguida tratá-los com “alma de patriarca” e que “acaricia paternalmente” as “naturezas subalternas”, cuja subalternidade não só justifica, mas também reforça. Aí está a sátira de um escritor crítico de uma sociedade marcada pela violência de classe, raça e gênero, mas que não se tira ao “otimismo triunfante” dos que crêem na ciência, na modernidade como panacéia apta a corrigir os males sociais fortemente arraigados. “O convívio regular, articulado em profundidade, entre os aspectos iníquos da sociedade brasileira e os seus lados modernos e refinados está no centro da literatura machadiana.” (SCHWARZ, 1997, p. 36).

Com o tempo os mecanismos prescritos pelo médico-cunhado perdem o efeito e o Nicolau começa a achar tantos elogios um exagero. Morre a mulher, envolve-se novamente em política e a deixa com a Maioridade. Completamente tomado pela doença, Nicolau sai pouco e, nas poucas vezes em que vai ao teatro, sofre com o simples ruído dos aplausos. Depois começa a descuidar-se e passa a contratar os serviços dos mais ínfimos profissionais, inclusive para seu caixão, motivo de profunda indignação por parte do cunhado. No final, o narrador apresenta o diagnóstico do cunhado, ironizando-o. “A secreção do baço tornou-se perene, e o verme reproduziu-se aos milhões, teoria que não sei se é verdadeira, mas enfim era a do cunhado.” (ASSIS, 1997, v. 2, p. 363).

O conto termina com a indignação do cunhado ao saber da disposição do falecido. Quase como uma anedota, este conto expõe a força da crítica machadiana aos preceitos cientificistas. Por meio da sátira, o escritor representa os membros da elite brasileira na figura de Nicolau, e acaba por sintetizar a relação que este grupo estabelece com a ciência, de modo a deixar entrever, como os postulados científicos são utilizados para justificar uma ordem social historicamente pautada na desigualdade e mantida com o uso da violência. Dado o momento histórico e o papel que as “verdades científicas” passam a desempenhar a partir de então, o que se pode perceber é que elas acabam por assumir um importante papel de justificação e mesmo de naturalização das hierarquias sociais e da própria violência."

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Fonte:
ELIANE DA CONCEIÇÃO SILVA: ESTUDOS” DA VIOLÊNCIA: UMA ANÁLISE SOCIOLÓGICA DOS CONTOS DE MACHADO DE ASSIS". (Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Mestre em sociologia. Linha de pesquisa: Cultura e ideologia Orientador: Prof. Dr. Milton Lahuerta Bolsa: CNPq/Fundação Biblioteca Nacional). Araraquara – S.P., 2008.

Nota
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A imagem ( Augusto Malta: Machado de Assis aos 67 anos com Joaquim Nabuco 1906: Biblioteca Nacional Digital do Brasil) inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

Disponível digitalmente no site: Domínio Público

2 comentários:

  1. Gostei muito desta análise de texto de "Verba Testamentária".Me ajudou muito a enxergar pontos que antes eu não via.Jogou boa luz na interpretação.
    Gostaria,se possível,que me ajudasse num ponto do texto,em que tive dificuldade de entender.A certa altura o texto diz:"Conquanto pareça temerário dizer as causas que levaram o Nicolau para o Campo da Aclamação,na noite de 6 para 7 de abril,penso que não estará longe da verdade quem supuser que -foi o raciocínio de um ateniense célebre e anônimo."
    Minha pergunta é : Quem é esse ateniense célebre e anônimo? É Sócrates? Esse comentário é em referência à célebre frase : "só sei que nada sei"? Gostei muito do texto acima.Apenas fiquei com essa dúvida,em relação a esse conto "Verba Testamentária".
    Obrigado,
    Antonio

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