As lembranças de Miguilim



“A narrativa “Campo geral” não é formada somente por um movimento memorialístico. Além da memória rosiana e a do adulto, Miguel, o menino Miguilim também dá livre vazão à corrente de pensamentos e tece relações entre passado e presente. Miguel, nesse sentido, é aquele que intermedeia esse movimento, já que é aquele quem revela as considerações feitas por Miguilim lá no passado. O movimento do menino configura-se como uma espécie de microcosmos do movimento “maior” realizado por Miguel ao contar as memórias. Das lembranças de Miguilim reveladas ao longo da narrativa, àquilo que se pode entender como sendo um episódio que formará uma possível lembrança, é possível entender alguns dos pontos instáveis das emoções de Miguilim que substanciam a narrativa.

Durante toda a trama pode-se notar a existência de trechos que remetem aos instantes em que o garoto Miguilim tece as próprias lembranças. O caminho percorrido pela personagem mirim, ao criar uma espécie de arranjo para as mesmas, parece ser reproduzido (e não produzido) pelo presente da narrativa. A evocação dessas lembranças parece atender ao pedido desse presente. Na Poética (1951), Aristóteles apresenta um conceito de episódio que já foi levemente explicitado neste trabalho, que parece ser, aqui, de grande valia para que se possa entender a relação entre o presente narrativo e as lembranças de Miguilim. Ao exemplificar o conceito, Aristóteles faz suas considerações por meio da construção de um exemplo baseado na Odisséia. Diz o filósofo, ao diferenciar a configuração do episódio no drama e na epopéia, que:

De facto, breve é o argumento da Odisséia: um homem vagueou muitos anos em terras estranhas, sempre sob a vigilância de Poseidon, e solitário; entretanto, em casa, os pretendentes de sua mulher lhe consomem bens e armam traições ao filho, mas finalmente regressa à pátria, e depois de se dar a conhecer a algumas pessoas, assalta os adversários e enfim se salva, destruindo os inimigos. Eis o que é o próprio assunto; tudo o mais são episódios
(ARISTÓTELES,1951, p. 98-99, grifo nosso).

Partindo da semelhança, da raiz comum entre a epopéia e a novela de Rosa, algumas considerações relativas a episódio elaboradas por Aristóteles ainda podem ser feitas de forma a contribuir para o entendimento das lembranças de Miguilim na novela rosiana. Entende-se, dessa forma, o episódio tal qual Aristóteles explicita, considera-se, aqui, que as lembranças do menino são em “Campo geral” ações que, “conexas com a principal”, ou seja, a infância de Miguilim via memória de Miguel, variam “o interesse do auditor [/ leitor], enriquecendo a matéria com episódios diversos”, episódios esses que são evocados pela história narrada pelo fato de serem, de alguma maneira, relacionados à mesma, o que aumenta, dessa forma, sua extensão (ARISTÓTELES, 1951, p. 114).

Mesmo que as idéias de Miguilim não se mostrem claras ou precisas em meio à indefinição de seus sentimentos, o narrador “cede espaço" à voz do garoto para que ele exponha as suas lembranças. Ou seja, nota-se que, por mais que algumas dessas lembranças não sejam concatenadas a ponto de fazer sentido para Miguilim, no momento em que ele vive a história no passado (em relação à história narrada), a tecedura dos fatos referentes à escolha de quais quadros irão compor a lembrança evocada, mostra-se perspicaz, que por meio dessa construção é possível ao leitor descobrir alguns dos terrenos movediços da infância de Miguilim que serão percorridos e, por isso, enaltecidos pelo narrador ao longo da construção da trama. É esse movimento de olhar para trás que, de certa forma, identifica e retrabalha esses terrenos:

Quando completara sete, havia saído dali, pela primeira vez: o tio Terêz levou-o a cavalo para ser crismado no Sucurijú, por onde o bispo passava. Da viagem, que durou dias, ele guardara aturdidas lembranças, embaraçadas em sua cabecinha. De uma, nunca pôde se esquecer: alguém que já estivera no Mutúm, tinha dito: – ‘É um lugar bonito, entre morro e morro, com muita pedreira e muito mato, distante de qualquer parte; e lá chove sempre...’
(ROSA, 2002, p. 27).

Viagem, beleza e sabedoria. Três dos pontos mais intrigantes e angustiantes que serão, ora e outra, evocados durante a trama e que, por isso, merecem ser desenvolvidos e analisados.

Neste excerto, que aparece logo no início, nota-se que a beleza, advinda da opinião que vem de fora do costumeiro círculo social do qual o menino faz parte, é enaltecida em detrimento da opinião da mãe sobre o mesmo lugar. Opinião essa que é revelada para o leitor, no momento em que Miguilim fala para Nhanina sobre a opinião do forasteiro:

A mãe não lhe deu valor nenhum, mas mirou triste e apontou o morro; dizia: - “Estou sempre pensando que por detrás dele acontecem outras coisas, que o morro está tapando de mim, e que eu nunca hei de poder ver...” Era a primeira vez que a mãe falava com ele um assunto todo sério. No fundo de seu coração, ele não podia, porém, concordar, por mais que gostasse dela: e achava que o moço que tinha falado aquilo era que estava com a razão. Não porque ele mesmo Miguilim visse beleza no Mutúm – nem sabia distinguir o que era um lugar bonito e um lugar feio. Mas só pela maneira como o moço tinha falado: de longe, de leve, sem interesse nenhum; e pelo modo contrário de sua mãe – agravada de calundú e espalhando suspiros, lastimosa
(ROSA, 2002, p. 28-29, grifo nosso).

Essa lembrança de Miguilim em relação à beleza do lugar revela uma característica do garoto: ele valoriza essa espécie de saber que vem de fora. Ao tomar partido da opinião “forasteira”, que frisava a beleza do Mutúm, enaltecendo positivamente o lugar, em detrimento à materna, caseira, vinda de alguém que tanto gostava, constrói-se uma das primeiras pistas da narrativa que revelam essa preferência do garoto por aquilo que é de fora do Mutúm. Apesar desse desacordo entre a opinião da mãe e a do filho, nota-se que ambos têm uma espécie de encanto por aquilo que é de fora do Mutúm, mas se a mãe demonstra querer saber o que existe por trás do morro e, de certa forma, “culpa” essa formação geográfica pelo fato de ela desconhecer o que há além do mesmo, Miguilim parece evidenciar seu encanto por aquilo que está fora do Mutúm, sem, contudo, desmerecer e/ ou culpar o local que mora por não ter, naquele momento de sua vida, a oportunidade de poder conhecer outras paisagens.

Ou seja, Miguilim parece querer mais do que o saber que vem de fora, parece ansiar, da mesma forma que a mãe dele, “’Estou sempre pensando que por detrás dele [morro] acontecem outras coisas, que o morro está tapando de mim, e que nunca hei de poder ver’” (ROSA, 2002, p. 28-29), em querer saber o que tem por trás do morro, como se pode perceber por meio de outro trecho em que Miguilim fala a respeito do mar:

A gente olhava Mãe, imaginava saudade. Miguilim não sabia muitas coisas. – “Mãe, a gente então nunca vai poder ver o mar, nunca?” Ela glosava que quem-sabe não, iam não, sempre, por pobreza de longe. – “A gente não vai, Miguilim” – o Dito afirmou: – “Acho que nunca! A gente é no sertão. Então por que é que você indaga?” “– Nada, não, Dito. Mas às vezes eu queria avistar o mar, para não ter uma tristeza...”
(ROSA, 2002, p.106).

Quando o tio do menino, Osmundo Cessim, aparece no Mutúm logo após a morte de Dito, o narrador assim transmite o sentimento de Miguilim em relação ao tio: “A gente avistava tio Osmundo, sentia espécie de esperança.” (ROSA, 2002, p. 130). Ora, considerando o fato de que o tio havia levado o irmão para a cidade e a forma com que Miguilim, por meio do narrador, demonstra admiração ao tecer as qualidades do tio, é possível entender que essas “esperanças” seriam um tipo de desejo de garoto em também seguir rumo à cidade. Corporifica-se, ainda, essa possibilidade quando, no período que segue o excerto acima, o narrador revela: “Mas ele [o tio Osmundo Cessim] logo não gostou de Miguilim, não gostava, dizia só: - ‘Este um está antipático...’” (ROSA, 2002, p. 130, grifo nosso). Em conseqüência dessa observação, o menino muda o rumo do pensamento que enaltece o tio e, no período seguinte, passa a caracterizar a figura do tio de forma negativa: “E mexia os beiços, sacudia a cara, aquela cara azulosa, desprazida, que o diabo deu a ele.” (ROSA, 2002, p. 130, grifo nosso). Se antes do tio revelar uma espécie de antipatia por Miguilim, a narrativa destaca as qualidades de Osmundo Cessim em meio aos habitantes do Mutúm, quando ela, a antipatia por Miguilim, é mostrada, o narrador parece mesmo tomar para si uma provável desesperança de Miguilim e desqualifica os atributos de Osmundo Cessim. Essa “desesperança” que o menino demonstra sentir, nesse trecho da narrativa, estaria relacionada àquilo que o tio parece representar para o menino: o tio, de certa forma, configura-se como um tipo de símbolo da mudança, da fuga, já que, por meio de seu auxílio, é possível sair do Mutúm para ir viver na cidade.

Substanciando ainda mais a relação de Miguilim quanto ao saber que vem de fora, constrói-se a maior marca da preferência do menino, quiçá, este momento configura-se como a demonstração mais contundente e, de certa forma, confirma o enaltecimento que o garoto tece em relação ao saber que vem de fora, em uma passagem que marca o fim da trama: Miguilim aceita a proposta do doutor José Lourenço em levá-lo à cidade para estudar. Além disso, o instrumento, que serve como uma espécie de amostra para que o garoto “entreveja” o tipo de futuro que poderá desfrutar junto ao doutor, será os óculos que esse doutor usa, objeto trazido pelo mesmo lá da cidade. Mais que um símbolo de mudança ou um chamariz para o garoto, esses mesmos óculos serão o instrumento que bastará a Miguilim para que ele mesmo ateste para si a beleza do lugar, uma de suas maiores inquietudes da infância:

Mas então, de repente, Miguilim parou em frente do doutor. Todo tremia, quase sem coragem de dizer o que tinha vontade. Por fim, disse. Pediu. O doutor entendeu e achou graça. Tirou os óculos, pôs na cara de Miguilim.
E Miguilim olhou para todos, com tanta força. Saiu lá fora. Olhou os matos escuros de cima do morro, aqui a casa, a cerca de feijão-bravo e são-caetano; o céu, o curral, o quintal; os olhos redondos e os vidros altos da manhã. Olhou mais longe, o gado pastando perto do brejo, florido de são-josés, como um algodão. O verde dos buritis, na primeira vereda. O Mutúm era bonito! Agora ele sabia. (ROSA, 2002, p. 151-152, grifo nosso).

Se o momento poético final de “Campo geral”, de certa forma, “promovido” pela miopia de Miguilim acontece, aqui, no desfecho da narrativa, os “sintomas” da doença aparecem desde o início da mesma, lá no início, quando Miguilim mostra sua opinião sobre o que falara o forasteiro acerca do Mutúm, é nesse trecho da narrativa que, de fato, o garoto começa a revelar sua condição de míope. Entende-se, agora, depois de se descobrir o problema ocular do garoto, que ele, tendo dificuldades de enxergar as coisas direito, ou melhor, da forma convencional, apóia-se em outro sentido, o da audição, para dar o seu “veredicto” sobre a beleza do Mutúm. O modo como o moço mostra opinião, mais do que a opinião em si, é o que faz com que o garoto marque posicionamento naquele momento da narrativa. O gosto do garoto pelos modos de contar é o que o leva a tomar partido do forasteiro. que ele mesmo, Miguilim, em sua condição de míope não conseguia, naquele momento, ver beleza no Mutúm, já que “nem ele sabia distinguir o que era um lugar bonito e um lugar feio” (ROSA, 2002, p. 29).

De forma geral, as lembranças de Miguilim evocadas em sua partida do Mutúm, aquelas que giram em torno de pontos como viagem, beleza e sabedoria, formam um emaranhado que, “desembaraçado”, explica diversas passagens da vida de Miguilim. A sabedoria galgada ao logo da trama é formada por idas e vindas, viagens, tanto dele quanto de outros que passam pelo Mutúm. Entendendo-se por “viagens” a partida de essenciais “visitantes” que, de alguma forma, contribuíram para o crescimento do menino, como a cachorra Cuca Pingo-de-Ouro, o pai e o irmão Dito. Já a beleza passa a ser “um problema a menos”, quando o menino entrelaça a sabedoria adquirida por meio de experiências que teve com a ajuda obtida pelo instrumento que vem de fora, com os óculos, pois, no fim da narrativa, ele se sente capaz de fazer afirmações sobre a beleza, e, ao contrário do que o narrador revela quando Miguilim fala sobre a alegria, “Nem sabia o que era alegria e tristeza” (ROSA, 2002, p. 152), o narrador não questiona as considerações de Miguilim, é como se pelo não questionamento, pelo não dito do contador da história, ele, de certa forma, afirmasse que em relação ao aspecto da beleza Miguilim é, agora, capaz de fazer afirmações.

Outras lembranças aparecem ao longo da narrativa, lembranças essas que constroem histórias. Histórias formadas por histórias, formadas por lembranças que se apóiam em outras para virem à tona. Nem sempre as lembranças de Miguilim surgem separadas umas das outras, por vezes uma lembrança se une a outra por meio de um elo que, além de resgatar um fato passado, indica qual o processo percorrido pelo ser para que ele tome conhecimento de um dado fato:

De lá, separadamente, se recordava de sumidas coisas, lembranças que ainda hoje o assustavam. Estava numa beira de cerca, dum quintal, de onde um menino-grande lhe fazia caretas. Naquele quintal estava um perú, que gruziava brabo e abria roda, se passeando, pufo-pufo o perú era a coisa mais vistosa do mundo, importante de repente, como uma estória – e o meninão grande dizia: – “É meu!...” E: – “É meu...” – Miguilim repetia, só para agradar ao menino-grande. E aí o Menino Grande levantava com as duas mãos uma pedra, fazia uma careta pior: “Aãã!...” Depois, era só uma confusão, ele carregado, a mãe chorando: “Acabaram com o meu filho!...” e Miguilim não podia enxergar, uma coisa quente e peguenta escorria-lhe da testa, tapando-lhe os olhos. Mas a lembrança se misturava com outra, de uma vez em que ele estava nú, dentro da bacia, e seu pai, sua mãe, Vovó Izidra e Benvinda em volta; o pai mandava: – “Traz o trém...” Traziam o tatú, que guinchava, e com a faca matavam o tatú, para o sangue escorrer por cima do corpo dele para dentro da bacia. – “Foi de verdade, Mamãe?” – ele indagara, muito tempo depois; e a mãe confirmava: dizia que ele tinha estado muito fraco, saído de doença, e que o banho no sangue vivo do tatú fora para ele poder vingar
(ROSA, 2002, p. 30-31, grifo nosso).

Aqui, o aparelho sensorial, o tato, do garoto é que estabelece ligação entre as lembranças. O sentir do sangue “quente e peguento”, na confusão entre Miguilim e o Menino Grande, é o elo estabelecido entre a briga e o banho no sangue de tatu. O corpo dá o recado ao perceber e sentir algo mais do que a primeira lembrança e, a partir daí, concebe-se a segunda lembrança. Apesar da nitidez na descrição dos fatos obtidos via corpo, eles precisam da confirmação do outro para se estabelecer como lembrança. Para que Miguilim se aproprie dessa lembrança, dizendo-a “sua”, ele necessita da confirmação da mãe, para a certeza de que o fato realmente aconteceu.

Por vezes, não somente por meio da confirmação do outro, a memória da lembrança encontra apoio. Em alguns casos, os vestígios da lembrança precisam ser somados à lembrança alheia para compor algo que possa fazer sentido e possa ser chamado de lembrança. A pequenez de Miguilim parece não permitir que ele recorde de um trecho da infância que o encantou, uma espécie de sonho do menino:

Do Pau-Rôxo conservava outras recordações, tão fugidias, tão afastadas, que até formavam sonho. Umas moças, cheirosas, os claros risos bonitos, pegavam nele, o levavam para a beira duma mesa, ajudavam-no a provar, de uma xícara grande, goles de um de-beber quente, que cheirava à claridade. Depois, na alegria num jardim, deixavam-no engatinhar no chão, meio àquele fresco das folhas, ele apreciava o cheiro da terra, das folhas, mas o mais lindo era o das frutinhas vermelhas escondidas por entre as folhas – cheiro pingado, respingado, risonho, cheiro de alegriazinha. As frutas que a gente comia. Mas a mãe explicava que aquilo não havia sido no Pau-Rôxo, e bem nas Pindaíbas-de-Baixo-e-de-Cima, a fazenda grande dos Barbóz, aonde tinham ido de passeio
(ROSA, 2002, p. 31).

Há uma considerável distância entre o fato passado e o presente do garoto no trabalho realizado com memórias, necessitando, por essa razão, da intervenção da mãe para se constituir a lembrança. A captação da vivência do fato passado é feita por uma espécie de entrelaçamento dos sentidos que parece confundir o garoto, mas, ao mesmo tempo, privilegia um deles: o olfato é o sentido eleito para registrar na memória o que foi vivido. Habilitado, aqui, a sentir mais que os cheiros, ele é o sentido capaz de perceber a claridade da bebida e a alegria das frutinhas vermelhas. Luz, claridade e cor. Vermelho das frutas. Devido à miopia, Miguilim, nesse trecho da narrativa, ainda não tem condições de construir uma imagem “verdadeira” dos elementos supracitados pelo uso do sentido que, por convenção, é condicionado a realizar essa tarefa. Dessa forma, Miguilim revela uma forma diferente de ver o mundo. Dessa forma, não se pode afirmar que ele “via” de menos devido a sua moléstia, mas, sim, que os sentidos o habilitaram a enxergar o mundo de uma forma singular. Forma de percepção que produz, considerando o trecho acima, uma sensação diferenciada à personagem diante da realidade, oferecendo uma espécie de epifania à mesma, pois, em meio à situação vivida pela família do garoto, a cena descrita mostra-se deslocada, talvez inusitada, se comparada às outras que compõem o restante da narrativa.

É principalmente por meio desse trecho dotado de certa magia, que outro elemento relativo à memória destaca-se na apresentação das lembranças: a inventividade. De forma a tentar “preencher” a lacuna aberta pelo tempo que dificulta o processo da memória de se lembrar de fatos acontecidos na tenra infância, a inventividade do garoto desabilita e reprograma os sentidos para que se possa, assim, reproduzir o acontecimento passado. Nota-se que, dessa forma, a afirmação da mãe em relação aos fatos lembrados por Miguilim pode somente ser relativa à questão da visita a uma dada fazenda em que estavam algumas moças, tudo o mais está relacionado a alguns poucos traços de memória e, em maior parte, à inventividade de Miguilim e, por isso, é que essas lembranças “formam”, para o garoto, uma espécie de sonho.

Próximos e distantes ao mesmo tempo, os dois excertos anteriores mostram não somente um processo em que a memória forja um tecido de lembranças, mas também mostra vias distintas na composição de processos similares. No primeiro trecho, é o próprio Miguilim quem conta o trabalho feito intimamente por ele para construir lembranças e explicar a origem de cada cena evocada. Salvo a contextualização das cenas e as explicações do narrador perante o comportamento apresentado pela criança, a vivência de Miguilim é mostrada ao leitor por meio da cena vivida pelo garoto. O trecho privilegia a reprodução fiel das falas que a compõem, por meio do uso do discurso direto livre. Tal característica diferencia as duas cenas, pois, ao contrário da primeira, a segunda é contada pelo narrador que, de certa forma, se apropria dos pensamentos e das sensações de Miguilim para expor as lembranças da criança.

Contudo, ambas as cenas necessitam de algo para se manter. As cenas não discorrem baseando-se apenas nas recordações do garoto, a partir da lapidação das “certezas” da memória. Elas utilizam o que se pode chamar de uma espécie de memória adquirida: fatos que não foram constituídos (somente) a partir de recordações próprias, mas que necessitaram da memória do outro, no caso a mãe de Miguilim, para se constituir. Halbwachs (2006) salienta que esse apoio externo ao sujeito atua de forma preponderante na confiança que se poderá ter em relação aos fatos da recordação:

(...) a nossa impressão pode se basear não apenas na nossa lembrança, mas também na de outros, nossa confiança na exatidão de nossa recordação será maior, como se uma mesma experiência2 fosse recomeçada não apenas pela mesma pessoa, mas por muitas (HALBWACHS, 2006, p. 29).

No caso em particular, nota-se que a memória da mãe atua de forma crucial na concatenação dos fatos, dando continuidade, conduzindo ou, até mesmo, redirecionando o fluir de lembranças de Miguilim: “Mas a mãe explicava que aquilo não havia sido no Pau-Rôxo, e bem nas Pindaíbas-de-Baixo-e-de-Cima, a fazenda grande dos Barbóz, aonde tinham ido de passeio.” (ROSA, 2002, p. 31). Mais do que o primeiro excerto, o segundo, considerando a pequenez de Miguilim, em termos de construção, aparenta mais necessitar e apoderar-se da memória adquirida."

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Fonte:
JULIANA SILVA DIAS: "ENTRE BELEZA E TRISTEZA: EXPERIÊNCIA E MEMÓRIA EM “CAMPO GERAL”, DE GUIMARÃES ROSA". (Dissertação apresentada ao Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas, da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Campus de São José do Rio Preto, para a obtenção do título de Mestre em Letras (área de concentração: Teoria da Literatura) Orientadora: Profa. Dra. Cláudia Maria Ceneviva Nigro). São José do Rio Preto, 2010.

Nota
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As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Disponível digitalmente no site: Domínio Público

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