Cientificismo e experimentalismo



Panorama literário e recepção critica da obra

Cientificismo e experimentalismo
“Durante a segunda metade do século XIX, a Literatura e, conseqüentemente, a concepção do romance (sobretudo no que concerne à obra Naturalista) sofreu clara influência da corrente Cientificista. Teorias do âmbito da Biologia, Química, Física, Sociologia e Filosofia estabeleceram relações, em alguns casos extremos, de aberto diálogo com a obra literária.

Podemos verificar um representativo expoente dessa tendência no ensaio de Émile Zola,
O Romance Experimental e o Experimentalismo no Teatro, de 1880, no qual o autor estabelece uma equiparação entre a Introdução ao Estudo da Medicina Experimental de Claude Bernard e o que, para ele, deveria ser posto em prática na estruturação do enredo do romance: ao médico, bem como ao romancista, caberiam as tarefas de buscar, encontrar e observar as especiais condições que produzem em um corpo vivo (de um ser humano ou de uma personagem) determinado fenômeno. Para Zola e Bernard, “A Ciência Experimental não deve se preocupar com o porquê das coisas, ela explica o como, e nada mais.” Tal concepção define o Determinismo como a causa que acarreta o aparecimento dos fenômenos, expondo-o como fator absoluto nas condições de existência dos eventos naturais.

Contudo, Zola opõe-se a Bernard em um ponto crucial: ele repudia a definição do médico que afirma que o artista seria aquele que expressa, em uma obra, uma idéia ou um sentimento subjetivos; Zola conclui, ainda, que os romancistas abrem o caminho aos cientistas, empregando a
hipótese e o empirismo que preparam o estado científico no método experimental. No romance, portanto, o caminho a ser seguido seria: a) estabelecimento de uma tese; b) apresentação das personagens; c) instalação de uma “intriga” que obrigue a personagem a expor-se e reagir ante determinada situação; d) observação do comportamento da personagem; e) confirmação da hipótese inicial. Isso constituiria o Romance de Tese.

Em um diferente ensaio, “O Senso do Real”, de 1900, Zola elenca as que, para ele,
constituem as maiores virtudes que um romancista deveria apresentar: o senso de observação e apreensão do real, mostrando “o elemento real, a vida no que ela tem de verdadeiro”, e a expressão pessoal. Entretanto, este último fator não entra em conflito com o que afirmara no ensaio sobre o Romance Experimental, pois a expressão pessoal consiste no tom da escrita, na estilística, no mecanismo de originalidade, ou seja, no tratamento subjetivado da escrita sobre o mundo objetivo. A obra de arte deveria apresentar “a for a da realidade e a onipotência da expressão pessoal”. Outro elemento valorizado por Zola em seu texto é a descrição do meio, do mundo exterior, que deveria ser privilegiada na medida em que se encontre vinculada ao interior da personagem, favorecendo seu estudo. Ele elenca O Vermelho e o Negro de Stendhal para ilustrá-lo.

O Primo Basílio
costuma ser apontado pela crítica oitocentista e, inclusive, parte da mais atual como romance de tese. Machado de Assis classificou Eça de Queirós como “fiel discípulo das tendências do Sr. Zola”. Contudo, o próprio Machado apontou o que, para ele, seria uma falha no romance de 1878: sendo o autor adepto às tendências do romance naturalista, como se justificaria a intervenção do acaso, do fortuito, no desenrolar das ações?

Na apreciação crítica machadiana, encontram-se em destaque todos os elementos explanados nos dois ensaios de Zola, apesar de o artigo do autor brasileiro ser doze anos anterior ao ensaio de 1900: o Determinismo, o estilo próprio e o descritivismo, que possibilita a melhor e mais fiel possível apresentação do real. Desses três aspectos, o único que obtém elogio de Machado é o estilo: a expressão escrita de Eça parece-lhe vigorosa e brilhante
apesar de, ao final do ensaio, apresentar ressalvas quanto à linguagem empregada em detrimento ao resto.

Trata-se de diferentes concepções da obra literária, pois ao escritor brasileiro parece-
lhe contr rio s leis da Arte a a ão ser conduzida pelo que chama de “fortuito” e não pelos “caracteres e sentimentos”, como crê que seria o ideal. A intriga da chantagem das cartas, por exemplo, é algo que suscita o repudio do autor, por se tratar, em sua opinião, de um episódio medíocre em sua banalidade e ainda assim constituir o motor da ação na segunda metade do livro, em lugar de um sentimento vindo interiormente de Luísa, para quem a recuperação das cartas atende a um fim exclusivamente pragmático impedir que o marido se inteire do ocorrido. O arrependimento da personagem, podemos notar, só emerge a partir de uma possibilidade de sanção externa, e não de remorso ou questionamento interno.

Apesar de Machado depreciar em seus artigos a Escola Naturalista, curiosamente,
essa condena ão do “fortuito” est , de certo modo, de acordo com o proposto por Zola ao condenar o uso abusivo da imaginação e do acaso próprio do Romantismo no romance experimental. Lembremos ainda a tendência da obra naturalista de enfocar preferencialmente uma coletividade e não um indivíduo somente, e de optar muitas vezes por uma distensão do clímax ao longo do enredo. Em O Primo Basílio, contudo, temos momentos culminantes na troca de papéis senhora/criada e também nas mortes de Luísa e Juliana.

No romance de Eça de Queirós, encontramos, por diversas vezes, esse aspecto tão rechaçado por Machado de Assis (e visto com receio inclusive por Zola) que é a intervenção do
acaso, sobretudo do azar, da sorte que (des)favorece plenamente a personagem através de um evento cuja lógica lhe é aleatória, não dependendo de sua ação e, portanto, desprovida de causalidade. Por exemplo, a chegada de Basílio no período de ausência de Jorge é aleatória; a visita inesperada de Felicidade que permite a Juliana apoderar-se da carta de amor ao primo escrita por Luísa é uma coincidência; a chegada da carta de Basílio, com dois meses de atraso, oferecendo suporte financeiro e retomando o romance entre os primos que cai nas mãos de Jorge é um evento sem muita possibilidade de ser deduzido anteriormente pelo leitor. Mesmo quando podemos prever que certo evento possa ocorrer, caso do enfarte que fulmina Juliana, prenunciado por sua saúde debilitada e aspecto amarelado, o leitor não pode arriscar o momento em que se concretizará. Afinal, se Juliana houvesse sucumbido antes do retorno de Jorge ou após o falecimento da tia deste, época na qual esteve gravemente enferma, a sorte de Luísa seria muito diferente.

Outro dos pontos nevrálgicos da crítica machadiana ao romance eciano encontra-se no enfoque concedido ao par Luísa/Basílio. Além da ênfase nas relações físicas das personagens, que, para o escritor brasileiro, exporia o leitor a toda a sorte de sensações lascivas, o adultério entre os primos constituiria o maior exemplo do fortuito no romance, pois não seria nada mais do que um incidente vulgar, sem importância nem justificativa, dado que não o motivariam nem o amor, nem a paixão (sublime ou subalterna), nem o despeito ou sequer a perversão, posto que Luísa sequer encontraria a saciedade das
“paix es criminosas”. Isso acarreta a visão da infidelidade como determinada pela casualidade e não por fatores internos, o que permite a Machado concluir que o autor de O Primo Basílio, al m de seguir uma “Doutrina Caduca” (o Naturalismo de Zola), sequer obtém resultados satisfatórios para a mesma, pois a única tese sustentável no romance seria ineficaz.

Quando analisamos a relação entre Basílio e Luísa, é possível identificar os principais pontos que impelem a prima aos braços do amante algo oportunista (afinal, não havia trazido a Alphonsine...): a ociosidade diária, a ausência do marido, a influência dos relatos de Leopoldina, a falta de alguma atividade doméstica que a absorvesse de modo compenetrado (até mesmo suas leituras são realizadas de modo superficial e ingênuo). Contudo, se voltássemos nossa atenção ao fator das influências cientificistas, poderíamos propor outra possibilidade a ser contemplada na relação Luísa/ Basílio: o elemento da
Vontade, explanado por Schopenhauer em “A Metafísica do Amor”.

Neste ensaio, Schopenhauer apresenta o conceito de Vontade, que seria fator determinante da espécie, tendo por objetivos finais o
gozo e, de maneira na maioria das vezes totalmente inconsciente aos indivíduos, a procriação e, logo, preservação e evolução da espécie. Esta estaria internalizada e mostrar-se-ia por meio dos instintos do sujeito, impelindo-o às ações e loucuras amorosas: o amor seria a ilusão que mascara e abriga a Vontade e que, por vezes, entra em conflito com os interesses subjetivos do indivíduo.

Em
O Primo Basílio
, três elementos poderiam ajudar a estabelecer uma análise tendo em vista a teoria schopenhauriana: primeiramente, Luísa e Jorge não têm filhos, apesar do imenso anseio de ambos; em segundo lugar, Jorge adota em relação à esposa uma atitude muitas vezes paternal, repreendendo-a, determinando ele próprio como deveriam ser os cuidados da casa, contratando as empregadas, cuidando devotamente da esposa quando está enferma, prometendo-lhe levá-la para passear, dormindo com a mão entre as dela para afastar seus pesadelos, decidindo com quem Luísa deve ou não se relacionar, interditando as amizades que a seu parecer não lhe convém, e, quando ausente, incumbindo Sebastião da tarefa de vigiá-la e orientá-la dado que irrita Luísa, que considera, exasperada, o absurdo da situação. Em vários momentos, ao longo do enredo, Jorge e Sebastião discorrem entre si ou aos demais sobre a personalidade supostamente ingênua e algo tola de Luísa, destacando sua falta de sagacidade e configurando-a de maneira infantilizada. O terceiro fator, evidentemente, é o caráter lúbrico de Basílio e também da relação entre os primos.

O fato de Luísa ter-se casado com Jorge mas estar envolvida com Basílio lembra um exemplo apresentado por Schopenhauer: quando uma moça recusa um casamento vantajoso com um senhor de poucos atrativos em favor de uma união com um jovem pobre, de caráter duvidoso ainda que atraente, seriam os interesses da espécie (a Vontade, ou seja, o gozo e a procriação) sobrepujando os do indivíduo (a estabilidade financeira), ainda que de maneira inconsciente. No caso de Luísa, esta aceitou o matrimônio com Jorge, garantindo a sobrevivência de si própria e da mãe bem como a aceitação social, ainda que não estivesse propriamente enamorada do engenheiro; no entanto, tendo já obtido a estabilidade, não dispensa a busca do gozo através da união
com o primo. Retomando o que diz Schopenhauer em seu ensaio, “tudo isso [a luta pela satisfação sexual, inclusive por meio de crimes como o adultério ou o estupro] apenas para servir à espécie do modo o mais conveniente possível, em conformidade à, em toda parte, soberana vontade na Natureza mesmo se custa do indivíduo” No caso de Luísa, o preço revelar-se-á a própria vida.

É, ainda, interessante notar que Luísa, à sua maneira, dá-se conta de que sua relação com Basílio é, de certo modo, gratuita e injustificada: ela percebe que o tratamento a ela dispensado pelo primo é maçante, desrespeitoso e conclui que sacrificara sua tranquilidade a um amor incerto:

(...) Basílio não se dava ao incômodo de se constranger; usava dela. Como se a pagasse! (...) Não aceitava o menor incômodo, nem para lhe causar um contentamento.(...) E um ar de superioridade quando lhe falava! Um modo de encolher os ombros, de exclamar: - Tu não percebes nada disso! Chegava a ter palavras cruas, gestos brutais. E Luísa começou a desconfiar que Basílio não a estimava, apenas a desejava!

Luísa, apesar de quando da descoberta de Juliana cobrar impulsivamente uma fuga do amante, não vê, ao refletir mais longamente sobre o assunto, possibilidade de ter ao lado deste um futuro sólido, um matrimônio (no caso de Jorge falecer), uma relação estável como a que possui com o engenheiro. Assim, poderíamos opor sua relação conjugal com o marido, movida pelo interesse individual, e a com Basílio movida pela Vontade proposta por Schopenhauer. Notemos, ainda, que o interesse individual de Luísa está em franca associação ao ideal capitalista burguês: conforto, comodidade financeira, bem-estar social, uma posição que implique
status (afinal, ser casada constituía o estado social mais aceitável à mulher oitocentista), duas empregadas que assegurem sua ociosidade diária...

O Primo Basílio
é, sem dúvida, uma obra que suscitou inúmeras polêmicas e embates entre a crítica. No entanto, é imprescindível reconhecer a multiplicidade de ângulos por meio dos quais se torna possível perscrutar o romance: a causalidade/casualidade de Machado de Assis, o Experimentalismo, o Senso de Observação, a Expressão Pessoal e o Descritivismo valorizados por Zola, a Vontade apresentada por Schopenhauer. Todos esses conceitos atestam o caráter inovador e renovador do romance queirosiano, constituído em um momento de amplas transformações sócio-culturais, influências cientificistas e ascensão de novas e diferentes concepções da obra de arte literária.”

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Fonte:
Carolina Regina Morales: “Em busca do Paraíso vazio: a transgressão feminina em O Primo Basílio de Eça de Queirós”. (Dissertação apresentada ao Programa de Pós Graduação em Literatura Portuguesa da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas para obtenção do título de Mestre em Letras, Universidade de São Paulo. Orientadora: Profa. Dra. Aparecida de Fátima Bueno). São Paulo, 2010.

Nota
:
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As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

Disponível digitalmente no site: Domínio Público

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