Distrito de Évora, o laboratório de Eça



Eça de Queirós estréia na literatura através da imprensa, o que era comum na época, como ainda hoje. No entanto, seu début se dá na parte mais “literária” do jornal, no folhetim. Os primeiros textos são o que poderíamos chamar de prosa poética, marcadamente românticos e influenciados por Heine e Baudelaire. Foram publicados na Gazeta de Portugal, diário de certa importância em Lisboa.

Eça revezava textos líricos com artigos sobre arte e literatura, e aqui e ali algumas digressões críticas a respeito da sociedade burguesa; os artigos foram reunidos e publicados postumamente no volume
Prosas bárbaras (1903). Não importando o tema ou caráter mais ou menos literário, os artigos vinham sempre numa prosa arrevesada, muito imagética e de uma religiosidade mórbida. Aqui não encontramos indicações do escritor realista que faria sua fama, e o título de sua coletânea (Prosas bárbaras), indicado pelo próprio Eça, parece fazer justiça a um período, digamos, pré-histórico da produção eciana com relação a estilo e forma – um julgamento que ao final desta seção pretendemos colocar em dúvida. Mas, de qualquer forma, do crítico contundente, que seria sua marca no jornalismo, podemos colher já alguma amostra inquestionável.

João Gaspar Simões procurou explicar o estilo e a temática desse período inicial (para além da influência do romantismo francês e alemão) à inclinação de Eça para uma filosofia panteísta. Parece-nos uma sofisticação desnecessária e, até certo ponto, encobridora. O estilo pernóstico, exagerado, em conjunto com uma temática desagradável de misérias e ultrajes, veiculada através de uma religiosidade ao avesso, revela, de um modo muito mais simples, a estratégia antiburguesa e antifilistina desenvolvida por toda uma geração de poetas. O objetivo dessa corrente era atacar o
status quo, a fim de deixar clara sua insatisfação com uma sociedade cada dia mais injusta e materialista. Afrontar o burguês filisteu com uma linguagem extravagante, lançando-lhe no rosto um conteúdo repugnante, era a forma de luta de um BaudelaireEça somente aderiu a tais armas. Não há muitas metafísicas aí. O que há de fato é uma visão desaprovadora de sua sociedade, seja a portuguesa ou a ocidental.

Para não deixar nossa avaliação sem uma prova material, vamos comentar rapidamente um dos artigos do período em questão, o “Miantonomah”, publicado originalmente em 2 de dezembro de 1866, e incluído nas
Prosas bárbaras. O texto também foi escolhido por se tratar de uma das amostras antecipatórias da contundência de Eça, além de outros motivos que ficarão evidentes mais adiante.

Miantonomah era o nome de um navio de guerra norte-americano ancorado no porto de Lisboa, aberto à visitação pública e que fazia um grande sucesso na época entre os portugueses. Eça se aproveita do aspecto feroz do encouraçado e da popularidade atingida, para construir um texto estranho, mas de grande impacto crítico. Primeiro, Eça gasta parágrafos e parágrafos numa interminável descrição daquele navio: compara-o com os barcos a vela, mostra-o numa relação anímica com o mar e os elementos, transforma-o num ser emblemático; tudo para chegar à seguinte alegoria: “Tal é o Miantonomah, navio de guerra da América do Norte. Nós entrevemos a América como uma oficina sombria e resplandecente, perdida ao longe nos mares, cheia de vozes, de coloridos, de forças, de cintilações” (Queirós, 2000a, p. 71).

A partir daí, nessa linguagem extravagante à qual nos referimos, Eça faz uma síntese dos Estados Unidos que, publicada hoje por um periodista adepto do
new journalism, não faria má figura, nem muito menos perderia atualidade:

Entrevemo-la assim [a América, os EUA]: movimentos imensos de capital; adoração exclusiva e única do deus Dólar; superabundância de vida; exageração de meios; violenta predominação do individualismo; grande senso prático; atmosfera pesada de positivismos estéreis; uma febre quase dolorosa do movimento industrial; aproveitamento avaro de todas as forças; extremo desprezo pelos territórios; preocupação exclusiva do útil e do econômico; doutrinas de uma filosofia e uma moral egoísta e mercantil; todo o pensamento repassado dessa influência; uma fria liberdade de costumes; uma seriedade artificial e brusca; dominação terrível da burguesia; movimentos, construções, maquinismos, fábricas, colonizações, exportações colossais, forças extremas, acumulação imensa de indústrias, esquadras terríveis, uma estranha derramação de jornais, de panfletos, de gazetas, de revistas, um luxo excessivo; e por fim um profundo tédio pelo vazio que deixa na alma as adorações do deus Dólar: depois a mesma temperatura e a mesma geologia da Europa. [...]
A vida da América do Norte é quase um paroxismo. Isto é decididamente uma grande força, uma vida enorme, superabundante. Mas será vital, fecundo, cheio de futuro?
Todos os dias dizem à Europa: “Olhai para os Estados Unidos, lá está o ideal liberal, democrático, e, sobretudo, a grande questão, o ideal econômico”.
Mas a América consagra a doutrina egoísta e mercantil de Monroe, pela qual uma nacionalidade se encolhe na sua geografia e na sua vitalidade, longe das outras pátrias; esquece as suas antigas tradições democráticas e as idéias gerais para se perder no movimento das indústrias e das mercancias; [...] enrodilha-se estreitamente nos egoísmos políticos e nas preocupações mercantis, cisma conquistas e extensões de territórios, subordina o elemento grandioso e divino ao elemento positivo e egoísta, e a grande figura sideral do Direito às fábricas, que fumegam negramente [...]. (Ib., p. 70-71.)

Sem dúvida, trata-se de uma visão bastante forte, na maior parte negativa, da potência emergente no continente americano. A forma adotada por nosso autor apresenta características da prosa poética. Os atributos estão encadeados de maneira assindética, em uma numeração vertiginosa e com poucos trechos analíticos ou explicativos. A linguagem ali desempenha um papel enfático e revelador. O ritmo intenso, que não permite a retomada do fôlego, aponta para a azáfama característica da nação prática e trabalhadora. Enquanto a ausência do discurso dissertativo sublinha o pouco espaço para a reflexão e o pensamento crítico, tema que Eça repõe em seguida de forma explícita.

Compare-se agora a Europa, no contraponto que o escritor já havia anunciado no trecho citado:

O nosso mundo europeu é também uma estranha amontoação de contrastes e de destinos; é uma época esta anormal em que se encontram todas as eflorescências fecundas e todas as velhas podridões; políticas superficiais; grandes fanatismos; e ao mesmo tempo um desafogo das livres consciências, expurgação dos velhos ritos, e a alma moderna ligada na sua moral e na sua justiça às almas primitivas com exclusão da Idade Média; políticas pacíficas e transigentes, e um espírito de guerra surdo, aceso e flamejante; territórios violentos e conquistados, e a aniquilação pela política, pela história e pela filosofia dos conquistadores e dos heróis: nem são as influências monárquicas, nem é o individualismo; nem é o humanitarismo, nem são os políticos egoístas, não é a importância das individualidades, nem a importância dos territórios; é uma confusão horrível de mundos, e, em cima, triunfal e soberba, está a indústria, entre as músicas dos metais, as arquiteturas das Bolsas, reluzente, cintilante, colorida, sonora, enquanto no vento passa o seu sonho eterno que são fortunas, impérios, festas, empresas, parques, serralhos.
(Ib., p. 72.)

Em contraste, a Europa é apresentada no mesmo estilo enumerativo mas, agora, sempre pontuada por antagonismos, a palavra “nem” regendo o ritmo da prosa. De um lado, um país num contínuo monocórdio, os EUA; do outro, a Europa numa cadência contrapontística. Qual o resultado dessa diferença?

Ora em baixo [na Europa], sob a confusão, sereno, fecundo, forte, justo, bom, livre, move-se em germe um novo mundo econômico.
Este germe é que a América não tem, creio eu. Mas vê-se que todos a apontam como o ideal econômico que é necessário que os pensadores meditem, e todos os que no vazio fecundo das filosofias riscam as sociedades.
Ora toda a América econômica se explica por esta palavra — feudalismo industrial. (Ib.)

Eça não via na nova nação as contradições dialéticas capazes de gerar as mudanças revolucionárias, enquanto na Europa, ao contrário, o germe da mudança se fazia sentir. Aqui, não precisamos tirar conclusões, a própria história nos reporta que Eça estava certo. E o escritor tinha apenas 21 anos quando fez o prognóstico.

O folhetim “Miantonomah” também carrega outras particularidades extratextuais. É o antepenúltimo artigo publicado por Eça antes de uma longa interrupção dessa fase que se convencionou chamar de “prosas bárbaras”, que se divide entre o período de março de 1866 (data de sua estréia literária) a dezembro do mesmo ano, e é retomado no outubro seguinte, encerrando-se em dezembro de 1867. O que aconteceu nesse interregno, de janeiro a agosto de 1867, é o foco desta seção. Para compreendê-lo, é necessário um breve escorço biográfico.

Após sua formatura em Coimbra, Eça, morando com os pais em Lisboa, tentou dar início a uma carreira jurídica, continuando assim a tradição da família, em que o avô e o pai foram eminentes juízes. No entanto, o futuro escritor deu várias amostras de não estar preparado ou mesmo talhado para a profissão. Como qualquer pai que vê um filho adulto ocioso, gastando-se na boêmia, o bom Teixeira de Queirós se perguntou sobre o que o filho parecia gostar e realizar bem, e acertou na mosca.

A situação política colocara Teixeira e seu partido liberal na oposição ao governo da hora, e havia interesse de seu grupo em montar um jornal provinciano, numa região politicamente importante, para fazer frente aos projetos governamentais. Eça foi convidado para fundar e dirigir um periódico na cidade de Évora, no Alentejo, com o propósito de fazer uma oposição sistemática ao governo. Parecia claro ao pai de Eça que o rapaz se prestava ao cargo em vista de seus folhetins e de sua formação intelectual. Podemos deduzir que o velho Queirós entendeu muito bem o caráter crítico e combativo dos escritos do filho, no que não era seguido pelo resto do público em geral (vide nota 3 acima). Eça aceitou o desafio: além da experiência interessante, o montante de dinheiro disponível para o projeto foi muito persuasivo.

Tocamos no mesquinho assunto financeiro porque certamente foi uma das razões para o caráter inusual e extremamente importante dessa atividade para o nosso jornalista. Contam os biógrafos que Eça, no intuito de se apropriar da maior parte do dinheiro desembolsado pelos partidários de seu pai, praticamente redigiu sozinho todas as edições do jornal. E aqui começa o que de fato nos interessa.

De 6 de janeiro de 1867, data da primeira edição do
Distrito de Évora, como se chamou o jornal, até a edição de nº 59, de 1º de agosto do mesmo ano, Eça de Queirós, do alto de seus 21 anos de idade, dirige, edita e redige sem qualquer colaborador um periódico com duas edições semanais, quatro páginas por exemplar, o que computa 198 páginas jornalísticas de sua autoria nos sete meses de existência do Distrito (Mónica, 2001, p. 40).

A análise sistemática dessas quase duzentas páginas é surpreendente. O primeiro impacto advém da “sobrenatural” capacidade de escrita do jovem Eça. Duas vezes por semana, ele não tinha apenas que redigir, mas também de se informar com diversos correspondentes, ler outros jornais, revistas e livros, refletir sobre os fatos, para daí escrever. Onde ele encontrava tempo para isso? Não se pode esquecer que o jornalista também administrava o jornal, ou seja, cuidava da parte burocrática, técnica (a impressão era feita numa oficina instalada pelo próprio Eça), publicitária (anúncios e classificados) e distribuição (vendas e assinantes). Não parece pouco!

O segundo impacto se deve à estratégia desenvolvida por Eça para que o jornal não fosse tedioso, de uma escrita e um estilo monótonos, em razão de toda a publicação ser de um único redator. Antes de tudo, Eça dividiu o jornal nas várias seções que compunham o formato dos diários da época e, para cada uma delas, criou uma personalidade e um estilo diferentes, os fictícios colaboradores: repórteres, colunistas e correspondentes que formavam a equipe de jornalistas do impávido
Distrito de Évora. Temos aqui um claro e talentoso antecedente de heterônimos na literatura portuguesa. E também nas páginas do Distrito já encontramos a gênese de Fradique Mendes, o famoso heterônimo do artista Eça.

Naquele espaço, alguns dos colaboradores fantasmas e mais um personagem chamado Manuel Eduardo, cujo necrológio foi apresentado pelo colunista A. Z. (as duas últimas letras de “Eça” e “Queiroz”, cf. Mónica, 2001, p. 41), já deixavam pressentir o intelectual abastado e cosmopolita, cuja personalidade extravagante daria a matéria-prima para os sarcásticos textos da fase final do grande romancista, as cartas de Fradique Mendes, unindo as duas pontas da produção eciana.

Parece evidente que naquele momento Eça dominava com desenvoltura a técnica jornalística. E quanto à teoria do jornalismo? Além de poder escrever textos sobre assuntos diversos, em seções específicas, com estilos e linguagem diferenciados, nosso autor também refletia sobre o papel da imprensa e de como ele poderia ser cumprido com adequação. Segundo Elza Miné (1986, p. 14-20), são nas páginas do
Distrito que o futuro romancista expõe uma possível teoria eciana do jornalismo, a qual vale a pena reproduzir aqui, já que seus desdobramentos se farão sentir mais adiante, como a própria Miné o admite, mas que talvez tenha, tal teoria, mais implicações do que se supôs até agora:

O jornalismo, na sua justa e verdadeira atitude, seria
a intervenção permanente do país na sua própria vida política, moral, religiosa, literária e individual.
Mas esta intervenção nos fatos, nas idéias, para ser fecunda, elevada, para ter um caráter de utilidade pública e largas vistas sociais, deve ser preparada pela discussão e pelo esclarecimento da direção governativa, do estado geral dos espíritos, do vigor das consciências, da situação pública, da virtude das leis. […]
O jornalismo não deve ser sempre a expressão mais ou menos real das idéias recebidas; ele não é somente o arquivo da opinião moderna, a repercussão duma impressão geral: ele é o motor dos espíritos, descobre novas e fecundas relações sociais entre os povos dum mesmo continente, ele consagra e robustece a solidariedade moral que liga os homens, a fraternidade que os prende; o jornalismo ensina, professa, alumia sobretudo, ele é o grande construidor do futuro; não é só o fato de hoje que o prende – isso é o menos –, é o fato que o futuro contém: ele vai das relações presentes às relações futuras e mostra a revolução lenta, serena, imensa, pela qual a humanidade transforma e refaz o seu destino no sentido da justiça.
É por isso que ele contradiz muitas vezes a opinião recebida; e com razão; nem sempre a grande massa tem a consciência do bem, do direito e da sua verdadeira razão; é necessário que o jornalismo a esclareça, que a avise quando ela se transviar, que a sustenha, quando ela for a cair. (Queirós, 2000a, p. 568-70 – grifos nossos.)

Acreditamos que os itálicos, por si só, já indiquem uma doutrina do jornalismo de Eça. Ou seja, a imprensa deve ser uma “intervenção permanente”, que por sua vez deve ser “preparada pela discussão”. Seu objetivo é ser “o motor dos espíritos” e “o grande construidor do futuro”. E, para tanto, o jornalismo não deve ser prender ao fato em si, mas ao “fato que o futuro contém”, para que assim ele possa mostrar “a revolução lenta” que deve ser o caminho da sociedade na busca da justiça. Comparando-se com a prática de hoje na imprensa, a concepção de Eça era bastante ambiciosa. Apenas para não deixar escapar a oportunidade, informamos que os trechos acima são do primeiro número do jornal e que, apesar de funcionar também como uma carta de princípios, na verdade, o artigo explicava o propósito de uma seção fixa do
Distrito chamada “Revista crítica dos jornais”. Uma espécie de Observatório da Imprensa do século XIX português.

Segundo Elza Miné, os compromissos assumidos aqui por Eça vão prevalecer durante toda a sua carreira jornalística. Diz a estudiosa:

Portanto, não há como negar que uma mesma linha diretiva orienta os trabalhos do jornalista estreante do
Distrito de Évora e do correspondente mais experimentado de A Actualidade e da Gazeta de Notícias ou, com outras palavras, que o último se manteve fiel às principais proposições teóricas do primeiro. (Miné, 1986, p. 17.)

Na visão da autora (à qual nos vinculamos), importava para Eça não a reportagem simples dos acontecimentos, “o exame isolado dos fatos parece-lhe precário: importa relacionar, enquadrar, para poder melhor entender e fazer entender, para vislumbrar perspectivas e comunicá-las, para criticamente se situar e situar seus leitores” (ib.). Ampliando ao máximo a análise dos trechos citados do
Distrito e a reflexão de Miné, podemos inferir que para Eça a atividade jornalística, em sua essência, tratava-se de um processo de conhecimento. Ponto central do desenvolvimento futuro desta pesquisa.

Também no
Distrito de Évora, Eça publica um artigo que, em conjunto com sua “teoria jornalística”, fecha o que seria uma espécie de forma-e-conteúdo preferencial de sua produção posterior na imprensa. Estamos falando do artigo publicado na edição de nº 13, de 21 de fevereiro de 1867, na seção “Crônica”, e que trata do tema “crônica”. Para o nosso jornalista, a crônica se distingue pelos seguintes aspectos:

A crônica é para o jornalismo o que a caricatura é para a pintura: fere, rindo; espedaça, dando cambalhotas; não respeita nada daquilo que mais se respeita; procede pelo escárnio e pelo ridículo; e o ridículo em política é de boa, é de excelente guerra. [...]
A caricatura, como a crônica, é uma arma terrível; ataca mais perversamente e defende-se com inocência: dá uma grande punhalada, depois toma um ar de candura e fica-se, toda risonha, fazendo acenos e afagos; e depois, como se há de combater se está estabelecido nos costumes que ela não pode ser tomada a sério? (Queirós, 2000a, p. 451.)

Parece-nos que aqui se apresenta, salvo melhor juízo, pela primeira vez em Eça uma digressão sobre duas estratégias literárias nas quais ele se tornará o mestre em nossa língua: o humor e a ironia. O humor como arma de luta política (“é de excelente guerra”) e a ironia como crítica e disfarce (“ataca mais perversamente e defende-se com inocência”). Ambos compõem a natureza de dois gêneros irmãos: a crônica e a caricatura. Não por acaso,
a segunda metade dos oitocentos será representada em Portugal por dois artistas desses gêneros: Eça de Queirós e Bordalo Pinheiro. Aqui, não há mera coincidência.

O texto como um todo é delicioso, sendo que a crônica é contraposta ao “artigo de fundo”, estabelecido pelo autor como o contrário da crônica. Os dois gêneros são alegorizados numa situação algo carnavalesca, onde a crônica leva a melhor devido à sua qualidade básica, fazer rir:

Depois, a crônica tem estas vantagens sobre o artigo de fundo: é mais lida; o artigo de fundo é apenas lido por três sectários, por cinco caturras, por dois conselheiros velhos; [não] faz rir; o artigo de fundo não tem esta qualidade: faz, quando muito, sorrir, por ver bradar um homem no deserto.
(Ib., p. 452.)

Já Elza Miné, citando um artigo anterior do
Distrito de Évora, enfatiza outras características da crônica, segundo a concepção do jovem Eça:

[A crônica] conta mil coisas, sem sistema nem nexo, espalha-se livremente pela natureza, pela vida, pela literatura, pela cidade; fala das festas, dos bailes, dos teatros, das modas, dos enfeites. [...] Ela sabe anedotas, segredos, histórias de amor, crimes terríveis; espreita, porque não lhe fica mal espreitar. Olha para tudo. [...]
[...] está nas suas colunas cantando, rindo, palrando, palrando, não tem a voz grossa da política, a voz indolente do poeta, a voz doutoral do crítico, tem uma pequena voz serena, leve, clara, com que conta aos amigos tudo o que andou ouvindo, perguntando, esmiuçando. (Queirós apud Miné, op. cit., p. 17-8.)

São com essas idéias e instrumentos que Eça produzirá mais de sete meses de jornalismo quase diário, alternando o tom da voz e do estilo por meio de seus heterônimos, fazendo uma reportagem dos fatos locais, nacionais e estrangeiros sempre unida à
análise e à opinião, e criticando personagens e instituição de forma bem-humorada e usando a ironia e o sarcasmo para atingir seus objetivos. Todo esse esforço e tal experiência intensa e condensada repercutirá, sem dúvida, ao longo de sua carreira literária. Podemos dizer, sem medo de errar, que o Distrito foi o primeiro de seus projetos concretizados e, sendo o primeiro, dará em larga medida os parâmetros para os futuros.

Também para não deixar a oportunidade escapar, gostaríamos de fazer um paralelo entre essa experiência do escritor português e aquela realizada por um grande romancista russo – paralelo que tem muitas semelhanças e significativas diferenças. Dostoiévski no auge de sua fama e maturidade empreendeu um projeto pessoal que acalentara desde sempre: ser proprietário e redator exclusivo de um jornal mensal, que em 1876 recebeu o nome de
Diário de um escritor. Nesse jornal, “Dostoiévski era, além de escritor, crítico literário, analista político, memorialista, debatedor do socialismo utópico europeu e entusiasta do caráter nacional russo” (Nikitin, 2003, p. 8). Sozinho, auxiliado apenas por sua esposa na parte administrativa, o autor de Crime e castigo despejava mensalmente nas bancas russas sua prosa extraordinária e uma análise da realidade expressa por um “modo específico de entretecer informação e experiência numa nova forma literária capaz de provocar o leitor” (ib. – grifos do autor).

Se o jornal do escritor de Moscou foi uma obra de maturidade, por motivação própria e de autoria assumida, enquanto o de Eça se põe no pólo oposto dessas características, em comum temos a capacidade de escrita, o interesse pelo veículo jornalístico e uma mesma visão do objetivo da imprensa escrita (“entretecer informação e experiência” na formulação de Nikitin). O que não é pouco se anadirmos o fato de serem os dois jornalistas grandes romancistas da segunda metade do século XIX e de ambos os empreendimentos serem muito próximos temporalmente; levando-nos a ver nessas coincidências uma certa tendência dos literatos da época em realizações desse tipo, o que aponta para um possível processo artístico-social daquele momento, passível de estudos comparativos muito promissores.

A pertinência da comparação se completa quando pensamos que, no futuro, Eça vai cultivar permanentemente a disposição de criar uma revista cultural de grande impacto, que chegará a realizar, mas sem tanto sucesso. E que, de uma forma que tentaremos sistematizar mais adiante, nosso escritor conseguirá concretizar tal ideal não na forma de um veículo de sua propriedade, mas nas colunas fixas de vários periódicos.

Voltando ao presente que estamos estudando, o laboratório de Évora termina de modo anticlimático. Nosso redator não derrubou o governo, certamente uma das metas de seus patrocinadores, não estremeceu os pilares da pátria, não provocou a revolução. Tampouco foi censurado e silenciado pelas forças conservadoras, nada tão dramático e heróico. Tudo nos leva a crer que nosso factótum cansou da brincadeira e pediu demissão, não sem antes ter acumulado uma considerável poupança, ao menos assim pensam alguns biógrafos. Eça voltou à Lisboa, à boêmia e a seus textos arrevesados com abutres e cadáveres nos diários da capital.

Fechando o primeiro período jornalístico de Eça, concluímos que as duas atividades exercidas na imprensa, os folhetins da
Gazeta de Portugal e a atividade self-made man do Distrito de Évora, apontam para características permanentes do trabalho literário de Eça, sendo que, principalmente, sua visão sobre o jornalismo e as formas de textos propostos por ele no período se manterão e aprofundarão com o passar do tempo. Apesar das curtas citações e das rápidas análises feitas, retenhamos desta seção a importância do pensamento reflexivo no trabalho do periodista e o humor como estratégia crítica nessa função.

Abrindo um parêntese: alguns estudiosos procuram ver na história desse período (1866-1868) um desenvolvimento do escritor que passa gradualmente de um lirismo romântico para uma prosa realista. Parece-nos que a hipótese não se sustenta. Se, como se pensa, Évora foi uma das etapas do progressivo desprendimento do romantismo, há algo de errado no fato de Eça voltar para Lisboa e continuar com sua prosa-poética baudelairiana; seria um retrocesso estilístico, portanto. Em nossa opinião, o que se passa é que o escritor estava pronto. E, mais do que isso, dominava as várias normas literárias importantes da época: o poema em prosa, o ensaio jornalístico, a sátira e o discurso realista. O que faltava agora era escolher e afiar os instrumentos que melhor se adequassem a suas intenções e a seus projetos literários. Caso nossa percepção esteja certa, é possível interpretar o nome dado por Eça às coletâneas dos folhetins de Lisboa,
Prosas bárbaras, não como uma confissão de imaturidade, de uma pré-história literária, como muitos críticos o querem, mas um título que aponta para a oposição daqueles textos a uma civilização burguesa, aos textos filistinos produzidos numa época de covarde adequação da literatura aos padrões de moralidade e comportamento das elites burguesas – num mesmo passo que o dado por um dos escritores adotados por Eça como modelo naquela ocasião: Baudelaire.

Vale a pena dizer aqui que essa pode ser uma das várias ocasiões em que o “rei da ironia”, qualidade tão decantada por seus admiradores, foi levado ao pé da letra por seus críticos. Será uma das táticas adotadas no presente trabalho pôr sempre entre aspas as auto-referências de Eça e procurar, mesmo em textos não ficcionais, duplos sentidos em suas afirmações."

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Fonte:
José Carlos Siqueira de Souza: “Estudo sobre o trabalho jornalístico de Eça de Queirós para a Gazeta de Notícias, do Rio de Janeiro, ao final do século XIX”. (Dissertação apresentada no Programa de Pós-Graduação em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa, do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para a obtenção do título de Mestre em Letras. Orientador: Prof. Dr. Hélder Garmes). São Paulo, 2007.

Nota
:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

Disponível digitalmente no site: Domínio Público

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