Entre o Mito e a Literatura



“Buscar a origem de um mito parece um trabalho fadado ao insucesso. Não se trata de encontrar a origem do mito e sim de algo mais próximo do contrário, uma vez que o sentido ou a busca do mito é necessariamente pela origem ou, mais bem dito, não há mito, senão mito de origem.

Mitos envolvem a gênese de algo: do universo, das águas, do fogo, da terra, dos sexos, da culpa ou do próprio homem. Uma vez que podem versar sobre a origem do próprio humano, entre tantos outros fenômenos e substâncias que lhe são anteriores, não caberia ao homem a sua autoria. Os mitos dizem respeito às criações e peripécias divinas. Sendo da ordem do divino eles não requerem explicação não podem ser explicados pelos referentes humanos, cuja formulação de sentido exorbita o Real. “O mito é uma ‘janela para as sombras’, fresta para um além que sempre se esquiva, vidraça aberta para a noite, onde ressoa o riso dos deuses” (BRICOUT, 2001 p.17).

De tal modo, o mito mantém uma curiosa relação entre a ordem e o caos. Busca aproximar o caos de sentidos inalcançáveis pela razão dando-lhe certa ordem, mas preserva em si faltas e lacunas que denunciam, na organização dos sentidos, uma articulação subjetiva inerentemente necessária àquele que dele visa se aproximar. No mito, está a equivocidade do forjar, da qual aqui fazemos uso e com a qual encerrávamos o capitulo anterior. No mito, está o ferro malhado e formatado, marcado por um caráter uno, mas também o engano, o fabuloso, que aponta a união, o sentido e, ao mesmo tempo, a denúncia de um sem-sentido como produto da ficção. Produção, essa, em constante movimento a partir da apropriação errática de cada nova forja, de cada autor que visa a imprimir-lhe sua marca.

E estaria o Fausto elevado a essa categoria? Não seria antes uma lenda, uma personagem histórica ou talvez uma simples temática? O que se funda ou se origina com Fausto, se todo mito é de origem?

Propomos que Fausto se enquadraria, sim, nessa categoria de mito, uma vez que, enquanto nome-matéria-prima, serve para toda uma gama de criações de alegorias do drama humano diante da cultura, da nação, da produção de sua marca singular, da superação ou confrontação com seus limites. Além disso, o nome Fausto serve como receptáculo para a repetição de temas e personagens míticos que lhe são anteriores e lhe dão alicerce, além de inspirar a forja de “lendas biográficas”, que compõem constelações de personagens-guia de imaginários nacionais e universais. No que tange ao Fausto, eis sua singularidade, os elementos míticos ou mitológicos que lhe precedem se acoplam a uma personalidade histórica e dela fazem lenda, a ponto de não restar desse “histórico” senão o nome. A lenda vira folclore, marcando a repetição dos folguedos de farsas e jogos de marionetes, nas feiras públicas, para pouco a pouco se tornar tema de repetição de outra categoria: a literatura, como hoje a entendemos.

Se abrimos este capítulo apontando que o mito é sempre de origem, parece-nos que Fausto está na gênese do Homem, do humanismo. Ainda que sua primeira versão popular venha a lume pelas mãos de um editor vinculado à pregação religiosa, o tema que já ecoava em praça pública denuncia esta passagem de ênfase do divino para o humano, do medieval para o moderno, do teológico para o científico e as suas conseqüências no social. Nas repetições, denunciam-se o luto por um Deus, senão morto ao modo nietzscheano, moribundo e destituído do poder de outrora. O fascínio, nunca dissociado do medo, pelas maravilhas de um potencial humano inexplorado, por um lado, e a descrença no homem (charlatanismo, escroqueria) e em seu potencial científico, por outro, tornam-se questão em Fausto. Desacreditada do Deus, que se faz representar pela Igreja Romana, com suas corrupções e indulgências, e desconfiada de um saber mundano em construção (Alquimia, Astrologia, Medicina iatroquímica, renascimento do Helenismo), à sociedade que engendra Fausto só uma coisa é certa: a onipresença do espírito enganador.

É ele, ou a presença dele nos atos e aspirações humanas que está por trás deste mito que se desdobrará em literatura, fazer que tem também no engano ou no paradoxal o seu ponto de partida, mas com um modus operandi, assim pretendemos assinalar, diverso da tradição mítica. A passagem de um tema, do mito, enquanto tradição oral que encerra uma verdade, para a elaboração literária, que tem por princípio a ciência de uma Phantasie, faz da Literatura uma Ars Diaboli contraposta a Ars Magna do mito que exprime, conforme posto, o que é do divino, sendo o homem um mero e ineficiente veículo de sua difusão pela palavra. Na literatura, irrompe a ousadia prometeica de um autor que, por um instante, estanca o jorro oral da tradição mítica, apropriando-se dela para, dali, disso, fazer uma obra.

Para sintetizarmos as características do Mito e melhor compreendê-lo em extensão ou contraposição à Literatura, cabe apresentarmos uma síntese de como o concebe Mircea Eliade em seu Aspectos do Mito (apud BATISTA, 2003, p. 63-64):

1) Os mitos são histórias consideradas absolutamente verdadeiras (contrapostas às fábulas e ficções (num modo mais próximo ao literário moderno), no seio das sociedades nas quais o mito permanece vivo)
2) As histórias míticas falam dos Entes Sobrenaturais, seres fantásticos que com sua mágica intervenção puderam
3) Criar - o mundo ou qualquer outro algo - ou seja, tornar possível um vir a ser em um tempo próprio, das origens – O tempo primordial - sagrado e “apartado” do nosso tempo ordinário e profano;
4) As ações mágicas, nos tempos primevos, destes Entes Sobrenaturais têm um aspecto modelar para todas as atividades humanas, verdadeira conjuntura espiritual para as sociedades “primitivas”;
5) Conhecendo-se as origens das coisas, como elas foram constituídas pelos Entes Sobrenaturais, torna-se possível dominá-las e manipulá-las com os mais diferentes objetivos – por exemplo, fazer as plantas crescerem ou promover a cura de um enfermo – o que pode ser obtido pela
6) Rememoração das narrativas – com capital importância da memória -, vivendo- se o mito e tornando-se sagrado, capaz de, no contexto do ritual, tornar presente o Tempo Primordial e os Entes Sobrenaturais, mantendo-se contato com eles e vendo-os agir na formação das coisas; para este reviver mítico tem importância radical a
7) Palavra, cuja preeminência sobre a criação do mundo é inexorável, tanto no primo instante da geração – no qual a divindade e/ou o mundo podem ser o “objeto” de sua força criadora – quanto nas instâncias ritualísticas de recriação cósmica, levada a cabo pelos iniciados (pajés, xamãs e outros)

Há uma oposição clara de um mito enquanto tal, apresentado nas categorias acima dispostas, e o fazer literário a partir da modernidade. Fausto parece ser um exemplo patente disso em forma e tema.

Quanto à forma, temos a apropriação de algo que cabia ao divino pelo homem e a impressão nisto de uma autoria, ou da função-autor foucaultiana (FOUCAULT, 1969) da qual nos servimos; esta elaboração fica evidente a partir de uma característica fundamental da primeira aparição de uma obra escrita de um Fausto, a saber, O Volksbuch editado por Spies. A despeito da sua discutível qualidade literária, este livro se torna um best-seller que ultrapassa barreiras de línguas e fronteiras, é distinto dos demais que examinaremos pela ausência de uma autoria. Ponto de passagem, portanto, do mítico ao literário.

Reflexo do que traz o mítico em si ou uma nova morte do mito enquanto verdade divina? Assim como qualquer escritura sagrada, que não possui autor, salvo na qualidade de um repetidor-narrador, o livro de Spies pode esconder uma intencionalidade ao não ser assinado. Como Volksbuch (livro popular - livro do povo) torna-se mais verdadeiro no que anuncia, uma vez que se faz valer do dito vox populi, vox Dei. O Volksbuch, se é bem sucedido em sua popularidade e divulgação, parece ter um efeito colateral de disseminar o gérmen da autoria (tão contrária ao mito), que terá no inglês Marlowe sua primeira fecundação perene.

É o que essencialmente está no próprio mtema sobre o qual se passa a escrever. Se em Fausto temos os Entes Sobrenaturais, a relação não linear com o Tempo, e operação pela mágica da Palavra Sagrado-Profana (Sacer), cateforisa eliadianas, essas categorias deixam de ser exclusividade do divino ou de seus representantes (xamãs, pagés e sacerdotes) para serem apropriadas e manipuladas pelo Homem em seus anseios e em seu próprio nome e benefício (ou malefício). É nisso que apoiamos nossa tese de que o fáustico assinala a passagem do mítico como escritura divina e universal para o literário enquanto uma escritura autoral singular e subjetiva em sua gênese, mas social em sua base e em seus destinos.

A literatura autoral, nesse sentido, diferencia-se tanto da escritura sagrada quando da poética do aedo que canta os feitos dos deuses e heróis inspirado pela musa, e, portanto por algo da ordem do divino. É nisso que ela se manifesta herética, pela escolha (hairésis) de um autor, por um tema, um estilo (Elemento diabólico no entender do Mefisto de Valéry), os personagens e seus destinos. O que não quer dizer que este autor não se sirva, não se utilize da tradição mítica, muito pelo contrário. Mas o faz não como veículo divino e em nome do Outro, mas compreendendo esta tradição como uma produção ficcional que encerra verdades, as quais processa e articula em seu próprio nome. Ouvimos aqui nitidamente os ecos de nossa tese quanto à interpenetração de método (aproximação literatura e Psicanálise), tema (Fausto e o fáustico) e questão (Sinthome - o fazer em nome próprio a partir do legado) em nosso trabalho.

Mas eis a velha questão da oposição entre verdadeiro (’αληθής) X falso (ψευδής) no que tange ao mito e sua relação com qualquer possibilidade de ciência, no que vínhamos expondo. Questão que já se colocava na maiêutica socrática. Na busca de dar conta de uma verdade inexpressível pela demonstração empírica ou pelo recurso racional, mesmo o Sócrates platônico da República (acusado por Nietzsche de conter o élan criativo dos jovens atenienses com seu elogio da racionalidade e que bane os artistas das representações imagético-ludibriadoras), parece apontar o μûθος como o único ponto de partida possível para tratar do verdadeiro:

Sócrates – Não convém começarmos a sua educação pela música em lugar da ginástica?
Adimanto – Sem dúvida.
Sócrates – Tu admites que os discursos fazem parte da música ou não?
Adimanto – Admito.
Sócrates – E existem dois tipos de discursos, os verdadeiros e os falsos?
Adimanto – Sim, existem.
Sócrates – Ambos entrarão em nossa educação, ou começaremos pelos falsos?
Adimanto – Não estou entendendo.
Sócrates – Nós não começamos contando fábulas às crianças? Geralmente, são falsas embora encerrem algumas verdades. Utilizamos estas fábulas para a educação das crianças antes de levá-las ao ginásio.
Adimanto – É verdade. (A República – Livro II 376e-377a)

Ho, ho... Bem se vê que você me freqüentou. Esse estilo aí me parece bastante mefistofélico, Sr. Autor!... Em resumo, o estilo é o diabo!)

Há uma diferença clara no que tange à relação com o mito nas sociedades teocêntricas, que por ele se orientam, e a partir de um antropocentrismo, seja o clássico (socrático-platônico) ou o humanismo moderno que nasce junto com Fausto: nessas últimas, manifestam-se a ciência de sua falsidade e insistência em usá-la em prol da verdade como produção ou efeito e não como revelação direta e inequívoca. Algo bastante diverso da relação pré-humana com o mito nas sociedades onde ele é vivo.

Se o canto do aedo igualava o verdadeiro (‘αληθής), uma operação inaugura- se quando um homérico passa a gravar-escrever (o que em grego não se diferencia) isso, congelando-o no tempo e num espaço e a essa operação associando um nome. Se Platão o baniria, o poeta de sua República, talvez não tenha percebido o valor desta operação, que viria ecoar metonimicamente de autor em autor até encontrar nosso Joyce e sua Odisséia renomeada Ulysses. Quanto ao Fausto, a partir do Volksbuch anônimo, que congela e transporta a palavra que ecoava nas feiras, nas tavernas, nos sermões e nas alcovas, também este inaugura uma série de apropriações que se dispõem numa cadeia: Marlowe, Widmann, Lessing, Goethe, Berlioz, Gounod, Heine, Spengler, Valéry, Mann, Guimarães Rosa, Jarry...

Aqui, chegamos a um ponto essencial. Vemos aqui uma repetição, que não concerne propriamente, no seu aspecto eminentemente subjetivo, àquela que Lacan hereticamente associa à pulsão, ao inconsciente e à transferência como sendo o quarto conceito fundamental da Psicanálise. Uma repetição que se manifesta num plano cultural. Não se tratando, tão somente, da Wiederholungszwang (compulsão à repetição) teorizada por Freud em seu Jenseits des Lustprinzips (1920) que dará conta de toda a teoria lacaniana do gozo, da neurose obsessiva entre outras questões estritamente clínicas. Essa repetição que aqui observaremos no mito e em seus tratamentos interessa-nos, antes, naquilo que a categoria traz também de um aspecto que estaria na fronteira entre o sujeito e a cultura, numa remissão mútua de transformação pela mediação e elaboração. Estaríamos aí talvez mais próximos da repetição de Kierkegaard em seu ensaio que leva o mesmo nome.

Kierkegaard antecede os psicanalistas ao afirmar que na repetição não se trata de um automatismo inócuo, da resignação inibitória, da compulsão sintomática ou da estagnação da angústia. É na repetição que está a possibilidade do avanço, da novidade: “A dialética da repetição é simples, pois aquilo que se repete existiu, caso contrário, não poderia ser repetido, mas é precisamente o fato de ter existido que dá à repetição o caráter de uma novidade”. (2003, p.60)

A repetição aparece para a Psicanálise, num certo sentido, já no Freud pré-psicanalístico (1896) com a célebre constatação de que “as histéricas sofrem de reminiscências” sendo a “doença”, o sintoma, uma forma de atualização destas reminiscências. E é nesse sentido que em seus Artigos sobre Técnica, em Erinnern, Wiederholen und Durcharbeiten (1914), Freud pensará em utilizar o que é repetido em análise, concebendo-o como uma atualização do recalcado posto em cena pelo mecanismo da transferência, como a maneira de possibilitar ao analisante, apropriar-se e do que parecera anteriormente acaso, culpa, fraqueza, azar, injustiça alheia, ao deparar-se com “sem-sentido” de tais asserções. Eis onde reside o terceiro termo que intitula seu artigo: a elaboração.

Também Kierkegaard associa a repetição à reminiscência, apontando aí sua concepção clássica. “Quando os gregos diziam que todo conhecimento é reminiscência, eles entendiam por isso que tudo aquilo que foi, e quando se diz que a vida é uma repetição, isso significa que a vida que já foi se torna agora atual”, ao que ajunta: A reminiscência é a concepção pagã da vida, a repetição é a moderna”.(2003, p.61) Mas, haveria aí uma diferença fundamental entre a recordação e a repetição a ser colocada pelo filósofo dinamarquês:

A repetição e o relembrar representam o mesmo movimento, mas em sentidos opostos; pois isto de que nos lembramos é o que foi, é uma repetição a em retrospecto. Por outro lado, nós nos recordamos da verdadeira repetição indo na direção de um avanço. É por isso que, quando ela é possível, a repetição torna o homem feliz, ao passo que a recordação o torna infeliz...
( idem, p.30).

A repetição que nos interessa aqui é aquela que se processa em cada autor que toma o Fausto como tema de produção resgatando aí a ética do sinthome, sobre a qual tecemos breves comentários, mas que melhor explicitaremos no capítulo a ela dedicada. Trata-se de uma tomada de posição diversa de toda passividade perante a cultura. Como está também em Kierkegaard: “Aquele que se contenta em esperar é um frouxo, o que se contenta em relembrar é um voluptuoso, mas o que deseja a repetição, este é um homem”. (ibidem).

E quando nos debruçamos sobre o tema de Fausto como o modo de fazer-se um nome (ou fazer-se um homem) pelos seus atos, o processo da repetição nos é essencial para seu entendimento. É onde fica difícil separarmos a tríade nominação, criação biográfico-ficcional e repetição, pois o que investigamos e pretendemos demonstrar de Fausto está no modo como cada autor se apropria desta temática mítica (logo, universal) e processa a partir disso algo que se dá em nome próprio (singular).

No Fausto, está em cena a prevalência da ação, mas a produção dos Faustos, porém, não a compreendemos como o acting out, tampouco passagem ao ato, como o que Freud lembra no artigo recém-evocado: “Quanto maior a resistência, mais extensivamente a atuação ([alemão] agieren -[inglês] acting out) (repetição) substituirá o recordar” (1914, p.211). Mas, na produção de cada Fausto, está uma elaboração de algo que vai além de uma recordação biográfica nos moldes de um diário. Quando um autor se dispõe a compor seu Fausto, ali ele se faz o personagem, assim o entendemos, no sentido de que esta escritura sela um certo pacto pela produção de algo. O que faz-nos lembrar o prefácio de Repetição quando seu autor refere-se ao próprio Kierkegaard: “Um destes que não pertence mais à comunidade das pessoas ordinárias, falando, no entanto, em seu nome – um excluído, um maldito: um poeta moderno.” (2003, p. 20) E tal julgamento se justifica quando o próprio Kierkegaard, que abre mão de uma felicidade conjugal como o preço a pagar para sua realização como pensador-escritor, assim define a “missão do homem: tornar-se real, visível, entrar para a existência aqui e agora, realizar-se por si mesmo como esta possibilidade particular que se é. Tornar-se autêntico é a única maneira de permanecer autêntico, é justamente a repetição” (apud POULSEN in KIEKEGAARD, 2003 p.31).

Trata-se de uma repetição que interroga, desfaz e refaz um cânone filosófico, literário e social. Trata-se da retomada singular que cada autor faz do mito para com ele alcançar uma verdade. Se, no entender de Lacan, “Dizer o verdadeiro sobre o verdadeiro é uma mentira” (LACAN, 1976-7 p.152). A repetição desse mito-cadeia a qual se ajunta um resto metonímico de singularidade a cada nova versão, também uma ponta de verdade aí se manifesta. “Sempre digo a verdade: não toda, porque dizê-la toda não se consegue. Dizê-la toda é impossível, materialmente: faltam palavras. É por esse impossível, inclusive, que a verdade tem a ver com o real.” (LACAN, 1973 p.509) E é somente na repetição que o impossível do real se pode apenas apresentar.

Fernando Pessoa, o autor múltiplo, ou de vários nomes, autor que certamente incluímos neste rol dos Nomes de Fausto, mostra em ato (de escrita autoral) como o mito é caro ao literário e como pelo literário-poético dele podemos extrair sua função:

O mito é o nada que é tudo
O mesmo sol que abre os céus
É um mito brilhante e mudo –
O corpo morto de Deus,
Vivo e desnudo

No gênero literário, é sobretudo pela poética que (mais que a prosa e a narrativa) se igualam as potências da forma e do conteúdo, o gênero em que mais bem se cria, se produz ou se inventa a partir do mito, onde mais bem se trabalha com a palavra, via sacra do mítico, como pretendemos trabalhar na seção que à poesia dedicamos (capítulo 6). Na poesia, o paradoxo inverossímil denuncia contradições inerentes à verdade inefável senão pela chispa, numa fugacidade que quase nos escapa. Se o mito é o nada que é tudo, o verso é o algo que disso se produz.

Como este corpo morto de Deus, o pai, a tradição se revela ou se ilumina em cada autor, eis a influencia bloomiana, o fazer poético. Se a metáfora da castração (do intransponível, do inefável, do interdito) foi para Freud a rocha-viva, quem melhor a representa que o sol (a rocha incandescente, representação clássica), o princípio masculino e diurno da alquimia faustiana, primeira representação da divindade única, o astro-rei, astro-pai (Deus/Dies). Nisso Freud e Lacan souberam identificar a apropriação do mítico e do literário para o analítico.

Como apropriação do Nome-do-Pai (este corpo morto, vivo e desnudo) que retorna transfigurado no sintoma, na inibição, na angústia; nas produções e queixas de um sujeito em análise, dali depreendem-se construções que Freud sugestivamente chamará de Romance Familiar e que Lacan aludirá como o Mito individual do neurótico.

Nesta última, conferência na qual Lacan visa cruzar uma leitura de Freud com Lévi-Straus e suas revolucionárias concepções estruturalistas acerca do mito, o psicanalista propõe a importância que o mesmo teria na compreensão de uma verdade:

Le mythe est ce qui donne une formule discursive à quelque chose qui ne peut pás être transmis dans la définition de la vérité, puis que la définitions de la vérité ne peut s’appuyer que sur elle-même et que c’est en tant que la parole progresse qu’elle la constitue. La parole ne peut pas se saisir elle même, ni saisir le mouvement d’accès à la vérité, comme une vérité objetive.
Elle ne peut que l’exprimer – et ce, d’une façon mythique.(LACAN, 1979 p.292)

Para a Psicanálise, também existe o mito ou os mitos, sobretudo o da Horda Primeva e o de Édipo, cujas pertinências Lacan apontará do primeiro à neurose obsessiva e do segundo á histeria. Mas, cabe ao analisante escutar como o mito literariamente imprime este universal em uma singularidade sem disso se ter ciência.

Não que, conforme o “mito” que se difundiu sobre a Psicanálise, a cura adviria da decifração do próprio enigma, ainda que esta curiosidade epistemofílica tenha sido crucial como característica biográfica de seu idealizador. Mas não, a Psicanálise não seria uma cura pela hermenêutica, mas que, no entanto, passa pela advertência. Não que haja avanços por saber o sentido do que levava ao sofrimento, (até por que não é regra que sentido o tenha, mas que à problemática dos sentidos só o agrave), mas antes por saber o quanto este mesmo “sentido” é fruto de construção, de ficção. Eis a grande lição das histéricas a Freud. Se estas sofreriam de reminiscências não quer dizer que de lembranças de um fato, um ocorrido, mas antes de um desejado efeito fantasia.

A esse sujeito analítico que vive um enredo em que é o principal roteirista, ciente de sua face mítica, de produção com efeitos de verdade, mas não de uma realidade uni-versal e inevitável, caber-lhe-ia remalhar este ferro incandescente esta rocha viva para que ganhe uma forma própria (Eigengestalt) sem que se siga alienado á forma do Outro (na neurose de transferência)."

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Fonte:
PEDRO HELIODORO DE MORAES BRANCO TAVARES: “NOMES DE FAUSTO: Traços de Sinthome na Forja do Pactário”. (Tese apresentada como requisito parcial à obtenção do grau de Doutor. Orientadores: Sergio Medeiros (UFSC) / Marie-Claude Lambotte (Paris 7). Universidade Federal de Santa Catarina). Florionópolis, 2007.

Nota
:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Disponível digitalmente no site: Domínio Público

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