Goethe e sua época

“Por volta de 1770 irrompeu na Alemanha um movimento em favor da emancipação da literatura nacional: o Sturm und Drang (tempestade e impulso) – nome retirado de uma peça de Friedrich Maximilian Klinger, publicada em 1776. O Sturm und Drang ou Pré-Romantismo alemão tinha um sentido de luta contra o domínio da literatura francesa, de onde emanavam, até então, as regras clássicas. A resistência dos jovens integrantes do movimento à literatura tradicional estava intimamente relacionada com a rejeição ao absolutismo, do qual o classicismo francês havia sido um ícone.

Este movimento, conhecido como a primeira corrente romântica da Europa, integrou Herder, Lenz, Wagner, Schiller e Goethe, entre outros. Ainda que conserve certos traços da filosofia da Ilustração, como o desacordo com o regime absolutista, o movimento vai radicalizar a revolta contra o regime e, confrontando diretamente os princípios da Ilustração, faz a apologia do irracionalismo. Os jovens alemães anunciam a falência da razão e do intelecto e apregoam “o valor supremo dos impulsos e emoções, da intuição e da sensibilidade, do inconsciente e da inspiração do gênio, contraposto à inteligência do artista” (ROSENFELD, 1965, p. 7).

Uma das características mais marcantes do Sturm und Drang é o conceito de “gênio”. O gênio é o poeta vidente, um criador, tal como Deus e a natureza. Dentro da concepção de gênio está a ideia da insubordinação às regras tradicionais e às autoridades. As produções do gênio resultam da inspiração e do impulso e não da racionalidade equilibrada. Daí resulta “a exaltação de Shakespeare, como criador supostamente inconsciente e primitivo” (ROSENFELD, 1965, p. 13). Ao gênio tudo deveria ser permitido. Entretanto, é de se notar que a sociedade, com as suas regras tradicionais, funcionava como limitação às pretensões dos jovens gênios. Não resignados com os limites impostos, os integrantes do Sturm und Drang, em vez de lutarem contra as arbitrariedades do regime absolutista e por uma organização social mais justa, pregavam “a emancipação anárquica do indivíduo” (Ibidem, p. 9). Isso conduziu ao conflito com a sociedade.

A Ilustração trouxera o individualismo liberal, que se baseava naquilo que era comum a todos os homens: a razão. Porém, os jovens do Sturm und Drang estavam longe de fazer a apologia da razão, cultuavam, antes, as emoções e o que, no ser humano, era impulso e sensibilidade, em suma, o que singularizava os indivíduos. Não caberia, pois, representar o típico, aquilo que uniformizava os indivíduos, mas o individuo real, concreto, a sensibilidade, o gênio que produzia obras originais. É importante lembrar, contudo, que o espaço principal não seria ocupado pela obra, mas pelo autor. A obra valia, antes de tudo, como expressão da subjetividade do gênio.

A inovação maior fica por conta da maneira como compreendem a natureza. No panteísmo dos pré-românticos, no voltar-se para a natureza, é nítida a influência de Rosseau. A natureza é divinizada pelos gênios e passa a ser uma extensão do indivíduo. Anatol Rosenfeld assim explica este processo:

A divinização da natureza é estimulada pelo ardor místico, mercê do qual o exasperado individualismo, incapaz de deter-se nos limites da pessoa empírica, e ainda menos capaz de integrar-se na sociedade, encontra via de expansão infinita, através do êxtase e da auto-dissolução do eu consciente numa unidade que abrange o universo
(Ibidem, p. 21).

Os jovens do Sturm und Drang reivindicavam liberdade nos aspectos político, social, ético e estético. Daí o seu entusiasmo com a Revolução Francesa. Os pré-românticos manifestavam sua revolta em relação às estruturas sociais, às desigualdades entre a aristocracia e as demais classes sociais, à disciplina militar, ao moralismo, à intolerância religiosa dos luteranos ortodoxos. A revolta dos jovens está baseada na sua, referida, condição de gênios. Um gênio tem:

a capacidade de criar valores de beleza sem obedecer às regras eruditas pelas quais é formado o gosto artístico dos cultos; capacidade atribuída ao povo e invocada para reabilitar a poesia popular, que o gosto clássico desprezara. Um gênio é, então, aquele que não precisa de regras para comover e edificar
(CARPEAUX, 1964, p. 57).

Goethe assim define o fenômeno do Sturm um Drang:

esses mútuos estímulos, levados ao excesso, conferiram a cada um, no seu gênero, uma alegre influência; e desse turbilhão e dessa atividade, desse fazer e deixar fazer, desses empréstimos e dessas liberalidades, a que tantos moços se entregavam cegamente, livremente, sem nenhuma direção teórica e cada um segundo o seu feitio natural, surgiu essa gloriosa época literária de tão glorioso e tão deplorável renome, na qual uma multidão de moços talentosos se exibiram com todo o ardor e toda a presunção dessa idade [...]
(GOETHE, 1971, p. 402).

Em 1770, quando viajou para Estrasburgo com a intenção de concluir seus estudos de Direito, Goethe travou conhecimento com Herder. Tal amizade seria profícua para o desenvolvimento intelectual do poeta, que foi Herder quem o iniciou no estudo da poesia popular, do poeta Ossian e de Shakespeare. Estas três fontes aliadas à influência de Rosseau, do romance sentimental inglês, escrito em forma de epístolas, e à descoberta de Shakespeare, possibilitada pela tradução de Wieland, compõem as influências do Pré-romantismo alemão, movimento com o qual, em 1774, ano da publicação de Werther, Goethe estava familiarizado.

Os sofrimentos do jovem Werther
foi a grande obra do Sturm und Drang. A recepção do livro pelo público da época foi um fenômeno espetacular. Na sua biografia, Poesia e Verdade, Goethe (1971) afirma que foi a sua paixão pela noiva de um amigo, em 1772, e o suicídio do jovem Jerusalem, motivado por uma decepção amorosa, que constituíram a matéria que deu origem à obra. Por isso, segundo o poeta, não seria possível distinguir entre poesia e realidade. “Sua obra e sua vida formam uma só unidade indestrutível e indivisível” (CAHN, 1960, p. 17, tradução nossa). Movido pela inspiração, “Goethe não consegue dar expressão poética a um assunto que esteja fora do âmbito de sua experiência vivida, encarná-lo e poetizá-lo, para depois, então, confirmá-lo sob a influência convincente da vida” (SCHWEITZER, 1950, p. 62). Nos seus personagens encontramos semelhanças com a sua própria vida. No Fausto, por exemplo, encaixa o episódio de Margarida, completamente desvinculado da tradição, porém intimamente relacionado à vida do poeta, uma vez que este se sentia culpado por ter causado uma decepção a uma jovem. Para Schweitzer (1950, p. 115), Goethe, “desde a sua juventude está perfeitamente cônscio de que seus versos não passam de fragmentos de confissões de sua própria vida.” No excerto abaixo, Goethe, de certa forma, explica as possíveis razões de sua produção literária ter enveredado por este caminho:

Foi assim que comecei a seguir essa direção de que nunca mais pude afastar-me: transformar em quadros, em poemas, todos os motivos de minhas alegrias, dores, preocupações, e estabelecer a ordem dentro de mim mesmo, seja a fim de retificar minhas idéias sobre os objetos exteriores, seja para fazer meu espírito voltar ao repouso no tocante a essas coisas
(GOETHE, 1971, p. 220).

Podemos dizer que Goethe não estava em harmonia consigo mesmo e a criação literária se apresentava como uma maneira de se libertar dos conflitos internos.

É em um mundo de contradições, revoltas e transformações que surge a figura de Goethe. O poeta viveu em uma época em que a Alemanha estava esfacelada, dividida em pequenos principados, em que a burguesia era oprimida pela aristocracia feudal. Viveu durante a Revolução Francesa e as Guerras Napoleônicas:

Tive a vantagem de nascer numa época em que estiveram na ordem do dia os mais importantes acontecimentos mundiais os quais continuaram a se desenrolar durante minha longa existência, de forma que fui testemunha viva da Guerra dos Sete Anos assim como da Independência da América; em seguida, da Revolução Francesa, e, finalmente, de toda a era napoleônica até a queda do herói, e dos subseqüentes acontecimentos
(ECKERMANN, 2004 p. 62).

Quando Goethe publicou Os sofrimentos do jovem Werther já haviam transcorrido 11 anos do término da Guerra dos Sete Anos. Naquele momento, autores como Lessing e os integrantes do Sturm und Drang escreviam peças combatendo a opressão da burguesia pela aristocracia e criticando as condições sociais. No romance de Goethe, em contrapartida, como refere Nitschak (1983), não queixa ou protesto em relação à situação da burguesia. Isto, associado ao fato de o poeta posicionar-se contra a Revolução Francesa e a sua proximidade com o duque Carlos Augusto de Weimar, contribuiu para que se criasse a imagem de um Goethe avesso às mudanças, “partidário do existente” (ECKERMANN, 2004, p. 56), e de não ser amigo do povo.

Mais de 30 anos depois dos primeiros acontecimentos da Revolução Francesa, na conversa do dia 4 de janeiro de 1824, Goethe comenta com Eckermann que, pelo fato de odiar as revoluções, é considerado aristocrata e conservador. Contudo, o poeta explica que não poderia ser favorável à Revolução Francesa, pois os homens que a fizeram estavam muito próximos dele e, além disso, não se notava os benefícios desta revolução. Do mesmo modo, Goethe não aceitava que pretendessem promover na Alemanha os mesmos acontecimentos que na França foram fruto da necessidade:

é conveniente a uma nação, o que provém da sua própria substância e das próprias necessidades gerais, sem ser um arremedo servil, pois o que pode ser alimento benfazejo a um povo em certo grau de evolução, agirá talvez sobre outro como um veneno
(ECKERMANN, 2004, p. 56).

Goethe se declara contrário a todo tipo de despotismo e afirma que a culpa pela ocorrência das revoluções não deve ser atribuída ao povo, mas ao Governo, pois se este último fosse eficiente e justo não haveria necessidade de sublevação. É a violência, inerente às subversões, que incomoda o poeta, pois com ela tudo de bom se destrói. Nesse sentido, o poeta esclarece: “Não sou amigo da população revolucionária que trama o saque, o assassínio, a destruição, e que, hipocritamente oculta por detrás da opinião pública, só visa às intenções mais baixas e egoístas” (ECKERMANN, 2004, p. 121).

Se a existência de Goethe foi contemporânea de vários fatos históricos importantes, no que diz respeito ao aspecto estético, o poeta viveu durante a época do Rococó, da Ilustração, do Sturm und Drang, do Classicismo e do Romantismo. A produção correspondente aos primeiros anos do poeta em Weimar é, conforme refere Carpeaux (1964), ainda tipicamente pré-romântica. A fase classicista de Goethe tem como marco a sua viagem à Itália, ocorrida em 1786, e perdura até 1805. Desde que passara a residir em Weimar, Goethe assumira várias funções na administração daquele pequeno ducado. Tais funções o absorveram completamente durante dez anos, vindo mesmo a impedir que se dedicasse à produção literária. A viagem à Itália adquire, então, um sentido de fuga para desenvolver a sua potencialidade poética.

Datam deste período as Elegias Romanas, a Ifigênia em Táuride, Torquato Tasso e algumas cenas do Fausto, entre outras obras. Nesta fase, Goethe supera o sentimentalismo pré-romântico e conquista o equilíbrio clássico. Um fato que contribuiu imensamente para a evolução do poeta foi a sua amizade com Schiller (1794). Os dois poetas foram profícuos um para o outro. Graças à insistência de Schiller, Goethe retomou, em 1797, o projeto do Fausto, terminando a primeira parte em 1806, um ano depois da morte do amigo, e a publicou em 1808."

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Fonte:
CARINA MARQUES DUARTE: “DO CRIADOR DE CIVILIZAÇÃO AO EU-ABISMO: UMA LEITURA PALIMPSESTUOSA DO FAUSTO DE FERNANDO PESSOA”. (Dissertação submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras do Instituto de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Letras com ênfase em Literaturas Portuguesa e Luso-africanas. Orientadora: Profa. Dra. Jane Fraga Tutikian). Porto Alegre, 2010.

Nota
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