João Guimarães Rosa – a produção rosiana

“O livro pode valer pelo muito que nele não deveu caber” (Tutaméia)

“O objetivo inicial deste estudo compreende a exposição cronológica da obra rosiana, de modo a pontuar o conto O Espelho in Primeiras Estórias (1962), como parte de um universo singular em que as palavras assumem intensa pluralidade de sentidos, além de uma dimensão filosófica.

A primeira fase da produção rosiana comporta contos publicados na revista O Cruzeiro e em O Jornal, ambos do Rio de Janeiro.

Após as publicações dos chamados contos imaturos, o autor concorre, em 1936, ao Prêmio da Academia Brasileira de Letras com o volume de poesias “Magma”. Embora seu livro saia vitorioso, não o publica.

Escreve em seguida Sagarana (1946), narrativa repleta de termos especializados e poéticos, que atestam a influência do meio em que viveu. Esta forma de retomar à palavra regional e garantir-lhe um significado extremamente universal vem consagrá-lo como um autor que realiza uma verdadeira revolução da linguagem.

O regionalismo construído em Sagarana revela-se muito mais autêntico e duradouro, porque ancorado em uma das mais cobiçadas conquistas: a da língua como ideal da expressão literária regionalista. Densa e vigorosa, a língua foi talhada por Guimarães Rosa no veio da linguagem popular e disciplinada dentro das tradições clássicas.
(CANDIDO, 1983, p. 245)

Em janeiro de 1956, publica Corpo de Baile que, a partir da terceira edição, desdobra-se em três volumes autônomos, figurando Corpo de Baile como subtítulo: Manuelzão e Miguilim (1964); No Urubuquaquá, No Pinhém (1965) e Noites do Sertão (1965). Em maio de 1956 publica também, Grande Sertão: Veredas. Duas longas obras, a primeira composta de sete narrativas às quais o próprio autor denomina poemas, romances e contos, a segunda sendo o extenso e ininterrupto “monólogo-dialogado” de Riobaldo.

Segundo Alfredo Bosi em História Concisa da Literatura Brasileira, a palavra, adquire com Guimarães Rosa, um feixe de significados que potencializam sua carga semântica e, sobretudo musical. Há uma alteração profunda no modo de enfrentar a palavra, sendo o signo estético portador de formas e sons que revelam as relações íntimas entre significante e significado. Os conteúdo sociais e psicológicos acionam ampla relação com o plano de expressão.

Toda voltada para as forças virtuais da linguagem, a escritura de Guimarães Rosa procede abolindo intencionalmente as fronteiras entre narrativa e lírica, distinção batida e didática, que se tornou, porém, de uso embaraçante para a abordagem do romance moderno. Grande Sertão: Veredas e as novelas de Corpo de Baile incluem e revitalizam recursos da expressão poética: células rítmicas, aliterações, onomatopéias, rimas internas, ousadias mórficas, elipses, cortes e deslocamentos de sintaxe, vocabulário insólito, arcaico ou de todo neológico, associações raras, metáforas, anáforas, metonímias, fusão de estilos, coralidade. Mas como todo artista consciente, Guimarães Rosa só inventou depois de ter feito o inventário dos processos da língua.”
(BOSI, 1994, p. 429-430)

Também salutar é a interpretação da obra deste escritor do ponto de vista do poético tal como proposto por Roman Jakobson em Lingüística e Comunicação:

(...) numerosos traços poéticos pertencem não apenas à ciência da linguagem, de vez que a linguagem compartilha muitas propriedades com alguns outros sistemas de signos ou mesmo com todos eles (traços pansemióticos).
De igual maneira, uma segunda objeção nada contém que seja específico da literatura: a questão das relações entre a palavra e o mundo diz respeito não apenas à arte verbal, mas realmente a todas as espécies de discurso. (JAKOBSON, 2001, p. 119)

Continuamos a nos pontuar pela análise de Alfredo Bosi sobre a genialidade da linguagem criada por Guimarães Rosa. Esta passa ao status de mythos, transcendendo qualquer relação com uma possível ingenuidade. O sertão constitui-se num universo excepcionalmente rico em rastros mitológicos. Mas também há o homem rústico que tenta desvendar-se, ou melhor, entender os mistérios do ser humano. O princípio fundamental da linguagem poética rosiana, pode ser atribuído à ancoragem entre fala inovadora e as matrizes da língua. Suas estórias são fábulas que revelam, a partir do regional, uma visão global da existência. Há nitidamente a presença de um pensamento mítico, propenso a fundir numa única realidade, a Natureza, o bem e o mal, o divino e o demoníaco, o uno e o múltiplo, o eu e o outro, enfim o duplo.

O conflito entre o eu/herói e o mundo (que nos tem valido de fio de Ariadne no labirinto da ficção moderna) não desaparece no grande romance de Guimarães Rosa: resolve-se mediante o pacto do homem com a própria origem das tensões: o Outro, o avesso, ‘os crespos do homem’. Quanto à dialética da trama (que se reconhece nas lutas entre jagunços, nas vinganças juradas, na relação ambígua entre Riobaldo e Diadorim) não se processa mediante a análise das fraturas psíquicas nem pela mimese de grupos e tipos locais: faz-se pela interação assídua da personagem com um Todo natural-cultural onipresente: o sertão. ‘O sertão é do tamanho do mundo’. ‘O jagunço é o sertão’. ‘Sertão é isto, o senhor sabe: tudo incerto, tudo certo’. Nesse Todo positivo e negativo interpenetram-se o sensível e o espiritual de tal sorte que o último acaba parecendo uma intenção oculta da matéria (‘Tem diabo nenhum, nem espírito’), que se manifesta nos modos pré-lógicos da cultura: o mito, a psique infantil, o sonho, a loucura. A alma desmancha-se nas pedras, nos bichos, nas árvores, como o sabor que não se pode abstrair do alimento.”
(BOSI, 1994, p. 431)

Em 1962, Guimarães Rosa retorna aos contos, publicando Primeiras Estórias, volume com vinte e um pequenos contos, sendo O Espelho o conto central que se apóia na lógica para destruí-la.

As Primeiras Estórias e Tutaméia foram resultantes normais daquele processo à ordem mental do adulto civilizado branco que se instaurara na linguagem de Grande Sertão: Veredas, como podemos verificar:

“O mitopoético foi a solução romanesca de Guimarães Rosa. A sua obra situa-se na vanguarda da narrativa contemporânea que se tem abeirado dos limites entre real e surreal (Borges, Buzzati, Calvino) e tem explorado com paixão as dimensões pré-conscientes do ser humano (Faulkner, Gadda, Cortazar e o avatar de todos, James Joyce). E seria talvez fácil paradoxo lembrar que uma obra de tão aguda modernidade se nutre de velhas tradições, as mesmas que davam à gesta dos cavaleiros feudais a aura do convívio com o sagrado e o demoníaco.”
(BOSI, p. 428-434)

Mediados por O Espelho, os contos de Primeiras Estórias apresentam, por sua disposição, a relação entre o objeto e sua imagem. Podemos afirmar que os contos apresentam-se aos pares, tendo como “limite” o conto O Espelho. Se considerarmos um sistema óptico, O Espelho estaria entre /objeto/ versus /imagem/. Percebemos que em todos os contos é patente o fascínio do alógico: crianças, loucos, sertanejos, animais, natureza, homens e mulheres com suas crenças, o /racional/ versus /emocional/ se desdobram como num jogo de espelhos. Há o interesse em situar /mensagem/ versus /código/. Embora a separação dessas várias camadas seja impensável. E isso faz da obra de Guimarães Rosa um universo infinitamente rico.

“Outro problema seria o de situar a opção mitopoética do escritor na práxis da cultura brasileira de hoje. A transfiguração da vivência rústica interessa principalmente enquanto mensagem, ou enquanto código? O que ficará em primeiro plano na consciência do homem culto: a reproposição da vida e da mentalidade rural e agreste, ou o experimento estético? É certo que a crítica mais recente, escolhendo o ponto de vista técnico, no espírito do neoformalismo, tende a passar por alto a complexa rede de estilos de pensamento que serviram de contexto e subjazem à ficção de Rosa. Uma leitura que ignore essas vinculações pode resvalar em uma curiosa ideologia, espécie de transcendentismo formal, não menos arriscada que o conteudismo bruto que lhe é simétrico e oposto. Mais uma vez, impõe-se a procura do nexo dialético que desnuda a homologia entre as camadas inventivas da obra e os seus contextos de base.”
(BOSI, p. 428-434)

Em 1968, é editado, postumamente, o volume intitulado Estas Estórias. Além de trabalhos inéditos, o volume reúne alguns textos publicados na revista Senhor, a história “Os chapéus transeuntes” do livro Os sete pecados capitais (obra conjunta) e “Entremeio: com o vaqueiro Mariano”.

Em 1970, é publicado Ave, Palavra. Assim como Estas Estórias, os textos desse volume já vinham sendo preparados pelo autor ao longo do tempo. São notas de viagem, diários, poesias, contos, meditações.

Como nosso objeto de estudo é o conto O Espelho in Primeiras Estórias, somente faremos uma breve descrição do enredo dos contos que compõem esse livro, já que a análise do conto central estará presente em capítulo posterior, mais precisamente no capítulo quatro que trará uma análise minuciosa, buscando relações com tantos outros trabalhos sobre este mesmo conto, assim como o elo com o texto-visual Las Meninas de Pablo Picasso, analisado no capítulo cinco. Prosseguimos com os contos:

I – As margens da alegria. Um menino, em estado de graça por descobrir a vida, vivencia momentos de alegria - viagem de avião, deslumbramento pela flora e fauna – e tristeza – morte do peru, derrubada de uma árvore.

II – Famigerado. O jagunço Damázio Siqueira atormenta-se com um problema vocabular: ouviu a palavra “famigerado” de um moço do governo e procura o farmacêutico para saber se tal termo era um insulto contra ele, jagunço.

III – Sorôco, sua mãe, sua filha. Um trem aguarda a chegada da mãe e da filha de Sorôco para conduzi-las ao manicômio de Barbacena. Durante o trajeto até a estação, acompanhadas por Sorôco, elas começam surpreendentemente a cantar. Quando o trem parte, Sorôco volta para casa cantando a mesma canção, e os amigos da cidadezinha, solidariamente, cantam junto.

IV – A menina de lá. Nhinhinha possuía dotes paranormais: seus desejos, por mais estranhos que fossem, sempre se realizavam. Isolados na roça, seus parentes guardam em segredo o fenômeno, para dele tirar proveito.

V – Os irmãos Dagobé. O valente Damastor Dagobé, depois de muito ridicularizar Liojorge, é morto por ele. No arraial, todos dão como certa a vingança dos outros Dagobé: Doricão, Dismundo e Derval. A expectativa da revanche cresce quando Liojorge comunica a intenção de participar do enterro de Damastor. Para surpresa de todos, os irmãos não só concordam, como justificam a atitude de Liojorge, dizendo que Damastor teve o fim que mereceu.

VI – A terceira margem do rio. Um homem abandona família e sociedade para viver numa canoa, em meio a um rio. Com o tempo, todos, menos seu filho primogênito, desistem de insistir no seu retorno e se mudam do lugar. O filho, por vínculo amoroso, esforça-se para compreender a decisão do pai e, por ali permanece. Já de cabelos brancos e tomado por intensa culpa, ele decide substituir o pai na canoa e comunica-lhe sua decisão. Quando o pai irá se aproximar, o filho se apavora e foge.

VII – Pirlimpsiquice. Um grupo de colegiais ensaia um drama para apresentá-lo na festa do colégio. No dia da apresentação há um imprevisto, e um dos atores se vê obrigado a faltar. Como não havia mais possibilidade de se adiar a apresentação, os adolescentes improvisam uma nova encenação, que é recebida por uma platéia entusiasmada.

VIII – Nenhum, nenhuma. Uma criança, não sabemos se em sonho ou realidade, passa férias numa fazenda em companhia de um casal de noivos, de um homem triste e de uma velhinha. O casal interrompe o noivado, e o menino, que conhecera o Amor observando-os, volta para a casa paterna. Lá chegando dialoga com os pais de forma tensa, ao constatar que ninguém sabe nada, pois se esquece do muito que aprendeu.

IX – Fatalidade. Zé Centeralfe procura o delegado de uma cidadezinha queixando-se de que Herculinão Socó vivia tentando seduzir sua esposa. A situação torna-se tão insuportável que o casal mudara de arraial. Não adiantou pois Herculinão os seguiu. O delegado, misto de filósofo, justiceiro e poeta, depois de ouvir pacientemente a queixa, procura o conquistador e, sem a mínima hesitação, mata-o, justificando o fato como necessário, em nome da paz e do bem-estar do universo.

X – Seqüência. Uma vaca fugitiva retorna à sua fazenda de origem. Decidido a regatá-la, um vaqueiro a persegue. Ao chegar à fazenda, ele descobre que havia outro motivo para sua determinação: a filha do fazendeiro, com quem o rapaz se casa.

XI –
O Espelho. Um homem, ao se deparar com um conjunto de dois espelhos, se vê. A partir de então ele resolve elaborar uma série de exercícios que visam à desfigura. A progressão desses exercícios lhe permite, daí a algum tempo, começar a entender que não é possível dissociar a identidade da alteridade.

XII – Nada e a nossa condição. O fazendeiro Tio Man´Antônio sente-se solitário com a morte da esposa e o casamento das filhas. A seguir, divide sua fazenda em lotes e os distribui aos empregados, ficando apenas com a casa-grande. Quando morre, os empregados colocam seu corpo na mesa da sala do casarão e a casa incendeia-se. A insólita cerimônia de cremação revela a volta ao pó de onde todo humano se origina.

XIII – O cavalo que bebia cerveja. Giovânio era um velho italiano de hábitos excêntricos: comia caramujo e dava cerveja para cavalo. Isso o tornara alvo da atenção do delegado e de funcionários do Consulado, que convocam o empregado da chácara de “seo Giovânio” para um interrogatório. Notando que o empregado ficava cada vez mais ressabiado e curioso, o italiano resolve então abrir a sua casa para Reivalino e para o delegado: dentro havia um cavalo branco empalhado. Passado um tempo, outra surpresa: Giovânio leva Reivalino até a sala, onde o corpo de seu irmão Josepe, defigurado pela guerra, jazia no chão. Com isso, afeiçoa-se cada vez mais ao patrão, a ponto de ser nomeado seu herdeiro quando o italiano morre.

XIV – Um moço muito branco. Os habitantes de Serro Frio, numa noite de novembro de 1872, têm a impressão de que um disco voador atravessou o espaço, depois de um terremoto. Após esses eventos, aparece na fazenda de Hilário Cordeiro um moço muito branco, portando roupas maltrapilhas. Com seu ar angelical, impõe-se como um ser superior, capaz de prodígios: os negócios do fazendeiro têm uma guinada espantosamente positiva. Depois de fatos igualmente miraculosos, o moço desaparece do mesmo modo que chegara.

XV – Luas-de-mel. Joaquim Norberto e Sa-Maria Andreza recebem em sua fazenda um casal fugitivo, versão sertaneja de Romeu e Julieta. Certos de que os capangas do pai da moça virão resgatá-la, todos se preparam para um enfrentamento: a casa da fazenda transforma-se num castelo fortificado. É nesse clima de tensão que se celebra o casamento dos jovens, a que se segue a lua-de-mel.

XVI – Partida do audaz navegante. Quatro crianças, três irmãs e um primo, brincam dentro de casa, aguardando o término da chuva. A caçula, Brejeirinha, brinca com o que lhe dava mais prazer: as palavras. Inventa uma estória do tipo Simbad, o marujo, que ganha novos elementos quando todos vão brincar no quintal, à beira de um riacho. Liberando sua fantasia, Brejeirinha transforma um excremento de gado no “audaz navegante”, colocando-o para navegar riacho abaixo.

XVII – A benfazeja. Mula-Marmela era mulher de Mumbungo, sujeito perverso que se excitava com o sangue de sua vítimas. Esse “vampiro” tinha um filho, Retrupé, cujo prazer só diferia do pai quanto à faixa etária das vítimas: preferia as mais frescas. Apesar de amar seu homem e ser correspondida, Mula-Marmela não hesitara em matá-lo e depois cegar Retrupé, de quem se torna guia. Passado algum tempo, resolve assassiná-lo, pois percebe que esta seria a única maneira de refrear o instinto maléfico do rapaz.

XVIII – Darandina. Um sujeito bem-vestido rouba uma caneta, é surpreendido e, para escapar dos que o perseguem, escala uma palmeira. Uma multidão acompanha atentamente os esforços das autoridades, que procuram convencer o rapaz a descer. Resistindo, ele diz frases desconexas e tira toda a roupa, revelando notável equilíbrio físico. A sessão de nudismo leva um médico a nova tentativa de diálogo. Ao se aproximar, o médico percebe que o sujeito voltara à normalidade e que, envergonhado, pedia socorro. A multidão, sentindo-se ludibriada, não aceita essa sanidade repentina e se dispõe a linchá-lo. Sentido o risco, o sujeito berra um grito de louvor à liberdade, motivo bastante forte para a multidão carregá-lo nos ombros.

XIX – Substância. O fazendeiro Sionésio apaixona-se por sua empregada Maria Exita, que fora abandonada pela família e criada pela peneireira Nhatiaga. Na fazenda, o ofício de Maria Exita era o de quebrar polvilho, trabalho duro mas que a moça realizava com prazer e competência. Embora preocupado com a ascendência da moça, Sionésio sente que a paixão é maior que o preconceito e pede-a em casamento.

XX – Tarantão, meu patrão. O fazendeiro João-de-Barros-Dinis-Robertes tem uma surpreendente explosão de vitalidade em sua velhice caduca. Como se fora um Quixote, determina-se a matar seu médico: o Magrinho, seu sobrinho-neto. Ao longo da viagem rumo à cidade, recruta um bando de desocupados, ciganos e jagunços, que acatam sua liderança, pelo carisma natural do velho. Chegando a “frente de batalha”, Tarantão percebe que era dia de festa: uma das filhas de Magrinho fazia aniversário. O susto inicial, provocado pela invasão do “exército”, transforma-se em alívio quando o velho discursa, dizendo de seu apreço pela família e pelos novos amigos, colecionados ao longo da última cavalgada.

XXI – Os cimos. O menino da primeira estória revela agora a face do sofrimento, causado pela doença da Mãe, fato que apressa sua viagem de volta à casa paterna. Os últimos dias de férias são de preocupação. O Menino só relaxava quando via, todas as manhãs e sempre à mesma hora, um tucano se aproximar da casa dos rios, onde se hospedava. Num processo de sublimação, desencadeado pela beleza da ave, o Menino ganha energia para resistir e para transferir à Mãe uma carga de fluidos mentais positivos, que lhe permitam superar a doença. Quando o Tio o procura para comunicar a melhora da Mãe, o Menino experimenta momentos de êxtase, pois só ele sabia do motivo da cura.

Referindo-nos à dicotomia /logos/ versus /mythos/, encontramos na obra de Guimarães Rosa a presença de temas diversos ligados ao cotidiano sertanejo, que se encaixam perfeitamente na vida do ser humano, faça ele parte de qualquer ponto territorial ou momento histórico. É o homem com suas crenças, seus trejeitos, maluquices, amores, desafetos ou mesmo alucinações.

Em relação ao foco narrativo rosiano, podemos afirmar que não há distância crítica entre narrador e narrativa. O narrador, seja em terceira, seja em primeira pessoa, encontra-se invariavelmente envolvido no que narra e como tal não nos pode explicar nada com absoluta precisão, embora instaure, por paradoxal ou contraditório que pareça, o conhecimento, a revelação e a descoberta. A descontinuidade narrativa, apoiada na cultura popular, no universo sertanejo e, sobretudo na sabedoria do escritor, propõe um ensaio filosófico através do barroquismo frásico rosiano.

A perspectiva narrativa do seu universo imaginário é sempre, no limite, um monólogo (ficção reflexiva) bem dinâmico, contrariamente à tendência desse recurso para a introspecção; inclui o outro na medida em que figura um ouvinte. O que pode ser lido enquanto diálogo criador/criação (reflexão sobre a construção estética numa construção estética), criador/criador (reflexão também sobre a sua vida) ou todo e qualquer outro seu leitor: em toda a situação em que for revivido por um leitor, espectador ou ator. Esta a marca registrada do seu imaginário lírico-reflexivo: crítico-criador.”
(COVIZZI E NASCIMENTO, 1988, p. 27)

Partindo da premissa de que O Espelho é a obra central de um conjunto de vinte e um contos, sendo o primeiro e o último, reflexos dessa centralidade, encontramos a construção desse conto do ponto de vista gráfico, associada à própria possibilidade de desconstrução, ou desfiguração que o mesmo propõe. Temos, portanto, um universo gráfico desenhado por dez primeiros contos que se refletem nos dez últimos, sendo o reflexo dessa imagem no espelho O Espelho.

Esse processo de construção da imagem entre um antes e um depois, permeados por um “espelho” que é a própria vida, ou melhor, a história do homem, também pode ser verificado em Las Meninas como passado, texto-visual elaborado por Velázquez, e em Las Meninas como presente, texto-visual de Picasso, também entendido como uma imagem espelhada no passado cuja linguagem justifica a genialidade do artista."

---
Fonte:
FABIANA MIANO MORI: "A CONSTRUÇÃO DA IMAGEM EM O ESPELHO IN PRIMEIRAS ESTÓRIAS DE JOÃO GUIMARÃES ROSA E EM LAS MENINAS DE PABLO PICASSO". (Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Campus de Araraquara – SP, para obtenção do Título de Mestre em Letras (Área de Concentração: Estudos Literários – Relações Intersemióticas) Orientadora: Profa. Dra. Maria de Lourdes Ortiz Gandini Baldan). Araraquara, 2007.

Nota
:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Disponível digitalmente no site: Domínio Público

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Excetuando ofensas pessoais ou apologias ao racismo, use esse espaço à vontade. Aqui não há censura!!!