Kafka e a impossibilidade de chegar



Mein Großvater pflegte zu sagen: “Das Leben ist erstaunlich kurz. Jetzt in der Erinnerung drängt es sich mir so zusammen, daß ich zum Beispiel kaum begreife, wie ein junger Mensch sich entschiließen kann ins nächste Dorf zu reiten, ohne zu fürchten, daß – von unglücklichen Zufällen ganz abgesehen – schon die Zeit des gewöhnlichen, glücklich ablaufenden Lebens für einen solchen Ritt bei weitem nicht hinreicht.”

Meu avô costumava dizer: “A vida é espantosamente curta. Para mim ela agora se contrai tanto na lembrança que eu por exemplo quase não compreendo como um jovem pode resolver ir a cavalo à próxima aldeia sem temer que totalmente descontados os incidentes desditosos – até o tempo de uma vida comum que transcorre feliz não seja nem de longe suficiente para uma cavalgada com essa”.

No âmbito da reflexão sobre o tempo na obra de Kafka e das peculiaridades da pertinência histórica da sua exposição literária, a narrativa A próxima Aldeia é capaz de fornecer reflexões relevantes.

O título da narrativa (Das nächste Dorf/ A próxima aldeia) aponta para uma perspectiva espacial. Nele o leitor percebe que, tendo como referência um determinado lugar, se falará sobre um outro. Cada uma das frases da narrativa acrescenta outros motivos temporais e espaciais.

A primeira frase (Meu avô costumava dizer) demarca vários pontos temporais. Trata-se da memória de um narrador sobre o que lhe dizia o avô; portanto, temos a experiência de uma terceira pessoa que foi transmitida ao narrador em um outro tempo que não o presente. A frase conserva em si o tempo do narrador, o tempo do que lhe foi transmitido e o tempo da sua lembrança. Segue-se a determinação do avô A vida é espantosamente curta que, de antemão, determina uma condição da vida de modo objetivo. Há um ponto final que efetua uma quebra com essa forma objetiva de exposição. Só então o avô junta o pronome pessoal (mir) à frase seguinte, de modo a expor sua experiência subjetiva. Tal frase inicia-se com uma outra demarcação temporal (jetzt/ agora) e junta o verbo contrair (zusammendrängen) como a ação de passagem da vida à lembrança (Erinnerung).

Essas condições temporais apresentadas de modo extremamente concentrado irão determinar o entendimento do avô sobre as condições espaciais (que eu por exemplo quase não compreendo). Mas antes, Kafka ainda demarca mais um contraste temporal, uma vez que o avô (um velho, portanto) se refere a um jovem (ein junger Mensch). O que o avô não compreende é a decisão de tal jovem de ir para a próxima aldeia, tendo em vista que uma vida comum não bastaria para tanto. Ainda há a ênfase entre travessões: totalmente descontados os incidentes desditosos.

Essa narrativa que, à primeira vista dá a sensação de que parâmetros básicos de coerência do entendimento humano foram quebrados, está, por outro lado, atrelada à perspectiva da memória. Nesse sentido, embora ela opere uma desconstrução de uma decisão simples de ir à próxima aldeia, ao fazê-lo, ela também informa sobre categorias como o tempo e a experiência, colocando em questão a arbitrariedade do entendimento que geralmente tem-se delas.

Procuro pensar como o questionamento efetuado pela literatura kafkiana de dados supostamente objetivos como o tempo e o espaço é passível de ser lido não em referência ao absurdo da existência humana, nem à ausência total de sentido e lógica, mas em conformidade com uma perspectiva na qual estão imbricados, de maneira inexorável e ambígua – portanto, tensa – o mundo objetivo e o mundo subjetivo.

Para pensar esses argumentos, aponto, embora sucintamente, para o fato de que a concepção de tempo tal como estamos habituados não é um dado natural nem transcendental. Norbert Elias, em seu ensaio Sobre o Tempo, esforça-se por reconstruir a noção de tempo através do processo civilizador. Nesse esforço, Elias demonstra que as concepções de tempo como dado objetivo, como o queria Newton ou como estrutura a priori do espírito, conforme afirmava Kant, devem ser repensadas. Embora o tempo tenha se tornado gradativamente uma “segunda natureza”, ele é um símbolo social, que só foi sintetizado sob a sua forma contemporânea de compreensão através de um processo extremamente longo. É, portanto, necessário entendê-lo em suas determinações histórico-sociais.

O argumento que proponho é de que o próprio reconhecimento do tempo e do espaço como dados imiscuídos no subjetivo e no objetivo é devido ao enraizamento histórico da literatura kafkiana. A própria forma de exposição, aparentemente fora do tempo, da literatura de Kafka é um dado histórico desse enraizamento.

Conforme Allemann, haveria a recusa do poder da memória por parte da obra de Kafka. No entanto, penso que é justamente a memória o traço que separa as concepções de tempo e espaço peculiares do narrador kafkiano das concepções que, apenas a título de diferenciação, chamamos objetivas. A memória implica uma visada subjetiva; mas, por outro lado, ela repousa em impressões que só podem ter sido filtradas do exterior. O material (e aqui o termo é usado em seu duplo sentido de dado concreto e meio) da memória é sempre em última instância a realidade palpável.

a discussão entre Benjamin e Brecht sobre o pequeno texto de Kafka. Podemos reconhecer possibilidades de interpretação da narrativa nas interpretações dos dois teórico: de um lado, a leitura brechtiana, efetuada pelo viés do conteúdo, ressalta o paradoxo da narrativa e, de outro, a perspectiva da memória presente na leitura benjaminiana. Tal discussão ocorreu no fim de junho de 1934 e foi registrada por Benjamin em suas notas sobre Kafka.

Na perspectiva de Brecht, tal como Benjamin a registrou, A Próxima Aldeia tem relações com o paradoxo de Zenão, que consiste na medição do movimento em termos de espaço, ou seja, uma flecha, não poderia chegar ao seu objetivo, porque antes ela teria que passar por infinitos pontos intermediários nos quais ela estaria parada. Além disso, a narrativa denotaria um tom de absurdo:

[...] ela é um equivalente à história de Aquiles e a tartaruga. Ninguém jamais chega à próxima aldeia, se compor a cavalgada a partir de suas menores partes – sem contar os incidentes. Pois a vida é curta demais para essa cavalgada. Contudo, aqui o erro está no "ninguém". Pois o cavaleiro é decomposto tal como a cavalgada. E assim como a unidade da vida se perde, também a sua brevidade. Seja ela tão breve quanto for. Isso não importa, pois alguém outro, que não o cavaleiro, chega à aldeia.

Conforme nota Mosès, a leitura de Brecht não trata da “forma linguística da narrativa de Kafka, isto é, do modo de sua enunciação, mas do enunciado em si, isto é, do paradoxo que diz respeito à extrema brevidade da vida”. Brecht estaria preocupado em “reduzir o texto à sua estrutura lógica”. Dessa forma, Das Nächste Dorf como expressão de uma contradição lógica. Na sua leitura, Benjamin, por sua vez, reafirma a memória como “a verdadeira medida da vida”:

De minha parte, dou a seguinte interpetação: a medida verdadeira da vida é a memória. Ela percorre a vida como um raio, olhando para trás. Como se folheasse rapidamente para trás as páginas de um livro, ela chega à próxima aldeia no momento em que o cavaleiro decidiu pela partida. Para quem a vida se transformou em escrita, como ocorre com os antigos, essa escrita pode ser lida de trás para diante. Somente assim eles encontram a si mesmos e somente assim - fugindo do presente - eles podem compreender a vida.

Embora não seja o objetivo enveredar por essa discussão de maneira extensa, ela permite recolocar a questão relacionada ao modo de exposição literária de Kafka. Assim, a leitura de Benjamin aponta para uma forma literária peculiar de expor a vida, portanto, intrinsecamente, a realidade; em vez de ressaltar uma suposta desarticulação total dos pressupostos verossímeis, como é o caso da leitura de Brecht. Tal forma de exposição pauta-se, na presente narrativa, na dimensão da memória e baseia-se na contingência.

Conforme afirmam alguns intérpretes de Benjamin, o que caracterizaria nesse autor a literatura moderna “é a consciência aguda do tempo, ou melhor, da temporalidade e da morte”. Também o capítulo final de Mimesis lança alguma luz sobre o tema que procuro tratar. Quando Auerbach trata de escritores como Virginia Woolf e Marcel Proust, salienta a diferença no tratamento do tempo por parte deles. Para esse intérprete, tais diferenças no tratamento do tempo estão ligadas a processos históricos e sociais, notadamente àqueles relacionados com os decênios ao redor da Primeira Guerra Mundial, que, no entanto, devem ser detectadas sempre na confrontação com o texto. Algumas das marcas dessas diferenciações podem ser notadas a partir da tomada de posição do narrador, do mergulho nas consciências dos personagens (“representação da consciência pluripessoal”), entre outros motivos.

Com isso em mente, é possível apontar para algumas peculiaridades de Kafka no seu tratamento do tempo, sem que seja necessário classifica-lo de a-histórico ou intemporal e, por outro lado, sem estabelecer vínculos históricos externos determinantes. Em relação aos autores que trata, e especificamente em relação a Thomas Mann, Auerbach afirma que se trata de autores que “[...] procuraram chegar, cada um à sua maneira, através da desintegração e da dissolução da realidade exterior, a uma interpretação mais rica e essencial da mesma”.

Mas Kafka possuí singularidades marcantes, embora participe também desse movimento (característico dos escritores modernos) de exposição peculiar do tempo. Em suas análises de Woolf, Proust e Mann feitas no capítulo final de Mímesis, Auerbach destaca, sobretudo, a exposição de dados subjetivos, através do mergulho na consciência dos personagens (monologue intérieur). Kafka, por sua vez, esquiva-se da utilização desse recurso. No seu caso, além da limitação da consciência do narrador, também a consciência dos personagens é, em grande medida, minimizada. Assim, não existem longas exposições de realidades subjetivas. No entanto, existe um desentendimento amplo até mesmo da dimensão social do tempo, que, simultaneamente, extrapola o nível individual do personagem e se reflete nele. Assim, referenciais básicos da dimensão temporal linear são suspensos. Mas trata-se de um processo mediado por outras dimensões, que persistem relacionadas ao cotidiano. Esse tempo da realidade exterior desintegrada e dissolvida permanece como o único referencial dos personagens.

É desse modo, por exemplo, que o inquérito de Joseph K. em O Processo é marcado para um domingo (“para não perturbar K. na sua atividade profissional.”!). Outro exemplo que permite verificar essa relação complexa das temporalidades – que não destrói simplesmente o tempo, como pretendem alguns intérpretes, mas aponta para a arbitrariedade da forma como ele se constitui socialmente – está na passagem em que K., em O Castelo, lembra-se da sua infância na terra natal, durante a caminhada com Barnabás. Contrariamente à perspectiva de Alleman de que não haveria memória em Kafka, Sebald mostra como, nesse caso, a figura da terra natal aparece diante de K. como mémoire involontaire. E, se seguirmos aqui a pista de Walter Benjamin na análise que faz da presença da mémoire involontaire em Marcel Proust, temos que essa forma de lembrar está “mais próxima do esquecimento que daquilo que em geral chamamos de reminiscência”.

Embora não possamos explicar de que maneira o processo de exposição do tempo se configura em Kafka, sem prejuízo de outras dimensões, é possível apontar para o fato de que nessa exposição uma crítica da impossibilidade da experiência comunitária plena, que se configura como questionamento do sentido.

Voltando à narrativa, percebemos que, em Das nächste Dorf, o tratamento que o narrador-avô dá para a vida contraída na lembrança do personagem remete a um distanciamento da experiência vivida que conduz à impossibilidade de se chegar a um ponto espacial contíguo. Não se trata apenas de um tempo continuamente parado entre o fim e o começo, como o afirma Allemann; mas de um tempo narrativo que se abandona “ao acaso da contingência do real”. Essa incerteza ou eventualidade é a fonte de Kafka para a sua produção literária. E a “contingência do real”, nesse caso, trava o próprio desenvolvimento das realidades subjetivas.

O esquecimento, nesse entrelaçamento peculiar com a memória involuntária, ou com dimensões corporais que trazem à tona leis elementares da vida, aparece não de forma direta, mas sobretudo na disparidade entre o “tempo interno” e o “tempo externo” . Mas trata-se de uma disparidade complexa, que não permite a formulação alternativa de um ou outro aspecto, mas que se instala como a única forma possível de se experimentar o tempo. Ou seja, o “tempo interno” não se sobressaí em relação ao “externo”, nem o contrário; prevalece a disparidade e a contingência, que é tanto social, como subjetiva.

As narrativas do escritor são capazes de revolver períodos seculares, mas elas não são capazes de articular de forma precisa o tempo da ação. Desse movimento surge a consciência da temporalidade propriamente histórica. O olhar de Kafka alcança a grandiosidade do passado (nesse sentido estão as referências a culturas grandiosas como a grega e a chinesa), mas detém-se no presente sob a forma de uma aporia que reconhece e acolhe as limitações individuais. Por isso, o esquecimento ao qual me refiro é também um esquecimento que trava o tempo do presente, um esquecimento que impõe obstáculos ao tempo da ação. Nesse sentido, o perspectivismo decorrente das temporalidades envolvidas nas narrativas de Kafka conduz a uma falta de harmonia necessária à formação do tempo objetivo (social). Em consequência, é sob a forma de fragmentos e paradoxos que o processo narrativo deve se dar.

O narrador kafkiano é pleno de consciência histórica, não no sentido de que retrata uma determinada realidade discernível cronologicamente, mas no sentido de que sua forma de narrar informa sobre a condição da literatura em seu período histórico. É assim que, em Kafka, embora o ponto de partida geralmente não seja verossímil, o desenvolvimento se articula pautado na verossimilhança. Trata-se de um imbricamento singular que procura assimilar ao cotidiano dimensões veladas. Assim, o processo narrativo não se configura como uma “construção” pronta, ele sempre encontra a mediação na sua impossibilidade de expressão plena. Nas palavras de Antonio Cândido, em sua análise de “Durante a construção da muralha da China”, temos:

Indo mais longe do que a meditação desencantada dos românticos, ele [Kafka] não se limitou a opor os ritmos contraditórios da edificação e da ruína, ao longo das idades históricas. Descreveu um processo no qual a construção se faz como ruína virtual, pois cada segmento da muralha, isolado dos outros e vulnerável à demolição dos nômades, é um candidato à destruição imediata.

A citação vale para a própria construção narrativa de Kafka: não é apenas o fato de reconhecer que o tempo transforma os fatos em ruínas; mas os fatos – os conteúdos narrativos e suas formas – já nascem enquanto ruínas, daí a forma do fragmento, a falta de fundamento e explicações lógico-convencionais. Dito de outro modo: a possibilidade de visitar a próxima aldeia já se configura como impossibilidade.

Nesse sentido, as quebras nos processos narrativos – que, em Kafka, se dão de variadas formas informam sobre maneiras variadas e contingentes de tratar a temporalidade. Às vezes, o recurso empregado é a utilização de conjunções adversativas, que não permitem uma leitura linear; por vezes, é o próprio conteúdo que se contrapõe sucessivamente através de frases que negam o que foi afirmado anteriormente (como ocorre, de certa forma, em Das nächste Dorf) e, por outras, é formulado a partir da compreensão contingente do mundo por personagens individuais.

Se o tempo e a história aparecem parcialmente suprimidos, é porque esse destaque negativo contém muito da consciência histórica da sua época. Essa consciência é marcada pela contingência do real e expõe uma ambiguidade fundamental: o passado não é retratado enquanto história, no sentido cronológico; e o presente não permite a ação.

O que procuro ressaltar é que, mesmo nessa realidade aparentemente transfigurada da literatura de Kafka, que em grande medida subverte a relação do leitor com o texto, os dados históricos não devem ser absolutamente recusados. Diante da não-assimilação da experiência pela memória, a cena cotidiana de visitar a próxima aldeia é negada; por outro lado, é justamente essa cesura entre experiência e gerações que a literatura pretende figurar aqui. Cesura essa que se estende a ponto de não encontrar na história o apoio que permita a formulação da ação no presente.

Trata-se de uma literatura que está em tensão com a época na qual é escrita, o que não permite pensar em uma condição atemporal ou a-histórica. Essa relação histórica vai além dos conteúdos verossímeis para alcançar dimensões novas, que passam pela consciência aguda do tempo, não apenas como instância cronologicamente homogênea, porém a partir de uma espécie peculiar de consciência que salta os séculos para retratar todo um universo de esquecimento que ainda atua secretamente nas realidades atuais."

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Fonte:
PATRÍCIA DA SILVA SANTOS “(Im)possibilidades na Literatura de Franz Kafka”. (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Sociologia do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo - USP, para a obtenção do título de Mestre em Sociologia Orientador: Prof. Dr. Leopoldo Waizbort). São Paulo/2009.

Nota:
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Disponível digitalmente no site: Domínio Público

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