Lima Barreto: Um estranho no Brasil da Belle Epoque

“O período do final do século XIX e início do século XX foi chamado de Bel e Époque. Essa denominação francesa atende a um interesse eurocêntrico e elitista de se configurar um período de auge das belas letras e expansão da arte como um todo, arte produzida por e voltada para uma burguesia ascendente. No Brasil, esse período é marcado por significativas mudanças em vários campos. O pensamento brasileiro da época, ancorado nos princípios do cientificismo e do liberalismo, era no sentido de “construir a nação e remodelar o estado” (SEVCENKO, 2003, p. 103).

Com o estado brasileiro enfraquecido e com uma consciência de nação ainda em formação, nossos intelectuais se dedicam a construir um ideário da nação brasileira. É comum o debate sobre a identidade e a cultura nacionais, já discutido aqui. A literatura da época vai se voltar para pintar uma imagem do brasileiro e principalmente tentar vender essa imagem para o resto do mundo, especialmente para a Europa. Ainda que se quisesse romper de vez com os modelos europeus, continuávamos com uma mentalidade europeizada.

No entanto, a Bel e Époque caracteriza-se muito mais como um estilo de vida, principalmente de uma burguesia ascendente, ainda que se registre nesse período o crescimento do proletariado, do que como um movimento artístico cultural ou, em termos literários, como uma escola literária, ou estilo de época.

Na historiografia da literatura brasileira, este período de aproximadamente 30 anos é chamado de pré-modernismo. Na Visão de Flávio Kothe (2004), não deveria existir essa nomenclatura, pois não houve um movimento pré-moderno, uma vez que não é possível identificar uma ruptura, um momento de passagem para o Moderno. Na visão desse autor, a produção literária do período denominado pré-modernismo é, em qualidade, melhor ou igual a do modernismo.

Como pode ser “pré” uma literatura que foi tão “avançada” quanto aquela que a sucedeu? O pressuposto do pré é o que vem depois dele. Então ele é posterior ao posterior, e não anterior a ele: é um antes que vem depois. Ele serve para fazer de conta que o que vem depois é superior, mais evoluído, e para fazer de conta que o anterior só tem validade em função do que lhe é posterior (2004, p. 110).

O que leva esse autor a tomar tal posição é que na concepção dele não houve um modernismo, não se pode falar de pós-modernidade se não houve a modernidade, como também, não se pode falar em pré-modernidade. Para ele, a Semana de arte moderna, marco simbólico do início do Modernismo foi um “golpe de estado” para os paulistas dominarem o cenário literário do Brasil.

Comungamos com a idéia de que o pré-modernismo é um período de excelente produção literária e que não deveria ser considerado apenas como um momento de transição para o Modernismo, como se neste último estivessem toda a expectativa e qualidade literárias e aquele fosse apenas a preparação do terreno para ele. O pré-modernismo, porém, tem escritores de uma fina qualidade literária. Embora tecendo duras críticas a Lima Barreto, o crítico Flávio Kothe chega a classificá-lo como um escritor melhor do que Mário de Andrade, uma das maiores figuras do Modernismo.

Intelectuais desse período se preocupam excessivamente em construir uma imagem do brasileiro, a partir de um tipo étnico desejado. “Nesse contexto é que se inserem os esforços renitentes despendidos na tentativa de determinar um tipo étnico específico representativo da nacionalidade ou pelo menos simbólico dela, que se prestasse a operar como um eixo sólido que centrasse, dirigisse e organizasse as reflexões desnorteadas sobre a realidade nacional.” (SEVCENKO, 2003, p. 106).

Alguns autores, no entanto, vão se insurgir contra os discursos cristalizados que predominaram na última década do século XIX e início do século XX. Tais discursos tinham a pretensão de unificar o pensamento coletivo em torno do ser nacional.


é preciso lembrar que estes períodos não foram estanques, isto é, ao mesmo tempo em que atuavam predominantemente as forças sacralizantes, autores como Lima Barreto, Manoel Bonfim e Araripe Júnior, por exemplo, tentaram, cada qual à sua maneira, criar zonas de tensão, distanciando-se e fragmentando os rituais discursivos dominantes da época. (BERND, 2003, p.127).

Lima Barreto se apresenta como um crítico contundente à cultura e ao cientificismo dessa época que procurava legitimar as desigualdades no Brasil através da ciência. Produzindo uma literatura socialmente engajada, o autor de O Triste Fim de Policarpo Quaresma mergulha profundamente na realidade do país com o fim de conhecer as causas profundas dos males brasileiros, a fim de encontrar um veredicto seguro capaz de apontar para uma mudança de perspectivas em meio ao caos e à desordem.

Por ter uma visão crítica da realidade do Brasil da Bel e Époque e não aceitar os padrões sociais do seu tempo, é que preferimos denominar Lima Barreto de estranho, uma figura que não se adequava às estruturas moralizantes de seu tempo. Se posicionando contra o modelo europeu como padrão absoluto, Lima Barreto faz da sua literatura um instrumento de denúncia dos desajustes sociais e sabia que isto poderia custar caro para ele. “Ah! A Literatura ou me mata ou me o que eu peço dela.” (Cemitério dos Vivos, 2004, p. 08)

O fato de a elite pós-colonialista adotar o estilo de vida europeu implicava aceitar o pensamento cientificista sobre as raças, que ganhava tanta ênfase por parte dos intelectuais, ao que Lima Barreto reagirá sempre com veemência. Segundo a observação de Sevcenko (2003, p. 147), “esse era um dado que Lima Barreto, mulato, vivendo em um meio de mulatos e negros e identificando com esse lado da herança, não poderia admitir”.

Enquanto a Bel e Époque, como uma invenção da burguesia, se voltava para a elite, para a cultura européia com uma tendência a cristalizar os costumes e o estilo de vida desta elite, Lima Barreto prioriza os menos favorecidos. “eu tenho muita simpatia pela gente pobre do Brasil, especialmente pelos de cor” (Diário Intimo, 1956, p. 76) Assim, Lima Barreto vai ser sempre um estranho no seu tempo, um visionário.

Lima Barreto utilizou uma linguagem simples, a que muitos chamaram de “desleixada”, o autor de Cemitério dos Vivos, procura aproximar a linguagem literária à do cotidiano, uma atitude não convencional para os projetos de construção literária numa época em que os escritores, salvos alguns, não se preocupavam em questionar a realidade social. O pré-modernismo sofre também desse problema de linguagem, certo distanciamento entre a linguagem literária e a linguagem do povo. Em um estudo intitulado “Linguagem e Realidade do Modernismo de 22”, João Alexandre Barbosa mostra essa hifenização entre a linguagem e a realidade social.

O momento cultural anterior ao Modernismo de 22 foi caracterizado, em grande parte, pela impossibilidade de contar com uma linguagem adequada para a objetivação das experiências e que não apenas servisse aos desígnios de uma “permanência” com relação ao conjunto da sociedade, como viesse a problematizar a própria estrutura dentro da qual existia. (BARBOSA, 1974, p. 82).

Na visão de Candido (2008), o período de 1880 a 1922 pode ser chamado de “pós-romântico.” Isto se deve ao fato de o Modernismo trazer muitas características do Romantismo, como mostramos aqui. Uma característica marcante nos dois períodos é que ambos são movimentos de ruptura. “Outro traço, que reforça a semelhança geral do Romantismo com o Modernismo, é a atitude de negação, que lá foi satanismo e aqui troça, piada”. (p.172)

O Modernismo brasileiro, embora inspirado nos movimentos de vanguardas européias, como por exemplo, o cubismo e o futurismo, o que lhe confere o status de movimento renovador e autônomo é o fato de ele refletir sobre a realidade “tropical”, imprimindo as cores locais, dando atenção às singularidades da cultura brasileira. As características mais marcantes do Modernismo são: a liberdade de estilo e a fluidez ou flexibilidade na linguagem, aproximando a língua escrita, a linguagem literária, da língua falada. Nesse período, os intelectuais passam a defender uma cultura genuinamente brasileira.

José Aderaldo Castelo (2004) mostra que o Modernismo, embora se caracterizando como um movimento de rupturas, guarda resquícios dos estilos de épocas anteriores, principalmente do Romantismo. Esse autor destaca que o Modernismo se assemelha ao Romantismo porque, além da temática da identidade nacional, os dois estilos são marcados por mudanças políticas importantes para a nação, bem como por um período anterior de interregnos. O período de interregno anterior ao Romantismo inicia em 1808, com a chegada da família real ao Brasil, até 1822, ano da Independência e um segundo momento de 1822 a 1836, quando se atribui o início do Romantismo. O período de interregno anterior ao Modernismo tem início em 1889, com a Proclamação da República, até 1902, e deste a 1922, Semana de Arte Moderna, marco simbólico de início do Modernismo. Nesta perspectiva, o Modernismo “constitui um movimento de revisão e renovação que responde, sobretudo, às solicitações internas sob perspectiva histórica. Período amplo e complexo, assemelha-se com o nosso Romantismo” (CASTELLO, 2004, p. 16)

Vistos os contrapontos e as contradições em torno do que se tem chamado pré-modernismo, como também ao modernismo, cabe observar que a crítica literária e o cânone têm suas razoes para estabelecer tais momentos e dar a eles essa nomenclatura. Um dos motivos de fixação e valorização do modernismo é o fato de ele ter eclodido principalmente em São Paulo, fortalecendo a política do café com leite e consolidando a produção literária no eixo Rio - São Paulo, ainda que num momento inicial tenha havido uma ruptura com o Rio de Janeiro, mas depois se consolidando a aliança e se ramificando para outras regiões do país. De acordo com Candido e Castel o (2005), o Modernismo pode ser entendido como um movimento, como uma renovação estética ou como período (1922 a 1945).

Como movimento, provocou uma revolução no campo das artes e da literatura, que se vincula a determinadas transformações da sociedade, como o crescimento da população urbana, a passagem de um país agrário para a industrialização, possibilitando novas formas de vida e do fazer literário ampliando principalmente o mercado editorial. Como renovação estética, o princípio básico do Modernismo era romper com as velhas estruturas. Essa teoria estética nem sempre se apresentou como bem delineada, os modernistas não sabiam ao certo o que queriam, mas sabiam nitidamente o que não queriam. Essa renovação estética vai provocar também uma subversão nos gêneros literários.

O Modernismo levou muito mais longe do que o Romantismo a subversão dos gêneros literários. Antes de mais nada, houve uma espécie de permuta: a poesia aproximou-se do ritmo, do vocabulário, dos temas da prosa; a prosa de ficção adotou resolutamente processos de elaboração da poesia, como é notório na fase dinâmica de 1922-1930. (CANDIDO E CASTELLO, 2005, p. 21).

À ruptura estética não correspondia, porém, abandono de tudo que era antigo, as temáticas já plasmadas em outros estilos de época voltavam à tona. Como observa Kothe (2004, p. 123) “O Modernismo foi uma renovação na forma para manter os conteúdos antigos. Deu novas fachadas às mais tradicionais posições.” Ainda que os temas sejam antigos, algo de novo neles: o exacerbado interesse pela realidade local.

O Modernismo revela, no seu ritmo histórico, uma adesão profunda aos problema da nossa terra e da nossa história contemporânea. De fato, nenhum outro momento da literatura brasileira é tão vivo sob este aspecto; nenhum outro reflete com tamanha fidelidade, e ao mesmo tempo com tanta liberdade criadora, os movimentos da alma nacional (2004, p.11).

Assim como o Romantismo tem um momento inicial de transição, o Modernismo também o tem, sendo que este ficou conhecido como pré-modernismo ou Bel e Époque. No entanto, preferimos chamar de modernos aos escritores, cronologicamente situados nesse período, por entender que eles, e principalmente Lima Barreto, apresentam características que os identificam como tais.

Em literatura brasileira, os nomes mais citados deste período são os de Monteiro Lobato, Graça Aranha, Augusto dos anjos, Euclides da Cunha e Lima Barreto. Não é possível se estabelecer, nesse espaço de tempo, características comuns aos autores, sendo, em termos estilísticos, a singularidade e a ambivalência os pilares da época, uma vez que os autores transitam entre um estilo parnasiano mais formal e um estilo modernista, pregando a quebra com os aspectos formais anteriores. Em termos de linguagem, alguns autores, principalmente Lima Barreto, sinalizam para uma ruptura com a linguagem formal, imprimindo uma flexibilidade, procurando aproximar os seus escritos da linguagem cotidiana, a linguagem simples do povo brasileiro, marca que será preponderante na produção modernista.

Do ponto de vista dos conteúdos, o que marcará a época é a preocupação com uma identidade nacional, procurando pensar o Brasil do ponto de vista da cultura brasileira, como foi assinalado. aqui uma retomada do Romantismo, uma vez que muitos autores se preocupam em criar uma marca identitária para o brasileiro, ressignificando, porém aquele Movimento.

Esta atitude no fundo é um desejo de retificação, de desmascaramento e de pesquisa do essencial; a ela se prende o nacionalismo pitorersco, que os modernistas alimentam de etnografia e folclore, rompendo o nacionalismo enfeitado dos predecessores. No índio, no mestiço, viram a força criadora do primitivo; no primitivo, a capacidade de inspirar a transformação da nossa sensibilidade, desvirtuada em, literatura pela obsessão da moda européia. (CANDIDO E CASTELLO, 2005, 13)

O primitivismo, que ocupou tantas páginas na poesia e prosa românticas, é retomado agora no caboclismo.

O indianismo está de novo a deitar copa, de nome mudado. Crismou-se de “caboclismo”. O cocar de penas de arara passou a chapéu de palha rebatido à testa; o ocara virou rancho de sapé: o tacape afiliou, criou gatilho, deitou ouvido e é hoje espingarda troxada; o boré descaiu lamentavelmente para pio de inambu; a tanga ascendeu a camisa aberta ao peito. (LOBATO, 2004, p. 166)

Uma das obras centrais desta época e que vai refletir o pensamento vigente no momento é Os Sertões de Euclides da Cunha, lançado em 1902, dedica-se a fazer uma análise exaustiva do meio, das condições de vida do homem sertanejo, apontando o sertão como um ambiente hostil e inóspito, um lócus apropriado para a formação do homem forte, rústico e não contaminado pelas influências do estrangeiro. Neste sentido, Euclides da Cunha levanta o debate da ideologia racial tão em voga na época, evocando a imagem do sertanejo, que, por outros vieses, já tinha sido posta no Romantismo.

A publicação de Os Sertões, de Euclides da Cunha, em 1902, assim como a divulgação dos estudos de etnografia e folclore, contribuiu certamente para esse movimento. Ele falhou na medida em que não soube corresponder ao interesse então multiplicado pelas coisas e os homens do interior do Brasil, que se isolavam no retardamento das culturas rústicas. Caberia ao modernismo orientá-lo no rumo certo, ao redescobrir a visão de Euclides, que não comporta o pitoresco exótico da literatura sertaneja. (CANDIDO, 2008, p. 121).

A grande diferença entre o Sertanejo de Euclides e o primitivo mostrado no Romantismo é que este é visto de um ponto de vista naturista, a visão do “bom selvagem”(ROUSSEAU, 1989), segundo a qual o homem convive em harmonia com a natureza, sendo corrompido pelo contato com a civilização. Nesta perspectiva, entre nós, o primitivo é visto apenas como um elemento da natureza brasileira. Havia uma preocupação em se mostrar e valorizar o índio, mas desvinculado da sua realidade social. Enquanto Euclides da Cunha escolhe o ângulo sociológico para sua análise, embora seu discurso seja fortemente influenciado pelas ideologias racistas do final do século, em sua obra enfatiza os contrastes regionais.

Livro posto entre a literatura e a sociologia naturalista, Os Sertões assinalam um fim e um começo: o fim do imperialismo literário, o começo da análise científica aplicada aos aspectos mais importantes da sociedade brasileira (no caso, as contradições contidas na diferença de cultura entre as regiões litorâneas e o interior). (CANDIDO, 2008, p.140-141).

Assim, Euclides da Cunha constrói o arquétipo do sertanejo como um homem forte, guerreiro, lutador, que é transformado pela natureza inóspita dos sertões nordestinos. A aridez da terra é a aridez da alma do sertanejo, que ainda não havia sido influenciado, “contaminado” pelo “raquitismo neurastênico” de outros povos. Embora se queira valorizar a imagem do sertanejo, ele é um ser em desarmonia com o mundo moderno que vive profundas transformações culturais, tecnológicas e sociais. Visto por outro prisma, isto é uma outra forma de dizer que o sertanejo não está preparado para ser inserido no Brasil moderno, como era o do Centro Sul, a Canaã brasileira, a terra que mana leite e café.

O caboclo apresentado por Monteiro Lobato através do personagem Jeca Tatu, lançado ao público em 1914, em artigo intitulado “Velha praga”, publicado no jornal O Estado de São Paulo, é uma figura caricatural do homem rural brasileiro. Vivendo no vale do Paraíba, o ser apresentado por Lobato mantém uma relação de simbiose com a natureza, retomando a idéia do bom selvagem, é ingênuo, frágil, não habituado aos costumes da vida urbana, místico por natureza e quase desprovido de consciência crítica frente à realidade do mundo moderno que o cerca.

O Jeca é um tipo acomodado, aceitando as condições precárias de sobrevivência às quais era submetido; não tem forças para lutar contra um sistema de forças que o mantém aprisionado. Sabe que sua casa pode não durar muito tempo, porém, tem consciência de que a terra não lhe pertence por direito, motivo pelo qual não se preocupa em cuidar de sua habitação. Assim, essa figura é vista sempre como um ser preguiçoso, inapto para viver num mundo que exige atitudes. Jeca é um ser passivo diante do mundo.

A configuração do personagem mostra como o escritor vê o trabalhador rural brasileiro, como símbolo do arcaísmo. Enquanto as fazendas de café de outras partes de São Paulo se abriam para a modernização, incorporando mão-de-obra estrangeira qualificada, utilizando tecnologias agrícolas para ampliar a produção especificamente para a exportação, o Jeca vive num ambiente quase pré-histórico, em condições primárias de existência.

As lentes do então fazendeiro do interior paulista identificavam em Jeca Tatu uma síntese das mazelas nacionais. Ademais, o arquétipo do personagem esclarece em boa medida as razões da triunfal recepção de Monteiro Lobato pelos círculos intelectuais, conquistada com o artigo a que fizemos referência. Mobilizando os cânones científicos prevalecentes, a teoria da desigualdade inata das raças, e o seu corolário da degeneração racial promovida pela miscigenação, o personagem lobatiano – um caboclo, mestiço, de barba rala – caía nas graças do público letrado precisamente por proporcionar a identificação da maioria que compunha a população brasileira, integrada por trabalhadores rurais, com o atraso e a inferioridade do país em relação às nações hegemônicas, “civilizadas”. Com efeito, a versão originária do Jeca traduzia, significativamente, a percepção das elites sobre o povo brasileiro.

Outra figura emblemática desse período é o Major Quaresma, personagem principal do romance O Triste fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto, publicado em livro pela primeira vez em 1915. Policarpo Quaresma, funcionário da secretaria de Guerra, visionário, idealista, revolucionário no plano das ideias, profundo conhecedor da realidade brasileira, é uma tentativa de construção da identidade nacional, se apresentando como um nacionalista que conhece e ama a sua pátria. Sobre tudo o que é brasileiro, o major Quaresma conhece: todos os rios, todas as espécies de plantas, os tipos de solo, a música, o folclore, enfim, tudo o que é brasileiro é pintado com cores vivas.

Policarpo Quaresma era um idealista utópico, acreditava na possibilidade de construir uma pátria mais justa, onde todos pudessem ter acesso aos bens, pensava ser possível promover uma verdadeira revolução social, elevando o Brasil a status de nação próspera e desenvolvida. Neste aspecto, o personagem ganha um caráter quixotesco. Comentando sobre a aceitação deste livro, Moisés (2004) afirma: “um Dom Quixote nacional’, adianta um dos primeiros comentadores do romance, dando uma síntese do Policarpo Quaresma como herói e da narrativa como espelho dum estado de coisas em mudança.” ( p. 401)

Com todo seu afã ideológico e revolucionário, Quaresma não consegue ser compreendido pelos seus contemporâneos, principalmente por aqueles que estavam no poder. Na ótica destes, Quaresma era um louco por defender tais ideias. A crítica literária sempre vinculou a imagem de Lima Barreto à do Major Quaresma, corroborando o caráter de estranheza entre o escritor carioca e sua época. O pensamento limeriano não se adéqua às concepções elitistas da Bel e Époque.

O percurso do personagem é interessante para percebermos as mudanças ocorridas na vida deste revolucionário. Quaresma faz uma espécie de migração às avessas. O lócus inicial ocupado por ele é o espaço suburbano, depois de decepcionado com as relações que trava no ambiente de trabalho e principalmente pela não aceitação de suas ideias, sendo considerado louco e recolhido ao hospício, quando sai de lá, tem a utopia de promover a reforma agrária, indo se recolher ao sitio Sossego, para aí estudar melhor os aspectos da vida agrária e comprovar a sua tese de nessa terra “em se plantando, tudo dar”. Após o fracasso com o empreendimento agrário, provocado pelas saúvas, o nosso herói com um gesto guerreiro vai defender as tropas de Floriano contra os rebeldes amotinados na baía de Guanabara, defendendo assim a ordem republicana. Fracassa mais uma vez no seu propósito, depois é isolado na ilha das cobras e fuzilado injustamente.

Lima Barreto faz com Policarpo Quaresma o percurso inverso ao de Isaías Caminha, personagem principal do romance Recordações do Escrivão Isaías Caminha, uma vez que Isaías sai da zona rural e vai para a corte acreditando que alcançaria no titulo de doutor a redenção para a sua condição humilde de nascimento. Ambos os personagens terminam fracassados, têm fim trágico, este não tanto quanto aquele, mas não conseguem realizar seus anseios, seja no plano coletivo ou individual.

Com isto, o romancista consegue ultrapassar as barreiras da caricatura dos personagens, mostrando que um sistema ideológico que atua no sentido de extirpar os sonhos do brasileiro, principalmente do cidadão comum que tem o ideário de luta por dias melhores para si ou para a pátria.

Policarpo Quaresma assume assim a postura do cidadão brasileiro consciente, estudioso, conhecedor das origens dos problemas do Brasil e acredita que com esse conhecimento poderá produzir as mudanças de que o Brasil tanto precisa para se afirmar como uma nação livre e progressista, no entanto seus planos submergem no mar da indiferença, da hipocrisia e intolerância dos mandatários, que detêm o poder.

O Triste Fim de Policarpo Quaresma é praticamente o único livro de Lima Barreto a ser citado nos livros didáticos, como se a obra do escritor se restringisse a esta produção. Comungamos com a visão de Kothe (2004) de que essa aceitação de O Triste de Policarpo Quaresma se deve ao fato de nele haver alguns elementos ideológicos dos quais a direita brasileira, a elite do poder, pode se apoderar para tentar enganar a mente dos leitores menos atentos. O primeiro desses elementos ideológicos é igualar o personagem principal deste livro, o major Policarpo Quaresma ao escritor Lima Barreto, uma vez que a obra do escritor tem muitos traços autobiográficos. Daí o leitor concluir que Lima Barreto é tão louco quanto Policarpo Quaresma. Isto é uma forma de os opositores à obra de Lima Barreto dizerem não dêem crédito ao que Lima Barreto diz porque ele é maluco, sua literatura não tem credibilidade nem fundamento. (grifo nosso).

Na verdade, Lima Barreto nunca foi louco, o que ele tinha esporadicamente eram perturbações em virtude do consumo de álcool. Se observarmos atentamente o que ele escreve sobre o tempo em que esteve no hospício, veremos que ele era lúcido. O efeito do álcool fazia o seu corpo cambalear, mas o seu espírito continuava firme.

Outro elemento ideológico que favorece os poderosos do Brasil é que a partir de uma leitura superficial de O Triste Fim de Policarpo Quaresma, pode-se afirmar “estudar muito não faz bem para a cabeça, quem se dedica aos livros pode acabar louco”.(grifo nosso). É uma forma de aqueles que mantêm o poder arremessarem para mais longe os filhos dos pobres, da gente humilde que vê no estudo uma forma de seus filhos fugirem da miséria e do estigma que os afligem. E outro elemento ideológico que pode passar pela cabeça do leitor pouco atento é que o país é certo, a conjuntura política do governo brasileiro é a mais correta. Policarpo Quaresma, assim como Lima Barreto, terminou de forma trágica porque eram loucos, porque não soube escolher o caminho correto, o caminho da bajulação e submissão ao poder.

No período da Bel e Époque, há também uma abertura para se tratar de temáticas sociais, pensar as relações sociais no início da República, a condição do negro “recém-liberto”, porém marginalizado na sociedade capitalista emergente, o surgimento das favelas, o processo de urbanização, principalmente da corte, as relações políticas no novo sistema de representação, e outras temáticas que vão ganhar corpo neste período.

É interessante observar, porém, que muitos dos autores deste período estavam presos às ideologias raciológicas ainda em voga, principalmente nos primeiros anos dessa fase de transição, estando também ligados à ideologia de estado, tentando legitimar um discurso que já se apresentava completamente desgastado. Outros escritores, por sua vez, escolheram a contramão do poder, como é o caso de Lima Barreto, procurando, de forma crítica e contundente, denunciar as mazelas sociais da época.

Em suma, pode-se afirmar que o pré-modernismo é um período ambíguo, até pelo seu caráter transitório, mas de uma produção literária expressiva, não só no aspecto quantitativo, mas no qualitativo. Quanto a Lima Barreto, ainda que cronologicamente esteja compreendido neste período, preferimos percebê-lo como um modernista pelo seu caráter visionário e a forma de dar aos seus escritos uma marca universalizante do homem brasileiro, embora seus textos fossem tecidos com as teias colhidas do dia-a-dia das gentes pertencentes aos rincões mais simples de nossa sociedade. Lima Barreto não cabia no Brasil da Bel e Époque porque se apresenta como um nacionalista crítico, como observa Bezerra (2008), ele “enfatiza a denúncia e o protesto contra o racismo e contra os padrões europeus absorvidos pelo Brasil, além da corrupção e do descaso com a classe proletária. Estes aspectos faziam de Lima Barreto um feroz crítico e nacionalista” (p. 320)

No contexto de final do século XIX e início do século XX, embora se apregoe que era um momento de mudanças culturais, Lima Barreto não se harmoniza com o pensamento daquela época por ser um escritor visionário, com uma produção moderna, se posicionando contra a cultura da época, especialmente a cultura letrada, privilegiada, que concede aos intelectuais, na sua maioria brancos, “doutores”, bacharéis, o direito quase exclusivista de produzir literatura e formar o pensamento nacional. Em termos acadêmicos, o ambiente não era propício para o desenvolvimento da intelectualidade na sua forma ampla. Como mostra Kothe (2004), “na época de Lima Barreto, havia falta de espaços alternativos para a sobrevivência dos intelectuais: nem a universidade havia sido criada no Brasil.” (p. 67)

No entanto, Lima Barreto não estava preocupado com o academicismo. Ele era um intelectual orgânico e teceu duras críticas à hipocrisia e ao esnobismo intelectual dos bacharéis e doutores, figuras representativas da aristocracia. Em várias obras de Lima Barreto encontramos críticas a essa gente. Em Vida e Morte de M.J. Gonzaga de Sá, Lemos:

“Gonzaga de Sá dizia-me
- a mais estúpida mania dos brasileiros, a mais estulta e lorpa, é a da aristocracia. Abre aí um jornaleco, desses de bonecos, logo dás com uns clichês negros... Olha que ninguém quer ser negro no Brasil!... Dás com uns clichês muito negros encimados pelos títulos: ‘Enlace Sousa e Fernandes’, ou ‘enlace Costa e Alves’. Julgas que se trata de grandes famílias nobres? Nada disso. São doutores arrivistas, que se casam muito naturalmente com filhas de portugueses enriquecidos.”
(BARRETO, 1997, p. 32)

Ainda que a historiografia literária coloque Lima Barreto como um pré-modernista, pode-se identificar nele características anunciadoras do Modernismo, que é um movimento artístico de renovação e de grande influência no campo das artes, procurando mostrar o Brasil com as cores próprias de nossa nação.”

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Fonte:
Jackson Diniz: “IDENTIDADE NEGRA E MODERNIDADE NA OBRA DE LIMA BARRETO”. (Dissertação apresentada como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre em Literatura e Interculturalidade, Curso de Pós-Graduação em Letras, Departamento de Letras e Artes, Universidade Estadual da Paraíba. Orientadora: Profª Drª Rosilda Alves Bezerra). Campina Grande/PB, 2010.

Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto
postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Disponível digitalmente no site: Domínio Público

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