A MODERNIDADE DE MACHADO DE ASSIS (JUSTIFICANDO A ALTERIDADE DOS PERFIS FEMININOS)
Um dos papéis desempenhados pela História é o de retratar “fiel e verdadeiramente” a realidade social e suas transformações ao longo do tempo. A literatura também pode ter esse papel. No entanto, as mudanças registradas pelos historiadores diferem na forma como os romancistas registram essas ocorrências, pois, à literatura cabe retratar as possibilidades múltiplas a partir da visão plurissignificativa do mundo à nossa volta, como também a possibilidade de retratar esse mundo a partir de um mais além.
Bakhtin (2000, p. 208) aponta para essa função da literatura quando diz que “o artista utiliza a palavra para trabalhar o mundo, e para tanto a palavra deve ser superada de forma imanente, para tornar-se expressão do mundo dos outros e expressão da relação de um autor com esse mundo”.
Pode-se ousar dizer que a literatura tem conseguido fazer esses registros com maior agudeza e acuidade, pois até mesmo em momentos de repressão e violência, vivenciados pela censura, nossos escritores conseguiram “driblar” a chamada história oficial, e, através de suas obras ficcionais, retratar o proibido, o irregular, o ilícito. A literatura, segundo Compagnon, (1999, p.37) “produz a dissensão, o novo, a ruptura”.
E, talvez, somente a literatura tenha sido capaz de se prestar a essa função, pois ela traz consigo a condição necessária a esse propósito: uma carga de liberdade que a torna independente, capaz de mostrar o real sem o compromisso com a unilateralidade ou com as forças de poder constituídas.
Antonio Candido confirma esse estatuto da literatura. Ele diz que
[...] a literatura tem sido um instrumento poderoso de instrução e educação, entrando nos currículos, sendo proposta a cada um como equipamento intelectual e afetivo. Os valores que a sociedade preconiza, ou os que considera prejudiciais, estão presentes nas diversas manifestações da ficção, da poesia e da ação dramática. A literatura confirma e nega, propõe e denuncia, apóia e combate, fortalecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os problemas. Por isso é indispensável tanto a literatura sancionada quanto a literatura proscrita; a que os poderes sugerem e a que nasce dos movimentos de negação do estado de coisas predominante. (CANDIDO, 2004, p.138)
Candido atesta que a literatura apresenta-se como imagem e transfiguração da realidade que nos cerca, e na sua ambivalência, presta-se ao leitor como objeto de conflitos, perturbações ou até mesmo de risco, pois em se tratando da possibilidade de múltiplas interpretações, ela tem um dos papéis de dizer e de retratar o humano.
Novamente, Bakhtin (2000, p. 240) reitera que na literatura “os problemas (do homem) sejam expostos em toda a sua envergadura, pois que se trata da realidade e das possibilidades do homem, da liberdade e da necessidade, da iniciativa criadora,” e certamente ela “desemboca na esfera espaçosa da existência histórica.”
O século XIX, mais especificamente o seu segundo quartel, no Brasil, foi um momento muito significativo para a nossa literatura, pois esse período representou a propagação e a “popularização” do romance brasileiro cuja proposta era bem delineada: a de divertir e instruir os leitores. E graças a essa intenção, nossos escritores conseguiram, de certa maneira, estabelecer, consolidar e projetar a literatura brasileira além dos limites de nossos espaços fronteiriços.
A sociedade burguesa brasileira do século XIX constituiu, por assim dizer, um campo fértil e um suporte bastante interessante para que nossos poetas e romancistas procedessem à análise de seu contexto e o desenhassem a seus leitores. Ao retratar os usos e costumes dessa sociedade, suas tradições, sua formação e sua cultura, nossos escritores produziram verdadeiros clássicos que, até hoje, continuam extremamente atuais.
No início do século XIX, os românticos ainda traçavam enredos, ações e personagens revestidos de uma aura iluminada, através da qual os leitores entravam no mundo do devaneio, dos sonhos. Como a literatura da época tinha o papel de entretenimento, os românticos assim o fizeram na tentativa de agradá-los, pois os seus possíveis leitores aspiravam a um modelo de vida pessoal tal qual o vivenciado pela sociedade da época e, sobretudo, o modelo que fosse espelhado nos moldes europeus. Dessa forma, os romances românticos atendiam muito bem aos interesses dessa sociedade dominante no período.
Tal como ocorre nas melhores literaturas de todo o mundo, a ficção brasileira criou personagens que, de tão bem construídas, tornaram-se marcantes e, por isso, são capazes de serem vistas como símbolos, representações da sociedade tanto do passado como do presente. Essas personagens trazem consigo princípios e valores, que lhes foram introjetados pelo autor através das nuances da construção textual, conforme a época e local em que se situam. Algumas dessas personagens foram desenhadas por seus criadores com um perfil que, de certa forma, se coadunava com os padrões daquele momento, mas, apesar de todo o rigor da época, conseguiram ultrapassar os limites histórico-sociais que lhes foram impostos.
A propósito, Bakhtin nos remete à construção de personagens quando diz que
Enquanto ponto de vista, enquanto concepção de mundo e de si mesma, a personagem requer métodos absolutamente específicos de revelação e caracterização artística. Isto porque o que deve ser revelado e caracterizado não é o ser determinado da personagem, não é a sua imagem rígida mas o resultado definitivo de sua consciência e autoconsciência, em suma, a última palavra da personagem sobre si mesma e sobre seu mundo. (BAKHTIN, 1997, p. 46-7).
Se se continua ainda com Bakhtin (1997, p. 49), vê-se que ele acrescenta que “além da realidade da própria personagem, o mundo exterior que a rodeia e os costumes se inserem no processo de autoconsciência, transferem-se do campo de visão do autor para o campo de visão da personagem”.
Assim, ao fazer um estudo sobre as personagens, especialmente as machadianas, e tentar entender a posição que assumiram naquele contexto, somos levados a uma reflexão que nos estimula à leitura e à releitura das obras de seus criadores. Pensando dessa maneira, podemos afirmar que a criação de nossos escritores e de suas personagens é certamente um marco na cultura e na literatura nacionais e um capítulo a ser destacado na literatura universal.
Como se pode perceber, Machado de Assis se encaixa perfeitamente nesse tipo de escritor moderno, pois ao criar suas personagens, principalmente as femininas, deu-lhes um caráter de fingimento, de ocultamento, de algo que parece ser e não ser. Não estaria na intenção consciente do romancista, ao utilizar esses subterfúgios, “enganar” ou até mesmo “brincar” com o leitor? Ou a sua real intenção era a de retratar “fielmente” a realidade social de sua época?
Roberto Schwarz (2000, p.9) afirma que Machado dizia que o escritor pode ser “homem do seu tempo e do seu país ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço”. E o crítico ainda acrescenta que
Ao transpor para o estilo as relações sociais que observava, ou seja, ao interiorizar o país e o tempo, Machado compunha uma expressão da sociedade real, sociedade horrendamente dividida, em situação muito particular, em parte inconfessável, nos antípodas da pátria romântica. (SCHWARZ, 2000, p. 11)
Isso significa dizer que Machado de Assis, imbuído do espírito de seu tempo e de seu país, ousou em sua forma literária, pois adotou uma postura capaz de captar e dramatizar a estrutura do país, transformada
Possuidor de sensibilidade ímpar, Machado foi capaz de registrar o ímpeto e a contemporaneidade das mudanças que já estavam acontecendo e que só foram vistas ou registradas por muitos no século seguinte, mas que ele já as percebia e as anotava em seus textos.
John Gledson, na introdução de seu livro Impostura e Realismo, afirma que
a grandeza de Machado é freqüentemente vista como capacidade de antever muitos dos procedimentos literários do século XX, nos quais as perspectivas múltiplas, os narradores não-confiáveis e um profundo ceticismo quanto ao nosso acesso à verdade se tornaram, se não norma, ao menos bastante comuns. (GLEDSON, 1991, p.8.)
Na visão de Gledson, o escritor fluminense recusou totalmente enquadrar-se com preceitos e com as normas vigentes de sua época, adotando uma posição moderna que, de certa forma, já antevia as mudanças que iriam ocorrer ao longo do século seguinte.
Além de rejeitar o rótulo de realista, Machado, meio à contramão da sociedade burguesa do século XIX e fazendo um percurso inverso as essas regras sociais, traça, em seus romances, principalmente nos últimos – Dom Casmurro, Memórias Póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba, Esaú e Jacó e Memorial de Aires - um perfil das personagens femininas singular para a época.
José Veríssimo, grande amigo do escritor, em sua obra História da Literatura Brasileira, retrata a grandeza de Machado:
A data de seu nascimento e do seu aparecimento na literatura o fazem da última geração romântica. Mas a sua índole literária avessa a escolas, a sua singular personalidade, que lhe não consentiu jamais matricular-se em alguma, quase desde os seus princípios fizeram dele um escritor à parte, que tendo atravessado vários momentos e correntes literárias, a nenhuma realmente aderiu se não mui parcialmente, guardando sempre a sua isenção. [...] Ninguém na literatura brasileira foi mais, ou sequer tanto como ele, estranho a toda a espécie de cabotinagem, de vaidade, de exibicionismo. De raiz odiava toda a publicidade, toda a vulgarização que não fosse puramente a dos seus livros publicados. (VERÍSSIMO, 1977, p. 411)
Como o crítico aponta, Machado de Assis foi um escritor diferenciado. Através da observação arguta e perspicaz dessa sociedade na qual estava inserido e, com ironia sutil e crítica feroz, algumas de suas características marcantes, representou, com maestria, essa mesma sociedade, especialmente a carioca, realçando seus elementos constitutivos, inclusive suas mazelas. Usando de um refinamento ímpar, o escritor fluminense ousou retratar comportamentos que, para a época, são considerados verdadeiros avanços.
Alguns de seus contemporâneos, como Sílvio Romero, não souberam reconhecer o caráter avançado e moderno da escrita machadiana ou pelo menos não entenderam as suas artimanhas. Romero (1992, p.122) escreve sobre o estilo de Machado de Assis:
é a fotografia exata do seu espírito, de sua índole psicológica indecisa. Correto e maneiroso, não é vivaz, nem rútilo, nem grandioso, nem eloqüente. É plácido e igual, uniforme e compassado. Sente-se que o autor não dispõe profusamente, espontaneamente do vocabulário e da frase. Vê-se que ele apalpa e tropeça, que sofre de uma perturbação qualquer nos órgãos da palavra. Sente-se o esforço, a luta. (ROMERO, 1992, p.122)
O texto de Romero é feroz. O estilo machadiano é tratado como desprovido de qualquer inovação e o crítico ainda confunde a obra e a vida do escritor, o que certamente é uma falácia. Com esse comentário sobre Machado, ele demonstra desconhecer não só a obra do escritor como também os fundamentos da teoria da literatura, já amplamente divulgados naquela época.
E deve-se à crítica do século XX, através de nomes importantes de nossa literatura, exercer a tarefa de desvelamento das complexas enunciações machadianas. Haroldo de Campos, por exemplo, foi por demais preciso em dar uma dimensão diferenciada e contrária às falácias de Romero. Segundo Campos,
em Machado, o tartamudeio estilístico era uma forma voluntária de metalinguagem. Uma maneira dialógica (bakhtiniana) implícita de desdizer o dito no mesmo passo em que este se dizia. O “perpétuo tartamudear” da arte pobre machadiana é uma forma de dizer o outro e de dizer outra coisa abrindo lacunas entre as reiterações do mesmo, do igual, por onde se insinua o distanciamento irônico da diferença. (CAMPOS, 1992, p. 223-224)
Campos aponta para um Machado de Assis não só inovador mas também precursor de outros escritores, os quais tiveram, nas obras machadianas, um caminho aberto para a modernidade e com isso foi possível desenhar um novo painel para a literatura brasileira.
Wilton Cardoso, em entrevista à Revista Scripta (2000, p. 269), comenta o estilo machadiano. Ele aponta que
Caracterizar a obra de Machado de Assis do ponto de vista filosófico, ou mesmo do ponto de vista meramente de crítica literária como sendo, vamos dizer assim, uma contribuição em que predomina a ironia me parece inteiramente falso. Machado de Assis não é irônico, Machado de Assis é humorista. O que é bastante diferente. Já se disse que o irônico é o indivíduo que pensa num ideal, o irônico é um idealista, ele analisa a realidade tentado pelo que ela devia ser e não pelo que é, e nisto ele faz a ironia. Quando nós chamamos, por exemplo, um indivíduo pouco inteligente de gênio, estamos fazendo ironia. O humorismo é ao contrário, ele é realista, não é idealista, ele vê a realidade, pinta a realidade tal como ela é e finge estar de acordo ou defender esta realidade. E é este o caso de Machado. (CARDOSO, 1997, p. 269)
Ao adotar essas estratégias narrativas, Machado de Assis enreda o leitor de tal maneira que seus narradores parecem “brincar”, parecem esconder-se por trás de máscaras num jogo de ocultamento e desvelamento na busca de uma possibilidade inútil de apreensão dos falseamentos do escritor.
O registro machadiano de sutilezas e disfarces contribuiu, de forma inconteste, para que nós, seus leitores, conhecêssemos e reconhecêssemos a grandeza de sua obra como também o desenho de suas personagens femininas. Ao apresentá-las, Machado de Assis utiliza-se de uma estratégia narrativa que expõe a figura feminina a partir de um outro ângulo, o da esfera do público, espaço este freqüentado somente por homens naquela época.
O romancista constrói personagens femininas singulares, diferenciando-as daquele modelo visto, preferido e adotado pela sociedade burguesa dominante do século XIX. Aliás, modelo que já se formara desde a sociedade clássica da antiga Grécia."
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Fonte:
ADRIENE COSTA DE OLIVEIRA COIMBRA: "Essas Mulheres Machadianas...". (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Literaturas de Língua Portuguesa. Orientador: Audemaro Taranto Goulart). Belo Horizont, 2007.
Nota:
A imagem (Biblioteca Nacional Digital do Brasil) inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
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