A Poética de Aristóteles



A POÉTICA DE ARISTÓTELES

Não só a compreensão da tragédia, mas o próprio diálogo entre direito e literatura passa, necessariamente, pelo exame da Poética de Aristóteles, obra que, como referido, atuou como texto canônico da literatura ocidental e cuja influência é inegável até os nossos dias.

Para Carlson

o primado da Poética de Aristóteles na teoria do teatro, bem como na teoria literária, é incontestável. A poética não apenas é a primeira obra significativa na tradição como seus conceitos principais e linhas de argumentação influenciaram persistentemente o desenvolvimento da teoria ao longo dos séculos. A teoria do teatro ocidental, em sua essência, começa com Aristóteles.

Na verdade, a importância da poética toma relevo a partir do século XVI pois, pouco divulgada na Idade Média, através de compilações siríacas e árabes, teve sua primeira edição latina publicada apenas em 1498, e cuja impressão ocorreu apenas em 1503. Desde então, a influência da poética aristotélica é inegável.

Segundo Brandão, os conceitos desenvolvidos por Aristóteles foram objeto de inúmeros comentários, estudos e traduções, provocando um trabalho hermenêutico reiterado no plano literário. Os humanistas do Renascimento criaram, a partir da poética, uma doutrina aristotélica da literatura que se espalhou pelos países ocidentais. Em 1527 Girôlamo Vida publicou a obra “da arte poética”. Em 1570 vem a público a importante obra renascentista “Poetica d’Aristotile vulgarizzata e sposta de Castelvetro” que define a visão renascentista da teoria aristotélica, elaborada, entre outros, por Vida (1527), Robortello (1548), Segni (1549), Maggi (1550), Vettori (1560), Giraldi Cinthio (1554), Minturno (1559), Scaliger (1561), Trissino (1563), Castelvetro (1570), sendo que a este último é atribuída a “recriação” a poética aristotélica, seja pela dedução, pelo acréscimo ou modificação do texto original.

Como assinala Brandão, todos esses estudiosos renascentistas preocuparam-se em conhecer, explicar e difundir as formulações aristotélicas.

A poética aristotélica é, em verdade, reconhecida “como texto fundador da teoria da literatura do ocidente consiste no primeiro tratado sistemático sobre o discurso literário. E discurso literário, no texto aristotélico, identifica-se com a noção de mimesis poética”.

E como esclarece Brandão:

A definição de Aristóteles, além de distinguir a tragédia da epopéia, possui duas palavras chaves que tantas interpretações têm provocado: basta dizer que até 1928 havia cento e cinqüenta ‘tomadas de posição’ em relação à catarse. Isso mostra o interesse não apenas, mas sobretudo o desespero diante do enigma da ‘mimesis’ (imitação) e da ‘kátharsis’ (purificação). Não se pretende aqui solucionar o problema, mas dizer francamente o que pensamentos acerca do assunto.
A palavra mimese, mimesis, recebeu-a Aristóteles de seu mestre Platão, rejeitando, porém, in limine, a dialética platônica da essência e da aparência. Para Platão o poeta é um re-criador inconsciente. Reproduz tão-somente reproduções existentes, porquanto a matriz original, criação divina e perfeita, bela e boa, fonte e razão dos exemplares existentes neste mundo, encontra-se na região do eidos, no mundo das idéias. Daí concluir Platão que a arte (a tragédia...), sendo mimese, imitação, é técnica imperfeita. A arte, alimentando-se da imitação, vive nos domínios da aparência e afasta os espíritos do alethês, da verdade, sendo, por isso, intrinsecamente imoral.
Aristóteles separa argutamente a arte da moral com a teoria da mimese e da catarse. A tragédia é a imitação de realidades dolorosas, porquanto sua matéria-prima é o mito, em sua forma bruta. Acontece, todavia, que essa mesma tragédia nos proporciona deleite, prazer, entusiasmo. Que tipo estranho de prazer pode ser esse? Um deleite motivado por realidades dolorosas? Mais: tais obras adquirem seu perfil pela história relatada – um catálogo de cenas dolorosas que tem um desfecho, as mais das vezes, trágico, infeliz. A tragédia é, não raro, a passagem da boa à má fortuna. Ora, se o belo é equilíbrio, ordem, simetria, proporção, como se explicam esses assuntos dolorosos, essas paixões violentas, que andam muito longe dos tipos conhecidos de ordem e proporção? A resposta não é difícil com Aristóteles. Todas as paixões, todas as cenas dolorosas e mesmo o desfecho trágico são mimese, ‘imitação’, apresentados por via do poético, não em sua natureza trágica e brutal: não são reais, passam-se num plano artificial, mimétrico. Não são realidade, mas valores pegados à realidade, pois arte é uma realidade artificial.
Mimese que é, a arte não é moral, nem imoral, é arte simplesmente [...] Catarse, kátharsis, significa na linguagem médica grega, de que se originou, purgação, purificação. Diz Aristóteles que a tragédia, pela compaixão, é terror, provoca uma catarse própria a tais emoções, isto é, relativa exclusivamente ao terror e à piedade e não a todas as paixões que carregamos em nossa alma. A matéria-prima da tragédia, como já se disse, é a mitologia. Todos os mitos são, em sua forma bruta, horríveis e, por isso mesmo, atrágicos. O poeta terá, pois, de introduzir, de aliviar essa matéria bruta com o terror e a piedade, para torná-los esteticamente operantes. As paixões arrancadas assim de sua natureza bruta alcançam pureza artística, tornando-se, na expressão do Estagirita, uma alegria sem tristeza. Destarte, os sentimentos em bruto da realidade passam por uma filtragem e a tragédia ‘purificada’ vai provocar no espectador sentimentos compatíveis com a razão. Assim poderá Aristóteles afirmar que a tragédia, suscitando terror e piedade, opera a purgação própria a tais emoções, por meio de um equilíbrio que confere aos sentimentos um estado de pureza desvinculado do real vivido.

As edições atuais da Poética, como esclarece Costa, originam-se na tradição manuscrita de cinco documentos fundamentais:

dois manuscritos gregos: O Parsinus 1741, que data do século X e é o manuscrito principal e o Ricardianus 46, datado do século XIV, o qual, embora mutilado, complementa o Parsinus 1741;
um manuscrito árabe: a Versão Arabe, do século X, que remete ao texto grego através de uma versão siríaca;
dois manuscritos latinos: o Toletanus, escrito em torno de 1280 e o Etonensis, de 1300, os quais testemunham a tradução latina da Poética, efetuada em 1278 por M. Moerbeke.

A principal questão tratada na poética diz respeito à mimese (imitação), aliada às questões do mito e da catarse, que, juntos, formam os pilares da teoria literária de Aristóteles que se dedica, basicamente, ao estudo da tragédia e da epopéia, ainda que faça referências à comédia.

A importância do texto aristotélico faz com que se examinem, aqui, os temas abordados na poética.

Aristóteles inicia a poética com uma proposta de estudo da poesia e de suas espécies como artes da imitação. Desse modo, inicia a poética alertando de que tratará da poesia em si mesma, como gênero, e também de suas espécies, que são definidas pelo fim a que se destinam, pela maneira como se compõem os mitos a fim de que resulte na perfeição do poema e, também, da natureza das partes que o constituem.

Aristóteles se utiliza de um método naturalista, ou seja, já no início da poética afirma que começará “como manda a natureza, pelas noções mais elementares”.

Assim, Aristóteles começa a poética classificando as várias espécies de poesia, quais sejam, a epopéia, o poema trágico, a comédia, o ditirambo (hino coral em louvor a Dionísio), a arte do flauteiro (aulética) e do citaredo (arte de tocar cítara, ou seja, a citarística), todas identificadas como artes da imitação.

Em seguida, esclarece as diferenças entre cada uma dessas artes que diferem entre si na medida em que efetuam a imitação de acordo com meios, objetos ou modos diversos: “artes há que se utilizam de todos os meios citados, quero dizer, do ritmo, da melodia, do metro, como a poesia ditirambica, a dos nomos, a tragédia e a comédia; diferem por usarem umas de todos há um tempo, outras ora de um, ora de outros”. A essas diferenças das artes me refiro quando falo em meios de imitação”.

Para Aristóteles, os meios pelos quais se dá a imitação (mimesis) são: as cores e as figuras por alguns artistas (seria o caso da pintura e da escultura); a voz e seus desdobramentos como meios próprios da poética: o ritmo, a linguagem (canto) e a harmonia (o metro). Como exemplos de artes que se utilizam apenas da harmonia (melodia) e do ritmo, Aristóteles cita a arte de tocar flauta e tocar cítara e ainda as demais que tenham a mesma propriedade, tal como as “fístulas” (flautas típicas dos pastores). A dança é apontada como a arte mimética que se utiliza apenas do ritmo e cujos bailarinos, por meio de gestos ritmados, alcançam a imitação de caracteres, emoções e ações. Finalmente, a arte da imitação que se utiliza exclusivamente da linguagem como meio, e que pode se valer dos gêneros metrificados ou não, combinando diferentes metros ou sem utilizá-los, é uma arte por Aristóteles inominada. É a que se convencionou chamar literatura.

Com efeito, afirma Aristóteles, referindo-se ao que hoje se convencionou chamar de literatura: “a arte que se utiliza apenas de palavras, sem ritmo ou metrificadas, esta seja com variedade de métodos combinados, seja usando uma só espécie de metro, até hoje não recebeu um nome”.

Prossegue Aristóteles, esclarecendo que justamente da combinação da variedade de metros, da utilização de apenas um ou mesmo nenhum, resultam, na verdade, classificações de poetas que não decorrem do tipo de imitação que praticam, mas sim do meio utilizado (o tipo de metro), tais como os poetas elegíacos (que são os que utilizam o dístico elegíaco: um hexâmetro, seguido de um pentâmetro) e os poetas épicos, que utilizem o metro heróico: o hexâmetro dactílico.

Aristóteles critica o uso do termo “poeta” para qualquer pessoa que se utilize do metro para expor um assunto, citando como exemplo a figura de Empédocles, que não pode ser equiparado a um poeta como entende ser Homero:

Costuma se dar esse nome mesmo a quem publica matéria médica ou científica em versos, mas, além da métrica, nada há em comum de comum entre Homero e Empédocles; por isso o certo seria chamar poeta ao primeiro e, ao segundo, antes naturalista do que poeta.

Estabelecidas essas classificações, Aristóteles passa a esclarecer acerca do objeto da imitação, representado nas pessoas em ação, que necessariamente são boas ou más (características que decorrem do vício ou da virtude na distinção do caráter), ou melhor, devem ser “ou melhores do que somos, ou piores ou então tais e quais, como fazem os pintores”, ressaltando que evidentemente as imitações serão distintas sempre que imitarem objetos diferentes. Por conseqüência, aponta, uma primeira distinção entre a tragédia e a comédia: a primeira pretende a imitação de pessoas superiores, ao passo que a segunda , imita pessoas inferiores.

Assim, após esclarecer que as artes miméticas podem se distinguir pelos meios (ritmo, palavra e melodia) e pelos objetos (a imitação de pessoas em ação, boas ou más, melhores ou piores, superiores ou inferiores), Aristóteles afirma que tais artes podem ainda se distinguir pelas maneiras como se dá a imitação, ou seja, pelo como se representam os objetos, se pela voz de um personagem, o que caracterizaria o modo narrativo (exemplo: Homero) ou se pela ação das próprias pessoas imitadas que, ao agirem, são os autores da representação (exemplo: As Tragédias de Sófocles), o que caracterizaria o modo dramático. Nessa senda, Aristóteles esclarece que a origem da palavra drama vem justamente do dialeto falado pelos comediantes que vagavam pelos arrabaldes “tocados, com desprezo, para fora da cidade” e no qual a palavra agir corresponderia a dran.

Prossegue Aristóteles examinando as duas causas naturais que dão origem à poesia: a) a primeira seria o fato de que “imitar é natural ao homem desde a infância”, o que “o difere dos outros animais”, por ser “o mais capaz de imitar e adquirir os conhecimentos por meio da imitação”. Justamente por isso, o homem tem prazer na imitação; b) a segunda é que o aprendizado é agradável aos homens [...] “se a vista das imagens proporciona prazer é porque acontece a quem as contempla aprender e identificar cada original”.

Sustenta, assim, que a tendência para imitação, a melodia e o ritmo, são naturais para os homens e do progresso daqueles mais bem dotados para essas artes, nasceu a poesia, que se diversificou de acordo com o gênio dos autores: “uns, mais graves, representavam as ações nobres e as pessoas nobres; outros mais vulgares as do vulgo, compondo inicialmente vitupérios, como os outros compunham hinos e encômios”.

A partir desses conceitos, Aristóteles distingue a tragédia e a comédia. Sustenta que a comédia é a imitação de pessoas inferiores, o que não se dá em relação a todo vício “mas sim por ser o cômico uma espécie do feio. A comicidade [...] é um defeito e uma feiúra sem dor nem destruição”. Em contrapartida, a poesia épica (epopéia) e a tragédia se assemelham por serem, ambas, uma imitação metrificada de seres superiores, sendo que a primeira se compõe num metro uniforme e é narrativa e não tem, geralmente, uma duração delimitada.

A segunda, por sua vez, tem uma extensão mais curta (“empenha-se quanto possível em não passar de uma revolução do sol ou superá-la de pouco”), e representa homens em ação. Além disso, embora a epopéia e a tragédia tenham algumas partes componentes idênticas, a tragédia tem componentes a mais, é mais rica e justamente por isso Aristóteles sustenta que aquele que consegue discernir em uma boa e má tragédia sabe, por conseqüência, discernir uma boa ou má epopéia.

Como esclarece Costa, “a teoria da tragédia é a base de toda a teoria da arte contida no texto aristotélico. Dos vinte e seis capítulos da Poética, dezessete são dedicados ao estudo da tragédia. Aristóteles considera a tragédia como a arte mimética por excelência […]”.

A tragédia é, sem dúvida, o gênero ao qual Aristóteles atribui maior importância na poética, e ao qual assim define:

É a tragédia a representação duma ação grave, de alguma extensão e completa, em linguagem exornada, cada parte com seu atavio adequado, com atores agindo, não narrando, a qual, inspirando pena e temor, opera a catarse própria dessas emoções. Chamo linguagem exornada a que tem ritmo, melodia e canto; e atavio adequado, o serem umas partes executadas com simples metrificação e as outras, cantadas.

Da definição aristotélica, inferem-se alguns elementos essenciais da tragédia, a saber:

a) a tragédia é representação de uma ação grave;
b) a tragédia tem curta extensão (tudo se passa em apenas um dia ou mais um pouco);
c) na tragédia, são representadas pessoas agindo, e, portanto, a narrativa não lhe é característica;
d) a linguagem trágica pressupõe ritmo, melodia e canto e, igualmente, equilíbrio entre as falas (conjunto dos versos) e a musicalidade.

Mais adiante, Aristóteles esclarece que justamente porque na tragédia a imitação é feita por personagens em ação, ela comporta a imitação de pessoas com caráter e idéias distintas. Idéias e caráter são as causas de todas as ações e são elas que definem se as pessoas são bem ou mal sucedidas. Assim, Aristóteles introduz três novos conceitos na poética: o conceito de fábula, o de idéias e o de caráter. A fábula é definida como a própria imitação da ação. Já o caráter corresponde às qualidades das figuras em ação e as idéias são os termos empregados por essas figuras para argumentarem ou manifestarem o que pensam.

Com isso, Aristóteles estabelece uma classificação de seis elementos inerentes à tragédia e que, conseqüentemente, definem a sua qualidade, quais sejam:

a) fábula (o mito: imitação e composição das ações) ;
b) caracteres (qualidade moral dos personagens);
c) falas (elocução, expressão);
d) idéias (pensamentos, o elemento lógico);
e) espetáculo; e
f) canto (melopéia, canto do coro).

Esses elementos correspondem aos meios da imitação, a maneira como ela se dá e o seu objeto, mas, a parte mais importante é a finalidade da tragédia (o mito/fábula, os caracteres e o pensamento são o objeto da representação; as falas e o canto são os meios, e o espetáculo é o modo como ela se apresenta). Esclarece Aristóteles que a finalidade da tragédia é constituída pelas ações e pela fábula, afirmando que a tragédia não é uma imitação de pessoas, mas sim a imitação de uma ação, da vida, da felicidade, da desventura. O caráter define as pessoas como são mas são as ações das pessoas que definem se elas são felizes ou não. Por isso, os personagens da tragédia não existem para imitar caracteres, eles adquirem os caracteres graças às ações que imitam. Fica claro, portanto, que a arte mimética da tragédia é a arte da imitação de pessoas agindo, pessoas em ação, ou melhor, da própria ação que define os caracteres dos personagens e não ao contrário. Tanto é assim, que Aristóteles afirma: “sem ação não poderia haver tragédia; sem caracteres sim”.

Neste ponto, Aristóteles esclarece que a fábula, ou seja, a imitação da ação se compõe de “peripécias e reconhecimento” e ela é a alma da tragédia, somente depois dela é que adquirem importância os caracteres, ou seja, “a tragédia é imitação duma ação e sobretudo em vista dela é que imita as pessoas agindo”.

As idéias, por sua vez, são identificadas por Aristóteles como a capacidade de expressão daquilo que está contido na ação e que com ela se harmoniza, correspondendo ao papel da política e da retórica nos discursos. E, nesse aspecto, Aristóteles esclarece que as comédias antigas se caracterizavam pela imitação de cidadãos, ao passo que as comédias ‘modernas”, ou seja, da época em que viveu, se caracterizavam por personagens eminentemente retóricos.

O caráter é associado às escolhas feitas pelo personagem diante de uma situação dúbia, que podem ser de aceitação ou recusa. Assim, para Aristóteles só está presente o caráter nas palavras que revelam uma aceitação ou recusa por parte do intérprete. As afirmações genéricas não revelam o caráter dos personagens.

Finalmente, a fala, para Aristóteles é “a interpretação por meio de palavras, o que vale tanto para os versos como para a prosa”. O canto é identificado como o maior dos ornamentos da tragédia e o espetáculo, o mais estranho a poética e o menos artístico, daí porque para Aristóteles a verdadeira tragédia subsiste mesmo sem representação nem atores.

Costa sustenta, reprisando a lição de Eudoro de Souza, que “na tragédia, o relevante vem a ser a finalidade do homem, ou seja, a sua ação e vida, e não o caráter que o qualifica: ‘a superioridade da ação (mito) sobre o estado (caráter) é lugar-comum na filosofia de Aristóteles”.

Em síntese, os elementos constitutivos da tragédia são o mito (a fábula),os caracteres, as idéias (elementos internos) e o espetáculo, o canto e as falas (elementos externos). A partir da apresentação dos seis elementos constitutivos, Aristóteles desenvolve a teoria da tragédia iniciando pela exposição acerca da importância do mito (mythos), ou seja, o “arranjo das ações”.

Esclarece que a tragédia é a imitação duma ação acabada e inteira, e que inteiro é aquilo que tem começo, meio e fim.

Começo é aquilo que, de per si, não se segue necessariamente a outra coisa, mas que, após o quê, por natureza, existe e se produz outra coisa; fim, pelo contrário, é aquilo que, de per si, pela sua natureza, vem após outra coisa, quer necessária, quer ordinariamente, mas após o quê, não há nada mais; meio é o que de si vem após outra coisa e após o quê, outra coisa vem.

Essa imitação inteira, ou seja, tem início, meio e fim, bem definidos e portanto não pode iniciar ou acabar “no acaso”, para ser bela, precisa ter extensão e ordem, e, por isso, na tragédia, o mito deve ter uma extensão que “a memória possa abranger inteira”.

Esclarece Aristóteles que os limites impostos à extensão pelas regras dos concursos trágicos ou em função da percepção da platéia não são matéria da arte, mas a duração deve permitir que os fatos se sucedam “dentro da verossimilhança ou da necessidade, passando do infortúnio à ventura, ou da ventura ao infortúnio”.

Materialmente, portanto, esse é o limite da extensão conveniente da tragédia, que corresponde àquele que a própria natureza das coisas impõe.

Justamente por isso, o mito (mythos), ou seja, o modo como os incidentes da tragédia são estruturados, é sua principal parte; é, no dizer de Aristóteles, a alma da tragédia. A palavra mito (mythos) é freqüentemente traduzida por fábula ou enredo. McLeish, contudo, esclarece que a palavra mythos significa bem mais do que isso:

mythos é material arranjado de modo a formar um enunciado artístico coerente e convincente e o termo pode ser aplicado a qualquer forma de arte. Uma escultura, um poema lírico ou uma peça musical podem ter mythos tanto quanto a tragédia. No drama, o mythos senta-se no que chamaríamos ‘enredo’ – isto é a seqüência de eventos descritos, mas ele também abrange a redação desses eventos, o arranjo pelo autor do material para delinear temas, sugerir questões e criar efeitos.

Prossegue Aristóteles esclarecendo que o mito, ou seja, o arranjo das ações, deve configurar uma unidade, o que não significa a existência de um único herói, mas sim uma unidade do objeto pois sendo o mito a imitação de uma ação, deve representar uma ação única e inteira, “que suas partes estejam arranjadas de tal modo que, deslocando-se ou suprimindo-se alguma, a unidade seja aluída e transtornada; Com efeito, aquilo cuja presença ou ausência não traz alteração sensível, não faz parte nenhuma do todo”.

Em outras palavras, a unidade da tragédia, ou seja, a unidade do mito (fábula) significa que a imitação “deve ser de uma seqüência única, unificada de ações de modo que, se qualquer uma delas for deslocada ou removida, o todo será desconjuntado e perturbado.”

Mais adiante, Aristóteles desenvolve o tema da verossimilhança e da necessidade. Esclarece, assim, que a tragédia não consiste em contar o que aconteceu, mas sim as coisas que podiam acontecer. Essa possibilidade é pautada pela verossimilhança e pela necessidade. Aristóteles se vale, aqui, de uma distinção entre poesia e história, entre a enunciação de verdades gerais e o mero relato de fatos particulares.

Assim, à poesia cabe a enunciação de verdades gerais (universais), o que é possível pela enunciação de coisas que um indivíduo de tal natureza “vem a dizer ou fazer verossímil ou necessariamente”.

Já ao historiador cabe o relato de fatos particulares, o que alguém fez ou o que fizeram a alguém. Aristóteles sustenta que nas tragédias os autores “se apóiam em nomes de pessoas que existiram” para dar credibilidade ao mito: o possível é crível, já o impossível, obviamente, jamais teria acontecido. Daí decorre a verossimilhança como um elemento essencial da tragédia. Por isso, afirma Aristóteles que o poeta há de ser criador mais das fábulas do que dos versos, visto que é poeta por imitar e imita ações. Ainda quando porventura seu tema sejam fatos reais, nem por isso é menos criador; nada impede que alguns fatos reais sejam verossímeis e possíveis, e é em virtude disso que ele é seu criador.

A importância dada por Aristóteles à verossimilhança é tal que ele condena duramente as “fábulas episódicas”, assim entendidas como aquelas que representam uma sucessão de episódios que não decorrem nem da verossimilhança nem da necessidade e a cuja produção Aristóteles atribui aos “poetas medíocres”.

Prosseguindo, Aristóteles esclarece que na tragédia, o objeto da mimesis (imitação) não é apenas uma ação completa, mas sim aquela imitação que “inspira temor e pena” ou como alguns preferem “piedade e terror” McLeisch, emoções que serão mais fortes sempre que decorrerem da sucessão dos fatos, ou melhor, quando decorrerem uns dos outros, ainda que de forma inesperada. Assim, a tragédia em que o terror e a piedade são provocados, inesperadamente, mas de preferência por uma seqüência lógica e, ainda, quando aparentarem ter ocorrido em virtude de uma ação proposital, será sempre superior àquela em que tais emoções sejam despertadas pelo acaso ou pela sorte.

Como esclarece Costa, “os mitos com efeito de surpresa, nos quais as emoções se manifestam a partir de fatos inesperados para o espectador, são considerados os melhores, ainda que devam ser decorrentes, de preferência, do encadeamento causal, verossímil e necessário das ações”. De fato, “a seqüência trágica de eventos deve ser construída de tal modo que, mesmo se alguém a ouve ser contada sem chegar a vê-la, essa pessoa deve estremecer de horror e comover-se da piedade diante do ocorrido”.

Para Aristóteles, os mitos (fábulas) podem ser simples ou complexos, de acordo com as ações que são imitadas. As fábulas simples são aquelas em que a mudança de fortuna (da boa para a má fortuna) se dá, ainda que de forma coerente, sem a ocorrência de “peripécias” (que significa uma reviravolta das ações em sentido contrário sempre obedecendo aos requisitos da verossimilhança ou da necessidade: peripetéia) e “reconhecimentos” (o reconhecimento é a mudança do desconhecimento ao conhecimento, ou à amizade, ou ao ódio, das pessoas marcadas para a ventura ou desdita: anagnorisis), ao passo que na fábula complexa a mudança de fortuna ocorre em decorrência da peripécia, do reconhecimento ou de ambas as coisas. Como exemplo de peripécia, Aristóteles cita o momento em que Édipo recebe a notícia de quem seja sua verdadeira mãe: a notícia que alivia Édipo do temor de vir a assassinar aquela que supunha ser sua mãe (Mérope) traz ao mesmo tempo a notícia do incesto que está vivendo com a verdadeira mãe Jocasta.

Esclarece Aristóteles que as melhores tragédias são aquelas, tal como ocorre em Édipo Rei, que se dão de forma concomitante. O reconhecimento, ademais, pode dar-se, em relação a coisas triviais, sem coincidir com a peripécia, mas a melhor tragédia faz com que essa coincidência ocorra, despertando piedade ou terror. O reconhecimento se dá sempre entre pessoas, ocorrendo, por vezes, de uma personagem reconhecer a outra quando há dúvida sobre a identidade de uma delas e, em outras ocasiões, há um reconhecimento mútuo.

Além do reconhecimento (agnorisis) e da peripécia (peripetéia), Aristóteles acrescenta, como parte da tragédia o “patético” (a catástrofe), que consiste numa ação produtora de destruição ou sofrimento tais como as mortes em cena, as dores, os ferimentos e etc.

O reconhecimento (agnorisis) pode ser de várias espécies:

a) reconhecimento por sinais (a pior espécie, segundo Aristóteles, “a ela mais comumente se recorre por incapacidade);
b) reconhecimentos forjados (o exemplo dado é a carta na qual Orestes revela que é Orestes, na Ifigênia – a carta diz o que o poeta deseja dizer);
c) reconhecimento pela memória (quando devido a uma lembrança a visão de um objeto causa sofrimento);
d) reconhecimento através do silogismo (o exemplo é uma citação de “As Coéforas” de Ésquilo: “chegou alguém parecido comigo; ninguém se parece comigo senão Orestes; portanto foi ele quem chegou”;
e) reconhecimento construído num paralogismo (falso raciocínio dos espectadores). O paralogismo é sempre responsável por uma conclusão falsa. Trata-se de um recurso que leva à admissão de um raciocínio falso, porque o falso é dito através de uma estratégia de verossimilhança;
f) reconhecimento que decorre das ações mesmas, que para Aristóteles é o melhor de todos e que dispensa os sinais e artifícios, seguido, em importância, do reconhecimento por silogismo. Como esclarece Costa

“trata-se de reconhecimento que decorre das próprias ações, produzindo-se o choque da surpresa segundo as vozes do verossímil [...] a melhor forma de reconhecimento é, assim, a que deriva da própria intriga e corresponde ao efeito trágico ideal, vindo, em segundo lugar, as que provém do silogismo”
.

Esclarecidos, portanto, os elementos constitutivos da tragédia, Aristóteles passa à classificação da tragédia quanto a sua extensão e à divisão de suas partes, quais sejam: o prólogo (a parte da tragédia que antecede a entrada do coro), o episódio (toda uma parte da tragédia que se dá entre dois corais completos), o êxodo (a parte da tragédia após a qual não vem canto do coro) e o canto coral, este último dividido entre párodo (o primeiro pronunciamento do coro) e estásimo (o canto coral que separa dois episódios).

Algumas tragédias possuem, ainda, além das referidas partes constitutivas, os cantos dos atores e os “comos” (kommos) que são o canto conjunto dos atores com o coro.

Prossegue Aristóteles esclarecendo quais os meios que tornam possível a eficácia da tragédia esclarecendo que ela não deve imitar homens honestos que passam da felicidade ao infortúnio, pois isso não inspiraria terror e piedade, mas sim indignação, tampouco devem ser representados homens desonestos que passam da infelicidade para a fortuna, pois isso não causaria, igualmente, piedade e terror, nem tampouco simpatia. Da mesma forma, não cabe a imitação de homens extremamente perversos que caem da felicidade ao infortúnio, ainda que isso pudesse gerar a simpatia da platéia, eis que também não gera piedade (pena) e terror (temor).

Com efeito, “de tais sentimentos, um experimentamos em relação ao infortúnio não merecido; o outro, com relação a alguém semelhante a nós, a pena, com relação a quem não merece o seu infortúnio, o temor, com relação a nosso semelhante”.

Assim, o material da tragédia é o herói em situação intermediária “aquele que nem sobreleva pela virtude e justiça, nem cai no infortúnio em conseqüência de vício e maldade, senão de algum erro, figurando entre aqueles que desfrutam grande prestígio e prosperidade”. Aqui, portanto, Aristóteles introduz o conceito de “hamartia”, ou seja, de erro grave que leva o herói ao desfecho trágico. A tragédia deve desvelar uma passagem da felicidade ao infortúnio, e não vice-versa, que resulte de um grave erro do herói, sempre identificado como alguém de prestígio e prosperidade, famoso ou pertencente a uma família com essas características.

Como esclarece Costa:

Aristóteles prescreve condições para o sucesso do mito: ele deve ser antes simples do que duplo, isto é, concluir apenas com ação de desgraça e não com duas ações diferentes; deve passar da felicidade à infelicidade, em conseqüência de um grave erro por parte de um herói “intermediário”, ou, de preferência, melhor que pior. A freqüência, na época, de tragédias cujos heróis sofreram desgraças terríveis, é exemplificada no texto com vistas à comprovação das afirmações, quanto à estrutura da tragédia mais bela. Eurípides é citado por Aristóteles como o mais trágico dos poetas por ter observado com correção a estrutura da tragédia, ainda que fosse merecedor de crítica quanto à economia da obra.

A experiência dos sentimentos de terror e piedade embora possa decorrer do espetáculo deve, para Aristóteles, preferencialmente, decorrer do arranjo das ações, ou seja, da estrutura da fábula (mythos). Assim, esclarece Aristóteles que os eventos que causam mais piedade e terror são aqueles no qual a catástrofe (evento patético) acontece entre pessoas que se querem bem, entre amigos ou familiares. A catástrofe pode ser gerada por uma ação praticada de forma consciente tal como ocorre quando Medéia mata os filhos ou, por uma ação inconsciente como ocorre com Édipo, que somente após matar o pai e desposar a própria mãe é que toma conhecimento da sua situação de parentesco (reconhecimento). Além disso, uma terceira situação é aquela em que o autor do evento catastrófico que vai ser cometido por ignorância, antes de consumá-lo, reconhece a vítima, sendo que essa situação, na verdade, por não chegar a configurar a desgraça, não chega a ser trágica. É o caso, por exemplo, da ameaça de morte que não se concretiza tal como se vê no personagem Hêmon contra seu pai Creonte na peça Antígona.

Aristóteles considera melhores as tragédias nas quais o herói pratica a ação sem conhecimento e reconhece apenas depois de praticá-la. Em seguida, passa ao exame dos caracteres que devem estar contidos na tragédia: “a peça terá caráter se, como dissemos, as palavras ou ações evidenciam uma escolha; ele será bom se esta for boa”. A regra se aplica aos personagens: “mesmo uma mulher ou um escravo podem ser bons, embora talvez a mulher seja um ser inferior e o escravo, de todo em todo, insignificante”.

Para o sucesso da tragédia e, em decorrência do próprio princípio da verossimilhança os caracteres não devem ser apenas bons (pois a tragédia é uma representação de seres melhores do que somos), mas devem ser adequados aos personagens. Daí decorre que a virilidade, por exemplo, não é, para Aristóteles, um caractere apropriado para o papel da mulher. Os caracteres devem obedecer a um padrão de semelhança e constância, ou seja, devem ser semelhantes aos caracteres que aparecem na tradição dos poemas trágicos e mesmo a inconstância característica de um personagem deve ser “constante na inconstância”. Como tudo na tragédia, os caracteres devem se submeter à verossimilhança e necessidade, ou seja, devem sempre ser necessários ou prováveis no arranjo das ações, tudo de modo em que a seqüência das ações se justifique no fato que se passou, que as ações ocorram porque são necessárias ou prováveis na estrutura do enredo.

Com base nessas ponderações Aristóteles critica o desfecho dado por Eurípides na tragédia Medéia, qual seja, a utilização de um elemento exterior, um deus “ex-machine”, um mecanismo que põe fim ao mito (fábula). No caso, trata-se da aparição de Apolo que salva a Medéia em um carro de fogo. De fato, a melhor tragédia para Aristóteles é aquela na qual o desenredo da fábula decorre da própria fábula: as ações são estruturadas de forma que, por verossimilhança e necessidade, delas decorre o desfecho. Além disso, Aristóteles esclarece que, sendo a tragédia uma representação de seres melhores do que somos, o poeta trágico, partindo de particularidades que se assemelham com o original, deve retratar tais particularidades de forma mais bela.

Assim, esclarece, ainda, que toda a tragédia tem um enredo (nó, “desis”) e o desfecho (desenlace, “luzes”): o enredo é composto pelos fatos passados do início até a última parte antes da mudança de situação de herói trágico da felicidade ao infortúnio (reviravolta), e o desfecho, inicia-se nesta mudança e segue-se até o final da tragédia. O desfecho deve seguir-se logicamente ao enredo. A isso Aristóteles acrescenta a existência de quatro tipos de tragédia, a saber:

a) complexa (que contém peripécia e reconhecimento);
b) patética (de efeitos lentos);
c) de caráter
d) de monstros (episódicas)

Salienta, contudo, que a boa tragédia deve tentar abranger todos os tipos e evitar, sempre, cair em um estrutura épica, identificada como uma multiplicidade de fábulas tal como ocorre na Ilíada de Homero. Ao contrário, a atenção do poeta trágico deve estar voltada para as peripécias e ações singelas, através das quais é possível despertar a emoção trágica e os sentimentos de humanidade: “isso se dá quando o herói hábil, porém mau, sai logrado, como Sísifo, e o valente, porém iníquo, sai vencido. Tal desfecho é verossímil, no dizer de Agatão, pois é verossímil que aconteçam muitas coisas inverossímeis”.

Explicitados os componentes e as partes integrantes da tragédia Aristóteles se dirige, então, à questão da linguagem (fala, elocução) e do pensamento (idéias). Esclarece que o assunto das idéias, o pensamento, deve ser relegado aos tratados de retórica (arte da persuasão) e limita-se, assim, na poética, a examinar a linguagem, sustentanto que “é matéria das idéias tudo quanto se deve deparar por meio da palavra”.

Como esclarece Costa

Definido como tudo o que pode ser produzido pela linguagem, o pensamento valoriza a função pragmática da língua, à medida que, por meio dela, com as falas das personagens, consegue atingir efeitos específicos aos quais visa e não conseguiria produzir apenas com as ações brutas, não acompanhadas de comentário. Esses efeitos são o demonstrar e o refutar, o suscitar emoções violentas – piedade, temor, cólera e outras congêneres – e, ainda, amplificar e reduzir o valor das coisas. Entretanto, produzir tais efeitos no drama é diferente do que produzi-los na retórica; no drama (‘poesia’, arte poética), eles devem resultar essencialmente da ação sem necessitar de interpretação explícita, ao passo que, na retórica, resultam apenas do discurso, ou seja, da palavra que expressa o pensamento do orador.

Já no tocante à linguagem (elocução), após fazermos um minucioso estudo da língua grega, dividindo o todo da linguagem em partes: letra, sílaba, conjunção, nome, verbo, artigo, flexão e proposição, Aristóteles salienta a necessidade de equilíbrio no uso das metáforas. Sustenta que o equilíbrio da linguagem consiste em sua clareza e elevação. A nobreza da linguagem e sua distinção, ocorre pelo emprego de “termos surpreendentes” e como tais são considerados “a metáfora, o alongamento e tudo que foge ao trivial”. Todavia, os excessos são condenados: uma composição feita apenas por metáforas se transforma num enigma, aquela que utiliza apenas termos raros torna-se um estrangeirismo e por isso é preciso “fundir esses processos”. O poeta trágico deve saber utilizar as metáforas e ao mesmo tempo utilizar termos correntes que darão clareza ao texto. Além disso, Aristóteles aponta os alongamentos, encurtamentos e modificação das palavras como elementos que contribuem para a distinção da linguagem, mas que devem, igualmente, ser utilizados com parcimônia, concluindo: “é importante o uso criterioso de cada um dos citados recursos, dos nomes duplos, bem como dos raros, mas muito mais a fertilidade em metáforas”. Unicamente isto não se pode aprender de outrem e é sinal de talento natural, pois ser capaz de belas metáforas é ser capaz de aprender as semelhanças.

Com estes conceitos, Aristóteles encerra, na Poética, os capítulos destinados à teoria da tragédia, passando, em seguida, ao exame da epopéia, a quem dedica uma parte menor. A epopéia é identificada como “a imitação narrativa metrificada”que tal como a tragédia se compõe de fábulas, também de forma dramática em torno de uma só ação inteira e completa, com início, meio e fim mas que não se identifica com as narrativas históricas, onde as coisas não se passam em uma ação única, mas sim num espaço de tempo em que se conta o que ocorreu a uma ou mais pessoas ligadas por um nexo fortuito. Por isso, a epopéia deve ter as mesmas espécies que a tragédia: simples, complexa, de caráter ou patética e deve ter os mesmos componentes da tragédia, exceto a melopéia (canto) e o espetáculo. “[...] ela requer, com efeito, peripécias, reconhecimento de desgraças; ademais os pensamentos e a linguagem precisam ser excelentes”.

Todavia, esclarece Aristóteles que a epopéia e a tragédia diferem na extensão da composição e no metro. A epopéia é uma narrativa e justamente por isso nela é possível representar muitas partes simultâneas, ao contrário do que ocorre na tragédia. O metro adequado à epopéia é o heróico, por ser o mais pausado e amplo, possibilitando o uso das metáforas. Para Aristóteles a “imitação narrativa” que faz uso de termos raros e metáforas é melhor que as outras.

A isso acrescenta que, como na epopéia não se vê o ator, ela é o terreno mais próprio para o irracional, pois o irracional representado (o que ocorreria numa tragédia) tende à comicidade. Por isso a epopéia se presta ao paralogismo e Homero é identificado por Aristóteles, nesta área, como o poeta maior. Na epopéia “quando plausível, o impossível se deve preferir a um possível que não convence” e justamente por isso a linguagem deve ser esmerada sem, contudo, ofuscar os caracteres e pensamentos. Para Aristóteles, portanto, a importância da verossimilhança é relativizada ao poema épico.

Aristóteles trata, em seguida, das formas de imitação (mimesis) que podem se dar:

a) pela reprodução dos originais tais como eram ou são;
b) pela reprodução dos originais pela sua aparência, como se diz que eles são ou pelo que se parecem;
c) pela reprodução dos originais como eles deveriam ser.

Aliado a isso, sustenta que existem dois tipos de erros que podem ser apontados na poesia: o erro na poética (erro essencial – erro de arte) e o erro acidental. Assim, quando a imitação do original for fracassada porque o poeta não consegue imitá-lo por incapacidade, a hipótese é de erro poético, ou seja, erro de arte. Todavia, se o erro se dá na concepção do original (como no caso de querer representar um cavalo movendo as duas patas do lado direito ao mesmo tempo) ou quando trata erroneamente de uma ciência em particular ou, ainda, cria coisas impossíveis, tem-se a hipótese do erro acidental.

Prossegue examinando a questão da crítica da mímesis, que pode ser feita sob cinco ângulos:

1) impossibilidade;
2) irracionalidade;
3) maldade;
4) contradição;
5) violação das regras da arte.

Destaca que o impossível se justifica pelos efeitos da representação e o campo da mimesis não se limita ao da verdade, mas sim ao do possível. Nesse sentido, a inserção do impossível na poesia é admitida se através dele o poeta consegue chegar a efeitos mais surpreendentes o que, em síntese, é a finalidade da própria arte. Assim, numa representação desse tipo, ainda que haja erro, a arte está salva.

Como esclarece Costa, “a gravidade do erro deve ser avaliada: se atinge a essência da arte ou é apenas acidental no poema. Será menos grave ignorar que uma corsa não tem galhos do que representá-la de uma forma não artística, como uma forma irreconhecível, deficiente do ponto de vista da mimese”.

Para Aristóteles, “do ângulo da poesia, um impossível convincente é preferível a um possível que não convence”. De outro lado, no que diz respeito às contradições é preciso identificar se o poeta contradiz suas próprias palavras ou aquilo que uma pessoa inteligente supõe através do exame das expressões e das refutações dialéticas. Além disso, o poema pode ser criticado pelo absurdo ou pela maldade quando forem usados desnecessariamente pelo poeta.

A Poética é finalizada pela resposta à indagação de qual seria a melhor imitação, se a épica ou a trágica. Aristóteles não exita ao sustentar que a tragédia é a melhor arte mimética porque ela contém todos os méritos da epopéia e a eles acresce a música ao espetáculo “partes de não mesquinha importância, por meio das quais se efetua com muita viveza. Ademais, tem viveza quer quando lida, quer quando é encenada”. Além disso, atinge a imitação numa extensão menor de tempo e com mais unidade e, por atingir melhor o seu fim é, na visão de Aristóteles, superior à epopéia.

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Fonte:
CÉSAR VERGARA DE ALMEIDA MARTINS COSTA: “DIREITO E LITERATURA: A COMPREENSÃO DO DIREITO COMO ESCRITURA A PARTIR DA TRAGÉDIA GREGA”. (Dissertação apresentada como requisito parcial para a obtenção título de Mestre, em Direito Público pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Área de concentração: Direito Público. Orientador: Profº Dr. José Carlos Moreira da Silva Filho). São Leopoldo, 2008.

Nota
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Um comentário:

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