

A POÉTICA DE ARISTÓTELES
Não  só  a  compreensão  da  tragédia,  mas  o  próprio  diálogo  entre  direito  e  literatura passa, necessariamente, pelo exame da Poética de Aristóteles, obra que,  como referido, atuou como texto canônico da literatura ocidental e cuja influência é  inegável até os nossos dias.
Para Carlson
o primado da Poética de Aristóteles na teoria do teatro, bem como na teoria  literária,  é  incontestável.  A  poética  não  apenas  é  a  primeira  obra  significativa  na  tradição  como  seus  conceitos  principais  e  linhas  de  argumentação  influenciaram  persistentemente  o  desenvolvimento  da  teoria  ao  longo  dos  séculos.  A  teoria  do  teatro  ocidental,  em  sua  essência,  começa com Aristóteles.
Na verdade, a importância da poética toma relevo a partir do século XVI pois,  pouco divulgada na Idade Média, através de compilações siríacas e árabes, teve sua  primeira edição latina publicada apenas em 1498, e cuja impressão ocorreu apenas  em 1503. Desde então, a influência da poética aristotélica é inegável.
Segundo Brandão, os conceitos desenvolvidos por Aristóteles foram objeto  de  inúmeros  comentários,  estudos  e  traduções,  provocando  um  trabalho  hermenêutico reiterado no plano literário. Os humanistas do Renascimento criaram,  a  partir  da  poética,  uma  doutrina  aristotélica  da  literatura  que  se  espalhou  pelos  países  ocidentais.  Em  1527  Girôlamo  Vida  publicou  a  obra  “da  arte  poética”.  Em  1570 vem a público a importante obra renascentista “Poetica d’Aristotile vulgarizzata  e  sposta  de  Castelvetro”  que  define  a  visão  renascentista  da  teoria  aristotélica,  elaborada,  entre  outros,  por  Vida  (1527),  Robortello  (1548),  Segni  (1549),  Maggi  (1550),  Vettori  (1560),  Giraldi  Cinthio  (1554),  Minturno  (1559),  Scaliger  (1561),   Trissino (1563), Castelvetro (1570), sendo que a este último é atribuída a “recriação”  a  poética  aristotélica,  seja  pela  dedução,  pelo  acréscimo  ou  modificação  do  texto  original.
Como  assinala      Brandão,     todos     esses       estudiosos      renascentistas  preocuparam-se em conhecer, explicar e difundir as formulações aristotélicas.
A  poética  aristotélica  é,  em  verdade,  reconhecida  “como  texto  fundador  da  teoria  da  literatura  do  ocidente  consiste  no  primeiro  tratado  sistemático  sobre  o  discurso literário. E discurso literário, no texto aristotélico, identifica-se com a noção  de mimesis poética”.
E como esclarece Brandão:
A definição de Aristóteles,  além de distinguir a tragédia da epopéia, possui  duas palavras chaves que tantas interpretações têm provocado: basta dizer  que  até  1928  havia  cento  e  cinqüenta  ‘tomadas  de  posição’  em  relação  à  catarse.  Isso  mostra  o  interesse  não  apenas,  mas  sobretudo  o  desespero  diante do enigma da ‘mimesis’ (imitação) e da ‘kátharsis’ (purificação). Não  se  pretende  aqui  solucionar  o  problema,  mas  dizer  francamente  o  que  pensamentos acerca do assunto.
A  palavra  mimese,  mimesis,  recebeu-a  Aristóteles  de  seu  mestre  Platão,  rejeitando,  porém,  in  limine,  a  dialética  platônica  da  essência  e  da  aparência. Para Platão o poeta é um re-criador inconsciente. Reproduz tão-somente reproduções existentes, porquanto a matriz original, criação divina  e  perfeita,  bela  e  boa,  fonte  e  razão  dos  exemplares  existentes  neste  mundo,  encontra-se  na  região  do  eidos,  no  mundo  das  idéias.  Daí  concluir  Platão  que  a  arte  (a  tragédia...),  sendo  mimese,  imitação,  é  técnica  imperfeita.  A  arte,  alimentando-se  da  imitação,  vive  nos  domínios  da  aparência  e  afasta  os  espíritos  do  alethês,  da  verdade,  sendo,  por  isso,  intrinsecamente imoral.
Aristóteles  separa  argutamente  a  arte  da  moral  com  a  teoria  da  mimese  e  da catarse. A tragédia é a imitação de realidades dolorosas, porquanto sua  matéria-prima  é  o  mito,  em  sua  forma  bruta.  Acontece,  todavia,  que  essa  mesma  tragédia  nos  proporciona  deleite,  prazer,  entusiasmo.  Que  tipo  estranho  de  prazer  pode  ser  esse?  Um  deleite  motivado  por  realidades dolorosas?  Mais:  tais  obras  adquirem  seu  perfil  pela  história  relatada  –  um catálogo  de  cenas  dolorosas  que  tem  um  desfecho,  as  mais  das  vezes, trágico, infeliz. A tragédia é, não raro, a passagem da boa à má fortuna. Ora,  se  o  belo  é  equilíbrio,  ordem,  simetria,  proporção,  como  se  explicam esses assuntos dolorosos, essas paixões violentas, que andam muito longe dos  tipos  conhecidos  de  ordem  e  proporção?  A  resposta  não  é  difícil  com Aristóteles.  Todas  as  paixões,  todas  as  cenas  dolorosas  e  mesmo  o desfecho  trágico  são  mimese,  ‘imitação’,  apresentados  por  via  do  poético, não em sua natureza trágica e brutal: não são reais, passam-se num plano artificial,  mimétrico.  Não  são  realidade,  mas  valores  pegados  à  realidade,  pois arte é uma realidade artificial.
Mimese  que  é,  a  arte  não  é  moral,  nem  imoral,  é  arte  simplesmente  [...]  Catarse, kátharsis, significa na linguagem médica grega, de que se originou, purgação,  purificação.  Diz  Aristóteles  que  a  tragédia,  pela  compaixão,  é terror,  provoca  uma  catarse  própria  a  tais  emoções,  isto  é,  relativa exclusivamente  ao  terror  e  à  piedade  e  não  a  todas  as  paixões  que carregamos em nossa alma. A matéria-prima da tragédia, como já se disse, é a mitologia. Todos os mitos são, em sua forma bruta, horríveis e, por isso mesmo,  atrágicos.  O  poeta  terá,  pois,  de  introduzir,  de  aliviar  essa  matéria bruta com o terror e a piedade, para torná-los esteticamente operantes. As paixões arrancadas assim de sua natureza bruta alcançam pureza artística, tornando-se, na expressão do Estagirita, uma alegria sem tristeza. Destarte, os  sentimentos  em  bruto  da  realidade  passam  por  uma  filtragem  e  a tragédia  ‘purificada’  vai  provocar  no  espectador  sentimentos  compatíveis com  a  razão.  Assim  poderá  Aristóteles  afirmar  que  a  tragédia,  suscitando terror e piedade, opera a purgação própria a tais emoções, por meio de um equilíbrio  que  confere  aos  sentimentos  um  estado  de  pureza  desvinculado do real vivido.
As edições atuais da Poética, como esclarece Costa, originam-se na tradição  manuscrita de cinco documentos fundamentais:
dois  manuscritos  gregos:  O  Parsinus  1741,  que  data  do  século  X  e  é  o manuscrito  principal  e  o  Ricardianus  46,  datado  do  século  XIV,  o  qual, embora mutilado, complementa o Parsinus 1741;
um  manuscrito  árabe:  a  Versão  Arabe,  do  século  X,  que  remete  ao  texto grego através de uma versão siríaca;
dois  manuscritos  latinos:  o  Toletanus,  escrito  em  torno  de  1280  e  o Etonensis,  de  1300,  os  quais  testemunham  a  tradução  latina  da  Poética, efetuada em 1278 por M. Moerbeke.
A principal questão tratada na poética diz respeito à mimese (imitação), aliada às  questões  do mito  e  da  catarse,  que,  juntos, formam os  pilares da  teoria  literária de  Aristóteles  que  se  dedica,  basicamente,  ao  estudo  da  tragédia  e  da  epopéia, ainda que faça referências à comédia.
A importância do texto aristotélico faz com que se examinem, aqui, os temas abordados na poética.
Aristóteles inicia a poética com uma proposta de estudo da poesia e de suas  espécies  como  artes  da  imitação.  Desse  modo,  inicia  a  poética  alertando  de  que tratará da poesia em si mesma, como gênero, e também de suas espécies, que são definidas pelo fim a que se destinam, pela maneira como se compõem os mitos a fim  de  que  resulte  na  perfeição  do  poema  e,  também,  da  natureza  das  partes  que  o  constituem.
Aristóteles se utiliza de um método naturalista, ou seja, já no início da poética  afirma que começará “como manda a natureza, pelas noções mais elementares”.
Assim,  Aristóteles  começa  a  poética  classificando  as  várias  espécies  de poesia, quais sejam, a epopéia, o poema trágico, a comédia, o ditirambo (hino coral em  louvor  a  Dionísio),  a  arte  do  flauteiro  (aulética)  e  do  citaredo  (arte  de  tocar cítara, ou seja, a citarística), todas identificadas como artes da imitação.
Em  seguida,  esclarece  as  diferenças  entre  cada  uma  dessas  artes  que diferem  entre  si  na  medida  em  que  efetuam  a  imitação  de  acordo  com  meios, objetos  ou  modos  diversos:  “artes  há  que  se  utilizam  de  todos  os  meios  citados, quero  dizer,  do  ritmo,  da  melodia,  do  metro,  como  a  poesia  ditirambica,  a  dos nomos,  a  tragédia  e  a  comédia;  diferem  por  usarem  umas  de  todos  há  um  tempo, outras ora de um, ora de outros”. A essas diferenças das artes me refiro quando falo em meios de imitação”.
Para  Aristóteles,  os  meios  pelos  quais  se  dá  a  imitação  (mimesis)  são:  as cores e as figuras por alguns artistas (seria o caso da pintura e da escultura); a voz e seus desdobramentos como meios próprios da poética: o ritmo, a linguagem (canto) e  a  harmonia  (o  metro).  Como  exemplos  de  artes  que  se  utilizam  apenas  da harmonia (melodia) e do ritmo, Aristóteles cita a arte de tocar flauta e tocar cítara e ainda  as  demais  que  tenham  a  mesma  propriedade,  tal  como  as  “fístulas”  (flautas típicas  dos  pastores).  A  dança  é  apontada  como  a  arte  mimética  que  se  utiliza apenas  do  ritmo  e  cujos  bailarinos,  por  meio  de  gestos  ritmados,  alcançam  a imitação  de  caracteres,  emoções  e  ações.  Finalmente,  a  arte  da  imitação  que  se  utiliza  exclusivamente  da  linguagem  como  meio,  e  que  pode  se  valer  dos  gêneros  metrificados  ou  não,  combinando  diferentes  metros  ou  sem  utilizá-los,  é  uma  arte  por Aristóteles inominada. É a que se convencionou chamar literatura.
Com  efeito,  afirma  Aristóteles,  referindo-se  ao  que  hoje  se  convencionou  chamar  de  literatura:  “a  arte  que  se  utiliza  apenas  de  palavras,  sem  ritmo  ou  metrificadas, esta seja com variedade de métodos combinados, seja usando uma só  espécie de metro, até hoje não recebeu um nome”.
Prossegue  Aristóteles,  esclarecendo  que  justamente  da  combinação  da variedade de metros, da utilização de apenas um ou mesmo nenhum, resultam, na verdade,  classificações  de  poetas  que  não  decorrem  do  tipo  de  imitação  que praticam, mas sim do meio utilizado (o tipo de metro), tais como os poetas elegíacos (que  são  os  que  utilizam  o  dístico  elegíaco:  um  hexâmetro,  seguido  de  um pentâmetro) e os poetas épicos, que utilizem o metro heróico: o hexâmetro dactílico.
Aristóteles critica o uso do termo “poeta” para qualquer pessoa que se utilize do  metro  para  expor  um  assunto,  citando  como  exemplo  a  figura  de  Empédocles, que não pode ser equiparado a um poeta como entende ser Homero:
Costuma  se  dar  esse  nome  mesmo  a  quem  publica  matéria  médica  ou científica em versos, mas, além da métrica, nada há em comum de comum entre  Homero  e  Empédocles;  por  isso  o  certo  seria  chamar  poeta  ao primeiro e, ao segundo, antes naturalista do que poeta.
Estabelecidas essas classificações, Aristóteles passa a esclarecer acerca do objeto  da  imitação,  representado  nas  pessoas  em  ação,  que  necessariamente  são boas  ou  más  (características  que  decorrem  do  vício  ou  da  virtude  na  distinção  do caráter), ou melhor, devem ser “ou melhores do que somos, ou piores ou então tais e  quais,  como  fazem  os  pintores”,  ressaltando  que  evidentemente  as  imitações serão  distintas  sempre  que  imitarem  objetos  diferentes.  Por  conseqüência,  aponta, uma primeira distinção entre a tragédia e a comédia: a primeira pretende a imitação de pessoas superiores, ao passo que a segunda , imita pessoas inferiores.
Assim,  após  esclarecer  que  as  artes  miméticas  podem  se  distinguir  pelos meios  (ritmo,  palavra  e  melodia)  e  pelos  objetos  (a  imitação  de  pessoas  em  ação, boas  ou  más,  melhores  ou  piores,  superiores  ou  inferiores),  Aristóteles  afirma  que tais artes podem ainda se distinguir pelas maneiras como se dá a imitação, ou seja, pelo  como  se  representam  os  objetos,  se  pela  voz  de  um  personagem,  o  que caracterizaria  o  modo  narrativo  (exemplo:  Homero)  ou  se  pela  ação  das  próprias pessoas  imitadas  que,  ao  agirem,  são  os  autores  da  representação  (exemplo:  As Tragédias  de  Sófocles),  o  que  caracterizaria  o  modo  dramático.  Nessa  senda, Aristóteles  esclarece  que  a  origem  da  palavra  drama  vem  justamente  do  dialeto falado  pelos  comediantes  que  vagavam  pelos  arrabaldes  “tocados,  com  desprezo, para fora da cidade” e no qual a palavra agir corresponderia a dran.
Prossegue Aristóteles examinando as duas causas naturais que dão origem à poesia:  a)  a  primeira  seria  o  fato  de  que  “imitar  é  natural  ao  homem  desde  a infância”,  o  que  “o  difere  dos  outros  animais”,  por  ser  “o  mais  capaz  de  imitar  e adquirir  os  conhecimentos por  meio  da  imitação”.  Justamente  por  isso,  o homem  tem prazer na imitação; b) a segunda é que o aprendizado é agradável aos homens  [...]  “se  a  vista  das  imagens  proporciona  prazer  é  porque  acontece  a  quem  as contempla aprender e identificar cada original”.
Sustenta,  assim,  que  a  tendência  para  imitação,  a  melodia  e  o  ritmo,  são naturais  para  os  homens  e  do  progresso  daqueles  mais  bem  dotados  para  essas artes, nasceu a poesia, que se diversificou de acordo com o gênio dos autores: “uns, mais  graves,  representavam  as  ações  nobres  e  as  pessoas  nobres;  outros  mais vulgares as do vulgo, compondo inicialmente vitupérios, como os outros compunham hinos e encômios”.
A  partir  desses  conceitos,  Aristóteles  distingue  a  tragédia  e  a  comédia.  Sustenta  que  a  comédia  é  a  imitação  de  pessoas  inferiores,  o  que  não  se  dá  em  relação a todo vício “mas sim por ser o cômico uma espécie do feio. A comicidade  [...] é um defeito e uma feiúra sem dor nem destruição”. Em contrapartida, a poesia  épica  (epopéia)  e  a  tragédia  se  assemelham  por  serem,  ambas,  uma  imitação  metrificada  de  seres  superiores,  sendo  que  a  primeira  se  compõe  num  metro  uniforme e é narrativa e não tem, geralmente, uma duração delimitada.
A segunda, por sua vez, tem uma extensão mais curta (“empenha-se quanto  possível  em  não  passar  de  uma  revolução  do  sol  ou  superá-la  de  pouco”),  e  representa  homens  
Como  esclarece  Costa,  “a  teoria  da  tragédia  é  a  base  de  toda  a  teoria  da arte  contida  no  texto  aristotélico.  Dos  vinte  e  seis  capítulos  da  Poética,  dezessete são  dedicados  ao  estudo  da  tragédia.  Aristóteles  considera  a  tragédia  como  a  arte mimética por excelência […]”.
A  tragédia  é,  sem  dúvida,  o  gênero  ao  qual  Aristóteles  atribui  maior  importância na poética, e ao qual assim define:
É  a  tragédia  a  representação  duma  ação  grave,  de  alguma  extensão  e completa,  em  linguagem  exornada,  cada  parte  com  seu  atavio  adequado, com atores agindo, não narrando, a qual, inspirando pena e temor, opera a catarse  própria  dessas  emoções.  Chamo  linguagem  exornada  a  que  tem ritmo, melodia e canto; e atavio adequado, o serem umas partes executadas com simples metrificação e as outras, cantadas.
Da definição aristotélica, inferem-se alguns elementos essenciais da tragédia,  a saber:
a)  a tragédia é representação de uma ação grave;
b)  a tragédia tem curta extensão (tudo se passa em apenas um dia ou mais  um pouco);
c)  na  tragédia,  são  representadas  pessoas  agindo,  e,  portanto,  a  narrativa  não lhe é característica;
d)  a  linguagem  trágica  pressupõe  ritmo,  melodia  e  canto  e,  igualmente,  equilíbrio entre as falas (conjunto dos versos) e a musicalidade.
Mais  adiante,  Aristóteles  esclarece  que  justamente  porque  na  tragédia  a  imitação é feita por personagens em ação, ela comporta a imitação de pessoas com  caráter  e  idéias  distintas.  Idéias  e  caráter  são  as  causas  de  todas  as  ações  e  são  elas  que  definem  se  as  pessoas  são  bem  ou  mal  sucedidas.  Assim,  Aristóteles  introduz  três  novos  conceitos  na  poética:  o  conceito  de  fábula,  o  de  idéias  e  o  de  caráter.  A  fábula  é  definida  como  a  própria  imitação  da  ação.  Já  o  caráter corresponde  às  qualidades  das  figuras  em  ação  e  as  idéias  são  os  termos empregados por essas figuras para argumentarem ou manifestarem o que pensam.
Com  isso,  Aristóteles  estabelece  uma  classificação  de  seis  elementos  inerentes  à  tragédia  e  que,  conseqüentemente,  definem  a  sua  qualidade,  quais  sejam:
a)  fábula (o mito: imitação e composição das ações) ;
b)  caracteres (qualidade moral dos personagens);
c)  falas (elocução, expressão);
d)  idéias (pensamentos, o elemento lógico);
e)  espetáculo; e
f)  canto (melopéia, canto do coro).
Esses  elementos  correspondem aos meios da  imitação, a maneira  como ela  se  dá  e  o  seu  objeto,  mas,  a  parte  mais  importante  é  a  finalidade  da  tragédia  (o  mito/fábula, os caracteres e o pensamento são o objeto da representação; as falas e  o canto são os meios, e o espetáculo é o modo como ela se apresenta). Esclarece  Aristóteles  que  a  finalidade  da  tragédia  é  constituída  pelas  ações  e  pela  fábula,  afirmando  que  a  tragédia  não  é  uma  imitação  de  pessoas,  mas  sim  a  imitação  de uma ação, da vida, da felicidade, da desventura. O caráter define as pessoas como são  mas  são  as  ações  das  pessoas  que  definem  se  elas  são  felizes  ou  não.  Por isso, os personagens da tragédia não existem para imitar caracteres, eles adquirem os caracteres graças às ações que imitam. Fica claro, portanto, que a arte mimética da  tragédia  é  a arte da  imitação  de  pessoas  agindo,  pessoas em  ação,  ou melhor, da própria ação que define os caracteres dos personagens e não ao contrário. Tanto é  assim,  que  Aristóteles  afirma:  “sem  ação  não  poderia  haver  tragédia;  sem caracteres sim”.
Neste ponto, Aristóteles esclarece que a fábula, ou seja, a imitação da ação  se  compõe  de “peripécias  e  reconhecimento”  e  ela  é  a  alma  da  tragédia,  somente  depois  dela  é  que  adquirem  importância  os  caracteres,  ou  seja,  “a  tragédia  é  imitação duma ação e sobretudo em vista dela é que imita as pessoas agindo”.
As idéias, por sua vez, são identificadas por Aristóteles como a capacidade de expressão  daquilo  que  está  contido  na  ação  e  que  com  ela  se  harmoniza, correspondendo ao papel da política e da retórica nos discursos. E, nesse aspecto, Aristóteles  esclarece  que  as  comédias  antigas  se  caracterizavam  pela  imitação  de cidadãos, ao passo que as comédias ‘modernas”, ou seja, da época em que viveu, se caracterizavam por personagens eminentemente retóricos.
O  caráter  é  associado  às  escolhas  feitas  pelo  personagem  diante  de  uma  situação  dúbia,  que  podem  ser  de  aceitação  ou  recusa.  Assim,  para  Aristóteles  só está presente o caráter nas palavras que revelam uma aceitação ou recusa por parte do intérprete. As afirmações genéricas não revelam o caráter dos personagens.
Finalmente, a fala, para Aristóteles é “a interpretação por meio de palavras, o que  vale  tanto  para  os  versos  como  para  a  prosa”.  O  canto  é  identificado  como  o maior  dos  ornamentos  da  tragédia  e  o  espetáculo,  o  mais  estranho  a  poética  e  o menos  artístico,  daí  porque  para  Aristóteles  a  verdadeira  tragédia  subsiste  mesmo sem representação nem atores.
Costa sustenta, reprisando a lição de Eudoro de Souza, que “na tragédia, o  relevante  vem  a  ser  a  finalidade  do  homem,  ou  seja,  a  sua  ação  e  vida,  e  não  o  caráter  que  o  qualifica:  ‘a  superioridade  da  ação  (mito)  sobre  o  estado  (caráter)  é  lugar-comum na filosofia de Aristóteles”.
Em  síntese,  os  elementos  constitutivos  da  tragédia  são  o  mito  (a  fábula),os  caracteres,  as  idéias  (elementos  internos)  e  o  espetáculo,  o  canto  e  as  falas  (elementos  externos).  A  partir  da  apresentação  dos  seis  elementos  constitutivos,  Aristóteles  desenvolve  a  teoria  da  tragédia  iniciando  pela  exposição  acerca  da  importância do mito (mythos), ou seja, o “arranjo das ações”.
Esclarece  que  a  tragédia  é  a  imitação  duma  ação  acabada  e  inteira,  e  que  inteiro é aquilo que tem começo, meio e fim.
Começo  é  aquilo  que,  de  per  si,  não  se  segue  necessariamente  a  outra  coisa,  mas  que,  após  o  quê,  por  natureza,  existe  e  se  produz  outra  coisa;  fim,  pelo  contrário,  é  aquilo  que,  de  per  si,  pela  sua  natureza,  vem  após  outra coisa, quer necessária, quer ordinariamente, mas após o quê, não há  nada  mais;  meio  é  o  que  de  si  vem  após  outra  coisa  e  após  o  quê,  outra  coisa vem.
Essa imitação inteira, ou seja, tem início, meio e fim, bem definidos e portanto  não pode iniciar ou acabar “no acaso”, para ser bela, precisa ter extensão e ordem,  e,  por  isso,  na  tragédia,  o  mito  deve  ter  uma  extensão  que  “a  memória  possa  abranger inteira”.
Esclarece  Aristóteles  que  os  limites  impostos  à  extensão  pelas  regras  dos  concursos trágicos ou em função da percepção da platéia não são matéria da arte,  mas a duração deve permitir que os fatos se sucedam “dentro da verossimilhança ou  da  necessidade,  passando  do  infortúnio  à  ventura,  ou  da  ventura  ao  infortúnio”.
Materialmente,  portanto,  esse  é  o  limite  da  extensão  conveniente  da  tragédia,  que  corresponde àquele que a própria natureza das coisas impõe.
Justamente por isso, o mito (mythos), ou seja, o modo como os incidentes da  tragédia são estruturados, é sua principal parte; é, no dizer de Aristóteles, a alma da  tragédia. A palavra mito (mythos) é freqüentemente traduzida por fábula ou enredo.  McLeish, contudo, esclarece que a palavra mythos significa bem mais do que isso:
mythos  é  material  arranjado  de  modo  a  formar  um  enunciado  artístico coerente  e  convincente  e  o  termo  pode  ser  aplicado  a  qualquer  forma  de arte.  Uma  escultura,  um  poema  lírico  ou  uma  peça  musical  podem  ter mythos  tanto  quanto  a  tragédia.  No  drama,  o  mythos  senta-se  no  que chamaríamos  ‘enredo’  –  isto  é  a  seqüência  de  eventos  descritos,  mas  ele também abrange a redação desses eventos, o arranjo pelo autor do material para delinear temas, sugerir questões e criar efeitos.
Prossegue Aristóteles esclarecendo que o mito, ou seja, o arranjo das ações,  deve  configurar  uma  unidade,  o  que  não  significa  a  existência  de  um  único  herói,  mas  sim  uma  unidade  do  objeto  pois  sendo  o  mito  a  imitação  de  uma  ação,  deve  representar  uma  ação  única  e  inteira,  “que  suas  partes  estejam  arranjadas  de  tal  modo    que,  deslocando-se  ou  suprimindo-se  alguma,  a  unidade  seja  aluída  e  transtornada;  Com  efeito,  aquilo  cuja  presença  ou  ausência  não  traz  alteração  sensível, não faz parte nenhuma do todo”.
Em outras palavras, a unidade da tragédia, ou seja, a unidade do mito (fábula)  significa  que  a  imitação “deve  ser  de  uma  seqüência  única,  unificada  de  ações  de  modo  que,  se  qualquer  uma  delas  for  deslocada  ou  removida,  o  todo  será  desconjuntado e perturbado.”
Mais  adiante,  Aristóteles  desenvolve  o  tema  da  verossimilhança  e  da  necessidade.  Esclarece,  assim,  que  a  tragédia  não  consiste  em  contar  o  que  aconteceu, mas sim as coisas que podiam acontecer. Essa possibilidade é pautada  pela verossimilhança e pela necessidade. Aristóteles se vale, aqui, de uma distinção  entre  poesia  e  história,  entre  a  enunciação  de  verdades  gerais  e  o  mero  relato  de  fatos particulares.
Assim, à poesia cabe a enunciação de verdades gerais (universais), o que é  possível pela enunciação de coisas que um indivíduo de tal natureza “vem a dizer ou  fazer verossímil ou necessariamente”.
Já  ao  historiador  cabe  o  relato  de  fatos  particulares,  o  que  alguém  fez  ou  o  que fizeram a alguém. Aristóteles sustenta que nas tragédias os autores “se apóiam  em  nomes  de  pessoas  que  existiram”  para  dar  credibilidade  ao  mito:  o  possível  é  crível,  já  o  impossível,  obviamente,  jamais  teria  acontecido.  Daí  decorre  a  verossimilhança  como  um  elemento  essencial  da  tragédia.  Por  isso,  afirma  Aristóteles que  o poeta  há  de ser criador  mais das fábulas do que dos versos,  visto que  é poeta  por  imitar  e  imita  ações.  Ainda  quando  porventura  seu  tema  sejam fatos  reais,  nem  por  isso  é  menos  criador;  nada  impede  que  alguns  fatos reais  sejam  verossímeis  e  possíveis,  e  é  em  virtude  disso  que  ele  é  seu criador.
A  importância  dada  por  Aristóteles  à  verossimilhança  é  tal  que  ele  condena  duramente  as “fábulas  episódicas”,  assim  entendidas  como  aquelas  que  representam uma sucessão de episódios que não decorrem nem da verossimilhança  nem da necessidade e a cuja produção Aristóteles atribui aos “poetas medíocres”.
Prosseguindo,  Aristóteles  esclarece  que  na  tragédia,  o  objeto  da  mimesis (imitação) não é apenas uma ação completa, mas sim aquela imitação que “inspira  temor  e  pena”  ou  como  alguns  preferem  “piedade  e  terror”  McLeisch,  emoções  que  serão  mais  fortes  sempre  que  decorrerem  da  sucessão  dos  fatos,  ou  melhor,  quando  decorrerem  uns  dos  outros,  ainda  que  de  forma  inesperada.  Assim,  a tragédia  em  que  o  terror  e  a  piedade  são  provocados,  inesperadamente,  mas  de preferência por uma seqüência lógica e, ainda, quando aparentarem ter ocorrido em virtude de uma ação proposital, será sempre superior àquela em que tais emoções sejam despertadas pelo acaso ou pela sorte.
Como  esclarece  Costa,  “os  mitos  com  efeito  de  surpresa,  nos  quais  as emoções  se  manifestam  a  partir  de  fatos  inesperados  para  o  espectador,  são considerados  os  melhores,  ainda  que  devam  ser  decorrentes,  de  preferência,  do encadeamento  causal,  verossímil  e  necessário  das  ações”.  De  fato,  “a  seqüência trágica de eventos deve ser construída de tal modo que, mesmo se alguém a ouve ser contada sem chegar a vê-la, essa pessoa deve estremecer de horror e comover-se da piedade diante do ocorrido”.
Para Aristóteles, os mitos (fábulas) podem ser simples ou complexos, de acordo com as ações que são imitadas. As fábulas simples são aquelas em que a mudança de fortuna  (da  boa  para  a  má  fortuna)  se  dá,  ainda  que  de  forma  coerente,  sem  a ocorrência de “peripécias” (que significa uma reviravolta das ações em sentido contrário sempre obedecendo aos requisitos da verossimilhança ou da necessidade: peripetéia) e “reconhecimentos”  (o  reconhecimento  é  a  mudança  do  desconhecimento  ao conhecimento,  ou  à  amizade,  ou  ao  ódio,  das  pessoas  marcadas  para  a  ventura  ou desdita:  anagnorisis), ao passo que na fábula complexa a mudança de fortuna ocorre em  decorrência  da  peripécia,  do  reconhecimento  ou  de  ambas  as  coisas.  Como exemplo  de  peripécia,  Aristóteles  cita  o  momento  em  que  Édipo  recebe  a  notícia  de quem seja sua verdadeira mãe: a notícia que alivia Édipo do temor de vir a assassinar aquela que supunha ser sua mãe (Mérope) traz ao mesmo tempo a notícia do incesto que está vivendo com a verdadeira mãe Jocasta.
Esclarece Aristóteles que as melhores tragédias são aquelas, tal como ocorre em  Édipo  Rei,  que  se  dão  de  forma  concomitante.  O  reconhecimento,  ademais, pode  dar-se,  em  relação  a  coisas  triviais,  sem  coincidir  com  a  peripécia,  mas  a melhor  tragédia  faz  com  que  essa  coincidência  ocorra,  despertando  piedade  ou terror.  O  reconhecimento  se  dá  sempre  entre  pessoas,  ocorrendo,  por  vezes,  de uma personagem reconhecer a outra quando há dúvida sobre a identidade de uma delas e, em outras ocasiões, há um reconhecimento mútuo.
Além  do  reconhecimento  (agnorisis)  e  da  peripécia  (peripetéia),  Aristóteles  acrescenta,  como  parte  da  tragédia  o  “patético”  (a  catástrofe),  que  consiste  numa  ação produtora de destruição ou sofrimento tais como as mortes em cena, as dores,  os ferimentos e etc.
O reconhecimento (agnorisis) pode ser de várias espécies:
a)  reconhecimento por sinais (a pior espécie, segundo Aristóteles, “a ela mais  comumente se recorre por incapacidade);
b)  reconhecimentos  forjados  (o  exemplo  dado  é  a  carta  na  qual  Orestes revela que é Orestes, na Ifigênia – a carta diz o que o poeta deseja dizer);
c)  reconhecimento pela memória (quando devido a uma lembrança a visão de um objeto causa sofrimento);
d)  reconhecimento  através  do  silogismo  (o  exemplo  é  uma  citação  de  “As Coéforas”  de  Ésquilo: “chegou  alguém  parecido  comigo;  ninguém  se parece comigo senão Orestes; portanto foi ele quem chegou”;
e)  reconhecimento  construído  num  paralogismo  (falso  raciocínio  dos espectadores).  O  paralogismo  é  sempre  responsável  por  uma  conclusão falsa. Trata-se de um recurso que leva à admissão de um raciocínio falso, porque o falso é dito através de uma estratégia de verossimilhança;
f)  reconhecimento que decorre das ações mesmas, que para Aristóteles é o melhor  de  todos  e  que  dispensa  os  sinais  e  artifícios,  seguido,  em importância,  do  reconhecimento  por  silogismo.  Como  esclarece  Costa
“trata-se  de  reconhecimento  que  decorre  das  próprias  ações,  produzindo-se  o  choque  da  surpresa  segundo  as  vozes  do  verossímil  [...]  a  melhor forma  de  reconhecimento  é,  assim,  a  que  deriva  da  própria  intriga  e corresponde  ao  efeito  trágico  ideal,  vindo,  em  segundo  lugar,  as  que provém do silogismo”.
Esclarecidos,  portanto,  os  elementos  constitutivos  da  tragédia,  Aristóteles passa à classificação da tragédia quanto a sua extensão e à divisão de suas partes, quais  sejam:  o  prólogo  (a  parte  da  tragédia  que  antecede  a  entrada  do  coro),  o episódio (toda uma parte da tragédia que se dá entre dois corais completos), o êxodo (a parte da tragédia após a qual não vem canto do coro) e o canto coral, este último dividido entre párodo (o primeiro pronunciamento do coro) e estásimo (o canto coral que separa dois episódios).
Algumas  tragédias  possuem,  ainda,  além  das  referidas  partes  constitutivas,  os cantos dos atores e os “comos” (kommos) que são o canto conjunto dos atores com o coro.
Prossegue  Aristóteles  esclarecendo  quais  os  meios  que  tornam  possível  a eficácia  da  tragédia  esclarecendo  que  ela  não  deve  imitar  homens  honestos  que passam da felicidade ao infortúnio, pois isso não inspiraria terror e piedade, mas sim indignação, tampouco devem ser representados homens desonestos que passam da infelicidade para a fortuna, pois isso não causaria, igualmente, piedade e terror, nem tampouco  simpatia.  Da  mesma  forma,  não  cabe  a  imitação  de  homens extremamente  perversos  que  caem  da  felicidade  ao  infortúnio,  ainda  que  isso pudesse  gerar  a  simpatia  da  platéia,  eis  que  também  não  gera  piedade  (pena)  e terror (temor).
Com  efeito, “de  tais  sentimentos,  um  experimentamos  em  relação  ao  infortúnio não merecido; o outro, com relação a alguém semelhante a nós, a pena, com relação a quem não merece o seu infortúnio, o temor, com relação a nosso semelhante”.
Assim, o material da tragédia é o herói em situação intermediária “aquele que nem sobreleva pela virtude e justiça, nem cai no infortúnio em conseqüência de vício e  maldade,  senão  de  algum  erro,  figurando  entre  aqueles  que  desfrutam  grande  prestígio  e  prosperidade”.  Aqui,  portanto,  Aristóteles  introduz  o  conceito  de “hamartia”, ou seja, de erro grave que leva o herói ao desfecho trágico. A tragédia deve  desvelar  uma  passagem  da  felicidade  ao  infortúnio,  e  não  vice-versa,  que resulte de um grave erro do herói, sempre identificado como alguém de prestígio e prosperidade, famoso ou pertencente a uma família com essas características.
Como esclarece Costa:
Aristóteles prescreve condições para o sucesso do mito: ele deve ser antes simples do que duplo, isto é, concluir apenas com ação de desgraça e não com  duas  ações  diferentes;  deve  passar  da  felicidade  à  infelicidade,  em conseqüência de um grave erro por parte de um herói “intermediário”, ou, de preferência,  melhor  que  pior.  A  freqüência,  na  época,  de  tragédias  cujos heróis  sofreram  desgraças  terríveis,  é  exemplificada  no  texto  com  vistas  à comprovação  das  afirmações,  quanto  à  estrutura  da  tragédia  mais  bela. Eurípides  é  citado  por  Aristóteles  como  o  mais  trágico  dos  poetas  por  ter observado  com  correção  a  estrutura  da  tragédia,  ainda  que  fosse merecedor de crítica quanto à economia da obra.
A experiência dos sentimentos de terror e piedade embora possa decorrer do espetáculo deve, para Aristóteles, preferencialmente, decorrer do arranjo das ações, ou  seja,  da  estrutura  da  fábula  (mythos).  Assim,  esclarece  Aristóteles  que  os eventos que causam mais piedade e terror são aqueles no qual a catástrofe (evento patético) acontece entre pessoas que se querem bem, entre amigos ou familiares. A catástrofe  pode  ser  gerada  por  uma  ação  praticada  de  forma  consciente  tal  como ocorre quando Medéia mata os filhos ou, por uma ação inconsciente como ocorre com  Édipo,  que  somente  após  matar  o  pai  e  desposar  a  própria  mãe  é  que  toma conhecimento  da  sua  situação  de  parentesco  (reconhecimento).  Além  disso,  uma terceira  situação  é  aquela  em  que  o  autor  do  evento  catastrófico  que  vai  ser cometido por ignorância, antes de consumá-lo, reconhece a vítima, sendo que essa situação,  na  verdade,  por  não  chegar  a  configurar  a  desgraça,  não  chega  a  ser trágica. É o caso, por exemplo, da ameaça de morte que não se concretiza tal como se vê no personagem Hêmon contra seu pai Creonte na peça Antígona.
Aristóteles considera melhores as tragédias nas quais o herói pratica a ação sem conhecimento e reconhece apenas depois de praticá-la. Em seguida, passa ao exame dos caracteres que devem estar contidos na tragédia: “a peça terá caráter se, como  dissemos,  as  palavras  ou  ações  evidenciam  uma  escolha;  ele  será  bom  se esta  for  boa”.  A  regra  se  aplica  aos  personagens:  “mesmo  uma  mulher  ou  um escravo podem ser bons, embora talvez a  mulher seja um ser inferior e o escravo, de todo em todo, insignificante”.
Para  o  sucesso  da  tragédia  e,  em  decorrência  do  próprio  princípio  da verossimilhança  os  caracteres  não  devem  ser  apenas  bons  (pois a  tragédia  é uma representação  de  seres  melhores  do  que  somos),  mas  devem  ser  adequados  aos personagens. Daí decorre que a virilidade, por exemplo, não é, para Aristóteles, um caractere apropriado para o papel da mulher. Os caracteres devem obedecer a um padrão  de  semelhança  e  constância,  ou  seja,  devem  ser  semelhantes  aos caracteres que aparecem na tradição dos poemas trágicos e mesmo a inconstância característica de um personagem deve ser “constante na inconstância”. Como tudo na tragédia, os caracteres devem se submeter à verossimilhança e necessidade, ou seja,  devem  sempre  ser  necessários  ou  prováveis  no  arranjo  das  ações,  tudo  de modo  em  que  a  seqüência  das  ações  se  justifique  no  fato  que  se  passou,  que  as ações ocorram porque são necessárias ou prováveis na estrutura do enredo.
Com  base  nessas  ponderações  Aristóteles  critica  o  desfecho  dado  por  Eurípides  na  tragédia  Medéia,  qual  seja,  a  utilização  de  um  elemento  exterior,  um  deus  “ex-machine”, um  mecanismo  que  põe  fim  ao  mito  (fábula).  No  caso,  trata-se  da  aparição  de  Apolo  que  salva  a  Medéia  em  um  carro  de fogo.  De  fato, a  melhor tragédia para Aristóteles é aquela na qual o desenredo da fábula decorre da própria fábula: as ações são estruturadas de forma que, por verossimilhança e necessidade, delas  decorre  o  desfecho.  Além  disso,  Aristóteles  esclarece  que,  sendo  a  tragédia uma  representação  de  seres  melhores  do  que  somos,  o  poeta  trágico,  partindo  de particularidades  que  se  assemelham  com  o  original,  deve  retratar  tais particularidades de forma mais bela.
Assim, esclarece, ainda, que toda a tragédia tem um enredo (nó, “desis”) e o desfecho (desenlace, “luzes”): o enredo é composto pelos fatos passados do início até  a  última  parte  antes  da  mudança  de  situação  de  herói  trágico  da  felicidade  ao infortúnio (reviravolta), e o desfecho, inicia-se nesta mudança e segue-se até o final da  tragédia.  O  desfecho  deve  seguir-se  logicamente  ao  enredo.  A  isso  Aristóteles acrescenta a existência de quatro tipos de tragédia, a saber:
a)  complexa (que contém peripécia e reconhecimento);
b)  patética (de efeitos lentos);
c)  de caráter
d)  de monstros (episódicas)
Salienta,  contudo,  que  a  boa  tragédia  deve  tentar  abranger  todos  os  tipos  e evitar, sempre, cair em um estrutura épica, identificada como uma multiplicidade de fábulas  tal  como  ocorre  na  Ilíada  de  Homero.  Ao  contrário,  a  atenção  do  poeta trágico deve estar voltada para as peripécias e ações singelas, através das quais é possível  despertar  a  emoção  trágica  e  os  sentimentos  de  humanidade: “isso  se  dá quando  o  herói  hábil,  porém  mau,  sai  logrado,  como  Sísifo,  e  o  valente,  porém iníquo, sai vencido. Tal desfecho é verossímil, no dizer de Agatão, pois é verossímil que aconteçam muitas coisas inverossímeis”.
Explicitados  os  componentes  e  as  partes  integrantes  da  tragédia  Aristóteles se dirige, então, à questão da linguagem (fala, elocução) e do pensamento (idéias). Esclarece que o assunto das idéias, o pensamento, deve ser relegado aos tratados de  retórica  (arte  da  persuasão)  e  limita-se,  assim,  na  poética,  a  examinar  a linguagem, sustentanto que “é  matéria das idéias tudo quanto se deve deparar por meio da palavra”.
Como esclarece Costa
Definido  como  tudo  o  que  pode  ser  produzido  pela  linguagem,  o  pensamento  valoriza  a  função  pragmática  da  língua,  à  medida  que,  por  meio  dela,  com  as  falas  das  personagens,  consegue  atingir  efeitos  específicos aos quais visa e não conseguiria produzir apenas com as ações  brutas, não acompanhadas de comentário. Esses efeitos são o demonstrar e  o  refutar,  o  suscitar  emoções  violentas  –  piedade,  temor,  cólera  e  outras congêneres  –  e,  ainda,  amplificar  e  reduzir  o  valor  das  coisas.  Entretanto, produzir tais efeitos no drama é diferente do que produzi-los na retórica; no drama (‘poesia’, arte poética), eles devem resultar essencialmente da ação sem  necessitar  de  interpretação  explícita,  ao  passo  que,  na  retórica, resultam  apenas  do  discurso,  ou  seja,  da  palavra  que  expressa  o pensamento do orador.
Já  no  tocante  à  linguagem  (elocução),  após  fazermos  um  minucioso  estudo da  língua  grega,  dividindo o  todo  da  linguagem em partes:  letra,  sílaba,  conjunção, nome,  verbo,  artigo,  flexão  e  proposição,  Aristóteles  salienta  a  necessidade  de equilíbrio no uso das metáforas. Sustenta que o equilíbrio da linguagem consiste em sua  clareza  e  elevação.  A  nobreza  da  linguagem  e  sua  distinção,  ocorre  pelo emprego  de  “termos  surpreendentes”  e  como  tais  são  considerados  “a  metáfora,  o alongamento e tudo que foge ao trivial”. Todavia, os excessos são condenados: uma composição  feita  apenas  por  metáforas  se  transforma  num  enigma,  aquela  que utiliza  apenas  termos  raros  torna-se  um  estrangeirismo  e  por  isso  é  preciso “fundir esses  processos”. O  poeta  trágico  deve  saber  utilizar  as  metáforas  e  ao  mesmo tempo  utilizar  termos  correntes  que  darão  clareza  ao  texto.  Além  disso,  Aristóteles aponta  os  alongamentos,  encurtamentos  e  modificação  das  palavras  como elementos  que  contribuem  para  a  distinção  da  linguagem,  mas  que  devem, igualmente, ser utilizados com parcimônia, concluindo: “é importante o uso criterioso de  cada  um  dos  citados  recursos,  dos  nomes  duplos,  bem  como  dos  raros,  mas muito  mais  a  fertilidade  em  metáforas”.  Unicamente  isto  não  se  pode  aprender  de outrem e é sinal de talento natural, pois ser capaz de belas metáforas é ser capaz de aprender as semelhanças.
Com estes conceitos, Aristóteles encerra, na Poética, os capítulos destinados à  teoria  da tragédia,  passando,  em  seguida,  ao  exame  da epopéia,  a  quem dedica uma  parte  menor.  A  epopéia  é  identificada  como  “a  imitação  narrativa  metrificada”que  tal  como  a  tragédia  se  compõe  de  fábulas,  também  de  forma  dramática  em torno  de  uma  só  ação  inteira  e  completa,  com  início,  meio  e  fim  mas  que  não  se identifica com as narrativas históricas, onde as coisas não se passam em uma ação única,  mas  sim  num  espaço  de  tempo  em  que  se  conta  o  que  ocorreu  a  uma  ou mais pessoas ligadas por um nexo fortuito. Por isso, a epopéia deve ter as mesmas espécies  que  a  tragédia:  simples,  complexa,  de  caráter  ou  patética  e  deve  ter  os mesmos  componentes  da  tragédia,  exceto  a  melopéia  (canto)  e  o  espetáculo.  “[...] ela  requer,  com  efeito,  peripécias,  reconhecimento  de  desgraças;  ademais  os pensamentos e a linguagem precisam ser excelentes”.
Todavia,  esclarece  Aristóteles  que  a  epopéia  e  a  tragédia  diferem  na extensão  da  composição  e  no  metro.  A  epopéia  é  uma  narrativa  e  justamente  por isso  nela  é  possível  representar  muitas  partes  simultâneas,  ao  contrário  do  que ocorre  na  tragédia.  O  metro  adequado  à  epopéia  é  o  heróico,  por  ser  o  mais pausado  e  amplo,  possibilitando  o  uso  das  metáforas.  Para  Aristóteles  a  “imitação narrativa” que faz uso de termos raros e metáforas é melhor que as outras.
A  isso  acrescenta  que,  como  na  epopéia  não  se  vê  o  ator,  ela  é  o  terreno  mais próprio para o irracional, pois o irracional representado (o que ocorreria numa  tragédia)  tende  à  comicidade.  Por  isso  a  epopéia  se  presta  ao  paralogismo  e  Homero é identificado por Aristóteles, nesta área, como o poeta maior. Na epopéia “quando plausível, o impossível se deve preferir a um possível que não convence” e  justamente  por  isso  a  linguagem  deve  ser  esmerada  sem,  contudo,  ofuscar  os  caracteres  e  pensamentos.  Para  Aristóteles,  portanto,  a  importância  da  verossimilhança é relativizada ao poema épico.
Aristóteles trata, em seguida, das formas de imitação (mimesis) que podem se dar:
a)  pela reprodução dos originais tais como eram ou são;
b)  pela  reprodução  dos  originais  pela  sua  aparência,  como  se  diz  que  eles são ou pelo que se parecem;
c)  pela reprodução dos originais como eles deveriam ser.
Aliado  a  isso,  sustenta  que  existem  dois  tipos  de  erros  que  podem  ser apontados  na  poesia:  o  erro  na  poética  (erro  essencial  –  erro  de  arte)  e  o  erro acidental.  Assim,  quando  a  imitação  do  original  for  fracassada  porque  o  poeta  não consegue  imitá-lo  por  incapacidade,  a  hipótese  é  de  erro  poético,  ou  seja,  erro  de arte. Todavia,  se  o  erro  se  dá    na  concepção  do  original  (como no  caso  de  querer representar um cavalo movendo as  duas patas do lado direito ao mesmo tempo) ou quando  trata  erroneamente  de  uma  ciência  em  particular  ou,  ainda,  cria  coisas impossíveis, tem-se a hipótese do erro acidental.
Prossegue  examinando  a  questão  da  crítica  da  mímesis,  que  pode  ser  feita  sob cinco ângulos:
1)  impossibilidade;
2)  irracionalidade;
3)  maldade;
4)  contradição;
5)  violação das regras da arte.
Destaca  que  o  impossível  se  justifica  pelos  efeitos  da  representação  e  o  campo  da  mimesis  não  se  limita  ao  da  verdade,  mas  sim  ao  do  possível.  Nesse  sentido,  a  inserção  do  impossível  na  poesia  é  admitida  se  através  dele  o  poeta  consegue chegar a efeitos mais surpreendentes o que, em síntese, é a finalidade da  própria arte. Assim, numa representação desse tipo, ainda que haja erro, a arte está  salva.
Como  esclarece  Costa,  “a  gravidade  do  erro  deve  ser  avaliada:  se  atinge  a essência  da  arte  ou  é  apenas  acidental  no  poema.  Será  menos  grave  ignorar  que uma  corsa  não  tem  galhos  do  que  representá-la  de  uma  forma  não  artística,  como uma forma irreconhecível, deficiente do ponto de vista da mimese”.
Para Aristóteles, “do ângulo da poesia, um impossível convincente é preferível  a  um  possível  que  não  convence”. De  outro  lado,  no  que  diz  respeito  às  contradições  é  preciso  identificar  se  o  poeta  contradiz  suas  próprias  palavras  ou aquilo  que  uma  pessoa  inteligente  supõe  através  do  exame  das  expressões  e  das  refutações dialéticas. Além disso, o poema pode ser criticado pelo absurdo ou pela  maldade quando forem usados desnecessariamente pelo poeta.
A  Poética  é  finalizada  pela  resposta  à  indagação  de  qual  seria  a  melhor  imitação, se a épica ou a trágica. Aristóteles não exita ao sustentar que a tragédia é a  melhor  arte  mimética  porque  ela  contém  todos  os  méritos  da  epopéia  e  a  eles acresce  a  música  ao  espetáculo  “partes  de  não  mesquinha  importância,  por  meio das quais se efetua com muita viveza. Ademais, tem viveza quer quando lida, quer quando é encenada”. Além disso, atinge a imitação numa extensão menor de tempo e  com  mais  unidade  e,  por  atingir  melhor  o  seu  fim  é,  na  visão  de  Aristóteles, superior à epopéia.
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Fonte:
CÉSAR VERGARA DE ALMEIDA MARTINS COSTA:  “DIREITO E LITERATURA:  A COMPREENSÃO DO DIREITO COMO ESCRITURA  A PARTIR DA TRAGÉDIA GREGA”. (Dissertação  apresentada  como  requisito parcial  para  a  obtenção  título  de  Mestre, 
Nota:
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As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
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