
O desejo em Freud
A noção de desejo, desde antes do advento da
psicanálise, sempre suscitou reflexões filosóficas e psicológicas dentro de
qualquer conjunto de formulações conceituais a respeito do ser humano e de suas
relações: com o mundo, com o outro, e consigo mesmo. No final do século XIX,
com o início do movimento psicanalítico, uma concepção de desejo foi sendo
estruturada a partir das observações indiretas e do s estudos acerca do
inconsciente. O termo desejo (em alemão, Wunsch) está presente desde as
primeiras formulações freudianas. Contudo, sua definição mais detalhada
encontra-se n a segunda parte da obra “Interpretação dos sonhos” (1900).
No início dessa obra, Freud (1900) declarou que
os sonhos na verdade são realizações de desejos inconscientes. Ao aprofundar
sua pesquisa, ele descobriu que muitos desses desejos são oriundos da infância
e tentou com isso lançar uma luz à teoria dos desejos, procurando desvendar de
que maneira eles são formados no aparelho psíquico.
Freud argumentou que nos seus primórdios, antes
de atingir o estágio de desenvolvimento que hoje conhecemos, o aparelho
psíquico lançava mão de certos mecanismos para que se mantivesse o mais livre
possível de estímulos:
Conseqüentemente,
sua primeira estrutura seguia o projeto de um aparelho reflexo, de modo que
qualquer excitação sensorial que incidisse nele podia ser prontamente
descarregada por uma via motora. (FREUD, 1996[1900], p. 594).
Entretanto, segundo o autor, as exigências da
vida são bem mais poderosas do que esse simples mecanismo, e são a elas que
devemos o progresso do aparelho. Se não fosse por isso, o aparelho psíquico não
teria evoluído.
Tais imperativos aparecem sob a forma de
necessidades somáticas vitais, como a fome e a sede. De acordo com Freud
(1996[1900], p. 594), “as excitações produzidas por necessidades internas
buscam descarga no movimento, que pode ser descrito como uma ‘modificação
interna’ ou uma ‘expressão’.” Tomemos como exemplo um bebê faminto. Quando esse
grita ou dá pontapés, carecendo de comida, tais comportamentos em nada alteram
sua situação. Isso ocorre porque a excitação produzida por uma necessidade
interna não é devido a uma força que causa um impacto momentâneo, mas, sim, em
decorrência de uma força que se manifesta continuamente.
Uma mudança só pode ocorrer caso se vivencie uma
“experiência de satisfação” que coloque um fim ao estímulo interno (no caso do
bebê, isso pode ser obtido através do auxílio materno). “Um componente
essencial dessa vivência de satisfação é uma percepção específica (a da
nutrição, em nosso exemplo) cuja imagem mnêmica fica associada, daí por diante,
ao traço mnêmico da excitação produzida pela necessidade.” (FREUD, 1996[1900],
p. 594). O resultado desse elo estabelecido é que, na próxima vez em que o bebê
estiver com fome, “surgirá de imediato uma moção psíquica que procurar recatexizar
a imagem mnêmica da percepção e reevocar a própria percepção, isto é, r
estabelecer a situação da satisfação original.” (FREUD, 1996[1900], p. 595). Um
impulso dessa natureza é o que Freud chamava de desejo; o ressurgimento da
percepção é a realização do desejo e a trajetória mais curta para essa
realização, segundo Freud (1996[1900], p. 595) : “é a via que conduz
diretamente da excitação produzida pelo desejo para uma completa catexia da
percepção.” Freud argüiu que não existem muitas objeções para se pensar que, no
passado, houve um estágio primitivo do aparelho psíquico onde esse caminho era
com certeza percorrido, ou seja, uma trajetória em que o desejo terminava em
alucinação. Isso posto, pode-se dizer que o objetivo dessa primeira atividade
psíquica era produzir uma “identidade perceptiva” (algo semelhante a uma
“experiência de satisfação”), uma repetição da percepção que se achava
conectada com a satisfação da necessidade. Freud desenvolverá essa idéia mais
adiante em suas obras. Tais elucubrações resultarão na formulação dos dois princípios
de funcionamento do aparelho psíquico: o princípio de prazer e o princípio de
realidade.
As exigências da vida podem ter transformado
essa atividade primitiva do pensamento em algo secundário. Ao se estabelecer
uma identidade perceptiva ao longo do curto caminho através da regressão, no
interior do aparelho, o resultado apresentado seria diferente daquele que
ocorre em outras partes da mente, caso catexia (investimento libidinal) da
mesma percepção viesse do exterior. A satisfação não é obtida, e a necessidade
persiste.
Freud (1996[1900], p. 595), pondera que:
A catexia
interna só poderia ter o mesmo valor da externa se fosse mantida
incessantemente, como de fato ocorre nas psicoses alucinatórias e nas fantasia
da fome, que esgotam toda sua atividade psíquica no apego ao objeto de seu
desejo.
A fim de se evitar um dispêndio maior de energia
psíquica, deve-se deixar de lado a regressão, ficando-se apenas com a imagem
mnemônica , antes que ela se complete. Dessa forma, outros caminhos devem ser
buscados para que se consiga a desejada identidade perceptiva que se configura
no mundo externo. A inibição da regressão e o desvio da excitação para o exterior
tornam-se objeto de um segundo sistema, que faz uso do controle voluntário, ou
seja, utiliza-se pela primeira vez o movimento para fins lembrados previamente
(a satisfação da necessidade, por exemplo).
Entretanto, Freud (1996[1900], p. 595-596)
arrazoa que
toda a
complexa atividade de pensamento que se desenrola desde a imagem mnêmica até o
momento em que a identidade perceptiva é estabelecida pelo mundo exterior, toda
essa atividade de pensamento constitui simplesmente um caminho indireto para a
realização de desejo, caminho esse que a experiência tornou necessário. O
pensamento, afinal, não passa do substituto de um desejo alucinatório, e é
evidente que os sonhos têm de ser realizações de desejos, uma vez que nada
senão o desejo pode colocar nosso aparelho anímico em ação.
Para o autor isso quer dizer que os sonhos,
tendo seus desejos realizados pelo caminho que leva à regressão, meramente
resguardaram um modelo desse mecanismo primitivo, que foi abandonado
posteriormente por ter se mostrado ineficaz. O que dominava a vida desperta, em
tempos ancestrais, quando a mente ainda era jovem e estava em desenvolvimento,
agora está banido para a vida noturna. Da mesma forma que as armas primitivas,
lanças, arcos e flechas, foram abandonadas pelos homens adultos e reapareceram
no quarto das crianças em forma de brinquedos, “o sonho é um ressurgimento da
vida anímica infantil já suplantada.” (FREUD, 1996[1900], p. 596). Esse modo de
funcionamento do aparelho psíquico, que foi suplantado na vida desperta, é
amplamente utilizado por aqueles que sofrem de distúrbios de natureza psicótica
“e então revelam sua incapacidade de satisfazer nossas necessidades em relação
ao mundo exterior.” (FREUD, 1996[1900], p. 596).
Recapitulando, pode-se supor que,
hipoteticamente, existiu um primitivo aparelho psíquico que lançava mão de
mecanismos para se ver livre do aumento de excitação que nele incidia e que
poderia vir a incidir. Dessa forma, ele é constituído de acordo com o formato
de um aparelho reflexo. O poder para efetuar um movimento é uma forma de
provocar alterações corpóreas internas, podendo assim o organismo descarregar a
excitação provocada. No que tange às conseqüências psíquicas de uma
“experiência de satisfação”, é certo que o acúmulo de excitação é sentido como
desprazer e esse acúmulo coloca o aparelho em ação com o objetivo de repetir a experiência de satisfação, que envolve um
decréscimo da excitação e foi sentida como prazer.
Veja-se ainda em Freud (1996[1900], p. 624-625):
A esse
tipo de corrente no interior do aparelho, partindo do desprazer e apontando
para o prazer, demos o nome de ‘desejo’; afirmamos que só o desejo é capaz de
pôr o aparelho em movimento e que o curso da excitação dentro dele é
automaticamente regulado pelas sensações de prazer e desprazer.
Dito de outra forma, o primeiro desejo parece
ter sido uma catexia alucinatória da primitiva lembrança de satisfação.
Contudo, as alucinações não se mostram suficientes para cessar a necessidade
provocada ou, por conseguinte, obter o prazer que se liga à satisfação.
Para que o organismo deixasse de lado esse
mecanismo primitivo e se pusesse em busca da satisfação da necessidade no mundo
externo , foi preciso que uma segunda atividade se tornasse imprescindível. Não
seria permitido que a catexia mnêmica avançasse tão longe quanto a percepção e
sujeitasse as forças psíquicas a continuarem com a alucinação. Ao invés
disso, tais forças seriam desviadas por uma
trajetória indireta que, “em última análise, através do movimento voluntário,
alterasse o mundo externo de tal maneira que se tornasse possível chegar a uma
percepção real do objeto de satisfação .” (FREUD, 1996[1900], p. 625).
Como se pode observar, o conceito de desejo em
Freud é um tanto complexo, e de uma explanação nem um pouco simples. Em auxílio
da tarefa de definir e aprofundar o conceito freudiano de desejo, recorrer-se-á
ao dicionário de psicanálise de Luis Alberto Hanns (1996). Nessa obra, ele
diferencia as significações possíveis do termo desejo em alemão e em português,
mostrando sua conexão com o termo utilizado pela psicanálise e em quais obras
de Freud ele aparece, esclarecendo-o melhor. É interessante notar como o termo,
mesmo em sua definição léxica e tendo muito de seu sentido perdido pela
tradução do alemão, se assemelha à conotação psicanalítica.
Hanns (1996, p. 137) explica que
em
português a palavra ‘desejo’ e em alemão o termo Wunsch podem ser utilizados como ‘mediadores’ entre o que o
sujeito ‘quer’ e a expressão social desse ‘querer’ na forma de ‘pedido’.
Ameniza m socialmente o ‘querer’. [...] Wunsch
e ‘desejo’ também são utilizados para expressar algo menos imediato, objetos
que se apresentam para o sujeito como um ‘ideal’, algo ‘sonhado’, portanto mais
distante.
Agora, ver-se-á como o autor expõe a maneira
pela qual o termo se desenvolve em Freud e a que outros conceitos ele se
vincula, compondo assim sua definição já explicitada nos parágrafos
precedentes.
De acordo com Hanns (1996, p. 143), Freud tende
a utilizar para o termo ‘desejo’ (Wunsch) a palavra ‘realização’ (Erfüllung
) e para ‘pulsão’ ( Trieb) a palavra ‘satisfação’ ( Befriedigung).
Muito raramente emprega o termo ‘satisfação’ ( Befriedigung) em conexão
com ‘desejo’ ( Wunsch). A palavra ‘realização’ ( Erfüllung ) como
também a palavra ‘desejo’ ( Wunsch), pertencem à esfera do idealizado,
do almejado e do onírico. [...] A palavra Befriedigung se refere
geralmente à satisfação de uma necessidade (Bedürfnis ), a qual, se não
for satisfeita, deixa o sujeito inquieto e em sofrimento. O termo ‘satisfação’
( Befriedigung) contém a raiz fried-, referente a ‘paz’, e
significa literalmente ‘apaziguamento’. Designa algo que aplaca a
inquietude do estado de necessidade. De modo geral, a Erfüllung apela
para o investimento (catexia) ao nível da imaginação e da representação
almejadas, e a Befriedigung aponta para vivências na imediaticidade do
corpo.
Essas explanações coadunam com o hipotético
funcionamento do aparelho psíquico primitivo (descrito por Freud) e o exemplo
do bebê,descrito nos primeiros parágrafos deste capítulo. A necessidade de
nutrição (pulsão oral) é saciada (satisfeita) através da mãe, que alimenta o
bebê, fazendo com que esse vivencie a “experiência de satisfação” (identidade
perceptiva) e acabe com o sofrimento desencadeado pela fome. Entretanto, como
se pode observar, Freud também utilizou a palavra satisfação (ao invés de
realização) para pensar sobre o surgimento do desejo (tomado nesse exemplo do
bebê como algo claramente almejado, distante, de caráter fantasioso, mas que também
aponta para uma carência imediata do corpo). Logo adiante, verificar-se-á que
existe certa correlação entre desejo e pulsão (e, conseqüentemente, entre
realização e satisfação).
No que concerne à relação entre desejo e objeto,
pode-se afirmar que o “objeto do desejo” é deixado para segundo plano nesses
acontecimentos. A impressão que se tem é que, para o bebê, não importa muito se
foi a mãe ou uma outra pessoa significativa que lhe deu alimento, desde que
suas necessidades sejam atendidas. O que parece relevante ao desejo (ou melhor,
neste caso, ao ser desejante) é a experiência alucinatória em si e não o que a
provocou, pois “o que fica na memória são vivências de prazer, de satisfação,
sua reevocação se faz pelo desejo (Wunsch), que visa um objeto ou
situação associada à vivência de prazer [...], objeto este cuja presença é
então alucinada. ” (HANNS, 1996, p. 144).
Para complementar:
Também aparece o objeto como se fosse o mediador
entre a necessidade [...] e a satisfação da necessidade [...]. É ele, o objeto,
que é evocado, mas o que o Wunsch [desejo] visa vai além do objeto: é
reconstituir a ‘vivência de satisfação’ [...] que está na memória. (HANNS, 1996
, p. 144).
Diante disso, pode-se dizer que é em decorrência
da busca por uma experiência alucinatória de satisfação que se torna impossível
a interrupção do desejo. Desta forma, ele pode ser entendido como uma busca
contínua, visando sempre reconstituir-se.
Como já foi assinalado anteriormente, Freud
percebeu uma conexão entre o ato de pensar, o desejo e alucinação. O pensamento
seria o herdeiro (um representante) do funcionamento primitivo da psique, e uma
de suas graduais mudanças reside no fato de que ele passou a se exprimir também
por palavras e não só por imagens.
Hanns (1996, p. 145) afirma que o ‘desejo’ ( Wunsch)
se relaciona com uma necessidade do objeto, cujo contato propiciou uma vivência
a qual é reevocada. Essa necessidade então tenta ser satisfeita pela
‘realização’ [...] (preenchimento) do desejo, realização esta imaginária ou
real. Enquanto imaginária, essa reevocação do objeto, ou da vivência, coloca o Wunsch
na esfera da ‘alucinação’ [...]. De um modo ou de outro, a memória é que é
ativada; abstraindo-se da realidade imediata, ela presentifica o objeto [...].
As esferas onde circula o desejo (Wunsch) são representacionais, há uma
contigüidade entre aquilo que é alucinado, desejado e pensado.
De acordo com essa linha de pensamento, como só
o desejo é capaz de pôr o aparelho mental em ação (e é isso que possibilita que
se vá atrás da realização dos desejos), ele tem por objetivo, como representante
ou representação psíquica da pulsão, alcançar a repetição da vivência primeira
de satisfação (ou um objeto que possa facilitar isso). As representações são
aquilo que permite criar idéias, desenvolver imagens e formas para o objeto que
o sujeito desejaria possuir. Pouco importa se esse objeto existiu de fato ou
não (afinal, se trata de uma experiência alucinatória), pois o que o sujeito
gostaria de fazer é reviver aquela experiência de prazer e completude vivida na
tenra infância. O objeto é um simples meio para isso.
Para reforçar tal idéia, veja-se esta passagem:
Wunschregungen [moção de desejo] são
representantes da pulsão (es tão em seu lugar, substituem-na) na medida
em que a representam no psíquico [...] Por outro lado, além de serem
‘representantes’ [...], os desejos são, por excelência, ‘representações’ [...]
(idéias, produções internas de imagens) na medida em que fornecem forma e
imagem (representando imageticamente as atividades, as sensações e os objetos
aos quais as pulsões se dirigem).
Evocam um objeto que o sujeito deseja possuir,
tocar, incorporar. (HANNS, 1996, p. 146).
Na realidade, o desejo não é o representante por
excelência ou um dos representantes psíquicos da pulsão. Entretanto, o desejo e
a pulsão, assim como a moção (movimento) de desejo e os representantes
psíquicos pulsionais, têm funcionamento análogo. Os objetivos dos dois são os
mesmos: realizar-se ou satisfazer-se por completo. Vem daí a dificuldade de
conceituá-los de forma precisa e distinta. Como se pode observar pelo texto,
mesmo o autor Luis Hanns parece não distingui-los sem cometer equívocos.
A despeito da impossibilidade de sua remoção, o
desejo manifestado sob uma forma semelhante à da representação pulsional pode
sofrer vários tipos de bloqueios, desde mecanismos de defesa muito bem
elaborados até o mais simples desinvestimento objetal. Não obstante, nossa
atenção estará centrada no desejo recalcado (e/ou reprimido), ou melhor, no
processo denominado recalcamento e no processo cognominado repressão. A seguir,
discorrer-se-á sobre esse procedimento, mais detalhadamente, e sua conexão
inerente à noção de desejo aqui apresentada.
---
Fonte:
Fonte:
Tarso Ferrari Trindade: “A CRIAÇÃO EM DOIS
MOMENTOS: DIÁLOGOS ENTRE FREUD, D
ELEUZE E GUATTARI”. (Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Psicologia – Estudos da
Subjetividade do Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Psicologia.
Linha de pesquisa: Subjetividade e Clínica. Orientadora: Profa. Teresa Cristina Othenio
Cordeiro Carreteiro. Coorientadora: Profa. Cristina Mair Barros Rauter).
Niterói, 2007.
Notas:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Disponível digitalmente no site: Domínio Público
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