LEOPARDI, CRÍTICO DA MODERNIDADE: UMA HIPÓTESE INTERPRETATIVA



Leopardi, crítico da Modernidade: uma hipótese interpretativa

O protesto leopardiano contra o presente não se exprime, unicamente, sob a determinação de uma crítica à cultura. No Discurso sobre o estado atual dos costumes dos italianos (Discorso sopra lo stato presente dei costumi degl’italiani), escrito em 1824, Leopardi reflete sobre a especificidade da modernização na Itália em comparação a outras nações: a França, Inglaterra e Alemanha. Nesse escrito, como afirma Salvatore Veca, “Leopardi, mesmo com modestas experiências sociais, conseguiu apreender, com profundidade e acuidade, os limites do ‘costume’ civil italiano: o individualismo, a dependência de uma classe atrasada de ‘proprietário’, a falta de circulação cultural, a ausência de honra”. Segundo Veca, o que mais desperta a atenção neste escrito é, porém, a identificação realizada por Leopardi da base destes males com a “falta de desenvolvimento da estrutura econômica (capitalista) do País”.

Leopardi indaga como as sociedades modernas puderam sobreviver ante o vazio deixado pelo processo de civilização no “estado presente dos povos” (stato presente dei popoli), destruídor de “crenças” (credenze), de “opiniões” com base nas quais se fundamentam os princípios morais e do “exercício da virtude” (esercizio della virtùa). Por conseguinte, com o desaparecimento das crenças e paixões vitais, ou seja, as “ilusões” (illusioni), foram afetadas até aquelas constituidoras da sociedade, pertencentes a princípios e valores éticos. Em outras épocas, tais “ilusões” (illusioni) serviam para afugentar o tédio da vida humana, mas no estado presente tornaram-se escassas.

De que modo pode-se reparar as degenerescências produzidas pela vida moderna? “Nessa dissolução universal dos princípios sociais, nesse caos que realmente amedronta o coração do filósofo e o coloca em grande dúvida sobre o destino das sociedades civilizadas e em grande incerteza sobre como elas poderão subsistir no futuro”. As grandes “ilusões” (illusioni) foram extintas em todas as nações civis modernas mais avançadas como a Alemanha, a Inglaterra, a França –, mas por razões talvez climáticas e étnicas ou mesmo histórico institucionais – possuem “um princípio conservador da moral e, portanto, da sociedade, que conquanto pareça mínimo e quase vil, com respeito aos grandes princípios morais e de ilusão que se perderam, produz, contudo, grandíssimo efeito. Este princípio é a sociedade mesma”.

Leopardi compreende aqui o “princípio” (principio) da sociedade como uma vida de relações mais estreitas entre os indivíduos para prover as próprias “necessidades” (necessità) e se defender em comum contra os “danos” (danni) e os “perigos” (pericoli). Tal “princípio” conduz a uma vida de relações mais reguladas, uniformes, evoluídas e dotadas de todos os simulacros de ilusões sociais, podendo engendrar: a “ambição” (ambizione), a “honra” (onore), a “conversação” (conversazione), a “opinião pública” (opinione pubblica).

Segundo o Discorso, outrora foi o “desejo de glória” (desiderio di gloria) uma “paixão” (passione) bastante comum. No estado presente das nações, ela é algo muito nobre, forte e vivo “para ter lugar entre a pequenez das idéias e das paixões modernas, restritas e reduzidas a termos limitadíssimos e a grau baixíssimo pela razão geométrica e pelo estado político das sociedades”. É provável que a “glória” (gloria) possa se compadecer com semelhante “estado de frieza” (stato di freddezza) e “mortificação” (mortificazione) produzidos na vida civil moderna.

Para Leopardi, a glória é uma “ilusão demasiado sublime e um nome demasiado nobre para que possa durar após o sacrifício das ilusões e o conhecimento da verdade e realidade das coisas, de seu peso e valor”. Daí o “amor pela glória” (amore della gloria) ser incompatível com a “natureza dos tempos presentes” (natura dei tempi presenti), é tão obsoleto quanto os “usos” (usi) e as “falas antiquadas” (voci antiquate). Com o desaparecimento das “ilusões da antigüidade” (illusioni della antichità). No estado presente moderno se apresentam apenas simulacros de ilusões, pois tão pouco elevadas e vivas.

Em tais países não se faz o mal, ou se evita por dever, mas por educação, não por obediência a qualquer imperativo moral ou religioso, mas em razão das convenções, do “bom tom” (buono tuono) e das “conveniências sociais” (convenienze di società). A ética, portanto, cede o lugar para o “bom tom” (buono tuono), pois é “o único fundamento que resta aos bons costumes e que os bons costumes, não são praticados com outro fim”. Trata-se, portanto, da única garantia dos “costumes tanto públicos quanto privados”.

Quanto a Itália, Leopardi defende ser os italianos, da época da revolução em diante,

tão filósofos, tão racionais e geométricos quanto os franceses e (...) qualquer outra nação (...) quanto ao abandono das crenças antigas, a nação italiana, tomada conjuntamente e comparada com outras nações, classe a classe, encontra-se aproximadamente no nível de qualquer outra nação mais civilizada ou mais instruída da Europa ou da América. Por consequência, ela carece, nesse sentido, tal como as outras, dos fundamentos, dos verdadeiros vínculos e princípios conservadores da sociedade”.

Não obstante tal proximidade com as outras nações quanto à ausência de tais liames e princípios, a Itália carece de “sociedade estrita” (società stretta) semelhante às das demais nações.

Segundo     Leopardi,   “a      vida  dos    italianos     é precisamente esta, sem perspectiva de uma sorte futura melhor, sem ocupação, sem propósito, e restrita apenas ao presente”. A Itália representa um caso particular, um caso isolado: se comparada com a situação histórica das outras nações européias.

“A perpétua e plena dissimulação de que cada um se vale no trato com os outros, com respeito às palavras e às ações, em uma sociedade restrita, e de que cada um é obrigado da mesma forma a se valer continuamente no trato com todos os outros engana, sob certo aspecto, o pensamento e mantém, de qualquer forma, e quanto for possível, a ilusão da existência. Em uma sociedade restrita, até mesmo o homem mais intimamente convicto, pelo raciocínio e mesmo pelo sentimento, de sua própria futilidade, da frivolidade alheia, da inutilidade da vida e das fadigas, da não importância dessa sociedade, até mesmo o mais perfeito filósofo em meditação não pode jamais deixar, não só de não conter-se em ato, como se o mundo valesse mesmo alguma coisa, mas nem mesmo de evitar que uma parte de seu intelecto guerreie contra a outra, afirmando que as coisas humanas merecem algum cuidado e, guerreando, não convença confusamente a pessoa da referida coisa, a despeito de sua própria convicção. A imaginação que por natureza nos leva a conceder algum valor à vida tem um pascigo na sociedade restrita e a capacidade de conservar alguma parcela de sua ação e influência sobre o homem”.

Outra, porém, é a situação histórica da Itália, pois estão ausentes esses elementos pertencentes a convivência numa “sociedade estrita” (società stretta).

Leopardi reconhece, na situação presente, não obstante a inferioridade da cultura filosófica, a Itália é o país mais filosófico de todos:

“na prática, e, em parte no intelecto, são muito mais filósofos que qualquer filósofo estrangeiro, pois que eles são muito mais familiarizados e, por assim dizer, convivem e se identificam com aquela opinião e conhecimento que é a soma de toda a filosofia, isto é, o conhecimento da vacuidade de todas as coisas e de acordo com esse conhecimento, que neles é antes opinião ou sentimento, são inteira e efetivamente conformados, ainda mais que as outras nações”.

Em tal país a vacuidade e nulidade da vida não estão ausentes, mas se apresentam como tais, uma vez que falta qualquer liame na sociedade. Segundo Leopardi, é equivocado pensar que a cética França seja, em virtude do desencantamento do período da Luzes, o país mais cínico, pois o primado do cinismo pertence a todas as classes italianas. “As classes superiores da Itália são as mais cínicas (...) O populacho italiano é o mais cínico dos populachos”. Isto se deve a ausência de sociedade na Itália: algo difícil de um estrangeiro compreender as maneiras sociais ordinárias comuns aos italianos.

Para o autor, a indiferença desse povo decorre de tais disposições: uma característica dos italianos, quando comparados, nessa época, a outros povos modernos. Daí, estarem o escarnecimento e o desprezo mútuo, presentes no pouco de conversação verdadeira na Itália. Isso se justifica, igualmente, “onde todos estão armados e combatem uns contra os outros, é necessário que cada um cedo ou tarde se decida e aprenda a armar-se e combater, do contrário será oprimido pelos outros”. Pouco civilizada se comparada a nações cultas como a França e a Inglaterra, mas não em relação a Espanha, Polônia, Portugal e a Rússia. No entanto, a Itália é muito civilizada para se beneficiar de sociedades mais atrasadas.

Leopardi mantém também no Discorso a sua concepção negativa da civilizaçã em si mesma. “Talvez se poderá discutir, e não pouco, se a civilização antiga deva ser anteposta ou posposta à moderna, quanto à felicidade, tanto do homem quanto dos povos, e à virtude, valor, vida, energia e atividade das nações”. Ele critica a maneira bastante enganosa de se considerar “a civilização moderna como a que liberta a Europa do estado antigo”. Trata-se, portanto, de um “falso conceito” (falso concetto) que corrói, de forma geral, “o juízo e o modo de pensar a História e as vicissitudes do gênero humano e das nações, e é um erro ou um equívoco primário que perturba e subverte toda a idéia que um filósofo pode conceber à larga sobre a referida História e sobre os progressos e andamento do espírito humano”.

Leopardi reconhece a importância que tem a imaginação, pois ela alimenta a vida humana para afugentar o tédio. É uma faculdade que conserva no homem parte da sua ação e da sua influência. Tal faculdade não tem lugar, entretanto, na situação em que se apresenta a “dissipação diária e contínua, sem sociedade”. Ele identifica este estado de coisas como algo que constitui o presente da convivência social dos italianos, onde prevalece o tédio, em razão da inexistência de vida interna do ânimo, mas apenas uma vida desocupada, sem grandes fins ou interesses. Resta somente o tédio diante da impossibilidade de vida ativa no presente. Daí Leopardi indagar: como revitalizar as ilusões nesta condição? Este “discurso” se apresenta no mesmo momento em que ele elabora a sua crítica às filosofias do progresso e da perfectibilidade – uma das expressões mais decisivas e radicais no “Diálogo de Timandro e Eleandro” (Dialogo di Timandro e Eleandro), que faz parte das Operette Morali.

O autor reconhece que só a civilização mais avançada é capaz de produzir os antídotos contra os seus próprios riscos, mas a Itália está mais desprovida de fundamentos a respeito da moral, do que qualquer outra nação civil européia. A sociedade que se teve na Itália foi de “danos aos costumes e ao caráter moral, sem vantagem alguma”. Isto decorre da “pouca sociedade” (poca società) e “pouca vida” (poca vita) que se teve na Itália, pois diferentemente da Alemanha não é nem uma nação, nem uma pátria.

Ante os rumos da civilização, destruidor dos antigos fundamentos necessários à vida civil, a Itália se apresenta “desprovida” (sprovveduta) de todo fundamento social, porque falta-lhe daqueles que “fez nascer e agora confirma, cada dia mais, com os seus progressos, a própria civilização, e perdeu aqueles que o progresso da civilização e das luzes destruiu”176. No esboço antropológico e moral de tal Discorso, Leopardi, ao tratar a precária situação da Itália, apresenta, em um primeiro momento, um forte senso histórico na compreensão do presente, sem dúvida, de uma Itália histórica, ou seja, a do seu tempo.

Ao lado da descrição do atraso social e cívico italiana, evidencia-se, em um segundo momento, uma reflexão que elege a modernidade como questão: as suas degenerescências e a necessidade de aprofundamentos de liames concretos de vida para enfrentar os danos e perdas decorrente dos rumos da civilização. Segue-se daí a imagem de uma Itália eterna com base em diversas características antropológicas, permenentes nas várias épocas e em cada uma delas até o presente. Em tal momento, apresenta-se uma Itália com valor mais simbólico: uma Itália “filosófica”, isto é, cética e cínica, que representa o futuro risco final da humanidade, incapaz de sobreviver diante da destruição da ilusões.

O pessimismo histórico de Leopardi decorre de uma posição “desesperada” ante a oposição entre a necessidade de vida, de sentimentos intensos e sociabilidade verdadeira e civil, de um lado, e a presença da desilusão resultante da constatação da impossibilidade de vida ativa, da ausência de virtudes, da perda das ilusões, de outro. Daí ser questionável reconhecer na posição leopardiana uma natureza “idílica”, como “fruto de uma disposição central da personalidade do poeta à contemplação, à introspecção totalmente solitária e destacada do atrito da história”, ou uma moral de puro “expectador à janela” (spettatore alla finestra), como se trata-se de um homem incapaz de participar da vida, mostrando-se vivo apenas na “liberação catártica da poesia” (liberazione catartica della poesia).

Leopardi estava atento aos problemas presentes na Itália e, igualmente, na Europa da “Restauração” entre os anos de 1818-1819. As suas canções “ À Itália” (All’Italia) de 1818 e “Sobre o monumento a Dante” (Sopra il monumento di Dante), do mesmo ano, exprimem a natureza do seu pessimismo, que lhe impele à necessidade de recuperar toda uma vida rica de atividades e vitalidade, recorrendo a épocas e povos em que faziam-se presentes, ainda, a prosperidade da vida civil e a vitalidade das caras ilusões. Este mesmo “pessimismo histórico” não exclui a presença de um forte sentimento “heróico”, que faz de Leopardi, nestas canções, um “poeta civil”. Ele indaga, na canção “Sobre o monumento a Dante” (Sopra il monumento di Dante), ao se confrontar com o estado presente no qual se encontrava o seu país:

“Por que nos são os tempos tão cruéis?
Por que o nascer nos deste ou, mais atrás,
Não nos deste o morrer,
Destino amargo? Vendo de infiéis

E estranhos nossa pátria serva e escrava
E uma lima mordaz
Roendo a sua força, uma saída,
Um mínimo conforto
dor malvada que a dilacerava Jamais lhe permitiste desfrutar.
Ai, não o sangue nosso e não a vida Tiveste, ó cara, e morto

Por teu destino cru não pude estar. Mais ira e dor meu peito não comporta: Lutou, caiu a parte mor dos teus: Mas pela quase morta
Itália não, pelos tiranos seus”.

Na canção intitulada “A Angelo Mai” (Ad Angelo Mai) de 1820, ele interpreta o seu próprio pessimismo ante a mísera “espiritualização” das coisas humanas,
consideradas quase como anulação:

(...) Ai, vem da dor, é sua posse, o

Cantar Itálico. Porém nos morde
Menos o mal que escava
Do que o tédio que afoga. Afortunado,

Tua vida viu o pranto! A nossa o ócio
Se prende desde o parto, e é guardada
Do berço à tumba pelo imóvel nada.

“Nossos     sonhos        formosos    onde  andam

(...) ?

Fugiram de repente,
E o mundo é uma pintura em parco mapa;
E eis que tudo é igual, e, descobrindo,
Só incha o nada. Apenas se intrometa,
O real não consente
O caro imaginar, e ele escapa
Da mente para sempre; seu infindo
Poder primeiro, ó tempo, apequenas,
E é morto o bálsamo de nossas penas” .

Nesta última, os Antigos assumem uma imagem paradigmática de vitalidade, que se expressa mediante sacrifícios, atividades, empresas, perigos, em suma, a
presença neles de um forte “heroísmo”:

(...)Meu Vittorio, não era este o teu

tempo e lugar. Pois outro chão e sorte
Merece o gênio. Este viver ocioso

Hoje basta-nos, guia-
Nos a mediocridade: desce o sábio
E sobe a turba a um nível já igual,
E o mundo cai. Descobridor famoso,
Traz os mortos ao dia,
Já que dormem os vivos; arma o lábio
Dos antigos heróis; e que afinal
Este tempo de lama a glória sonhe
cobice ter vida, ou se envergonhe”.

Por isso, o pessimismo leopardiano não se exprime como impedimento à ação combativa e de resistência diante das perdas e danos que se apresentam no estado social moderno.

A reflexão leopardiana sobre a infelicidade, mesmo que pressuponha um ponto de partida natural, segue uma compreensão da situação histórica presente: embora, tanto o estado social quanto o curso histórico estejam submetidos à ordem natural. O enfrentamento de Leopardi, em relação ao mundo moderno, dá-se com base na compreensão de realidade: “demonstro, enfim, com provas teóricas, e com provas históricas e de fato”. Isto lhe possibilitou reconhecer um maior grau de infelicidade no homem moderno. A chamada “perfectibilidade” do estado social, como distanciamento da natureza, não conduziu, portanto, à felicidade, mas aprofundou inúmeros males que reforçam a incivilidade.

Ao se reportar ao presente estado moderno, Leopardi indaga se a natureza podia racionalmente pôr “tão grandes, numerosos, incríveis obstáculos para a descoberta de um meio necessário e principal para obter aquela que nós chamamos perfeição e felicidade do gênero, isto é, civilização”. A observação da experiência moderna do progresso da civilização conduziu muito mais à incivilidade dos homens, à “barbárie” (barbarie) do que à autêntica perfectibilidade, presente apenas no estado natural.

O poeta reconhece na “perfeição moderna das artes” (moderna perfezione delle arti) “esforços” (fatiche) e “misérias” (miserie) necessários à obtenção da moeda para a sociedade: desde os trabalhos nas minas até o cunho. “Observai quantos homens são necessários para uma infelicidade estável e regular, para doenças, (...) mortes, (...) escravidão (ou gratuita e violenta, ou mercenária), para desastres, para misérias, (...) sofrimentos, (...) angústias de toda espécie, [a fim de] obter para outros homens este meio de civilização e pretenso meio de felicidade”.

Para Leopardi é inacreditável admitir-se ter a natureza posto como “princípio a perfeição e felicidade dos homens a este preço, isto é, o preço da infelicidade regular de uma metade dos homens”. Outrossim, a busca moderna de “civilização” (incivillimento) como perfeição de gênero humano, utiliza-se até da escravidão, “defendida por muitos e muitos políticos (...) como necessária ao ócio, à perfeição, ao bem, à civilização da sociedade”.

Inúmeros foram os desastres e os sofrimentos acumulados na busca incessante de civilização e de felicidade na vida civil moderna. Nesse sentido, Leopardi critica a forma da produção dos “objetos de luxo” (oggetti di lusso) para o “comércio” (commercio) que, efetivamente, não são “por si mesmo[s], nem necessários, nem úteis à vida”, mas, assim mesmo, terminam ampliados às custas de “infinitos sofrimentos à humanidade” (infiniti travagli all’umanità). A produção destes objetos em vez de conduzir à civilização e à perfeição, promoveu a incivilidade ou a “barbárie da sociedade” (barbarie della società). O poeta compreendeu, também, que o crescimento do mundo determinou, quanto ao indivíduo, o seu estreitamento. “Aplicai este pensamento aos mais diversos aspectos sob os quais se verifica que tendo crescido o mundo o indivíduo se tornou pequeno, tanto fisicamente, quanto moralmente”. Esta diminuição acabou afetando as próprias faculdades da mente humana, pois se tornaram pequenas “na medida em que, o mundo [cresceu] em relação a elas”.

Ao lado dos danos contra o indivíduo em razão do proceso de aperfeiçoamento social estão aqueles concernentes às “faculdades da mente” ( facoltà delle menti). Muitos “engenhos” (ingegni) extraordinários foram consumidos nesse processo: “engenhos” (ingegni) produzidos quase por “milagre” (miracolo) pela natureza. Tantos sumos “gênios” (geni) consumiram rapidamente, quer o corpo, quer as faculdades mentais. “A excessiva delicadeza dos órgãos deles os torna (...) mais fáceis de se consumirem, e mais fácil a se estragarem, permanecendo inferiores de faculdades com os orgãos menos delicados e mais imperfeitos”. Para Leopardi, a “perfeita civilização” (perfetta civiltà) não pode subsistir sem a “perfeita barbárie” (perfetta barbarie).

Leopardi compreendeu os danos do mundo moderno: sua forma de racionalidade que colocava em risco outras faculdade humanas; o predomínio de um modelo de saber que terminava danificando a dimensão poética; a destruição dos “sentimentos vivos”; a presença do egoísmo; a falsidade das filosofias do progresso e da perfectibilidade; a falsidade da “cultura espiritualista” decorrente da Restauração; a falsidade do trato social entre os indivíduos; a ostentação e o refinamento em detrimento da vida de outros indivíduos; os riscos contra a integridade humana: enfim a queda na barbárie. Para Leopardi seria impossível pensar a possibilidade de vida sem vivos afetos, imaginação, entusiasmo e, sobretudo, ilusões. Por isso ele recusava “a maldita afetação corruptora das belezas deste mundo”.

Leopardi descreveu o processo de racionalização e secularização do mundo moderno – quase um processo niilista, destrutivo e fatal – por causa do predomínio da “cognição do verdadeiro” (cognizione del vero). Não obstante, ele lançasse sobre “a modernidade um olhar que a desvela[va] [como] entregue totalmente a um intelectualismo inimigo da imaginação e da fantasia, e não hesita[sse] em indicar perspectivas totalmente desoladas e privadas de futuro”, não é este o seu parecer. Em verdade, Leopardi sabia da importância da “imaginação” (immaginazione) e das “ilusões” (illusioni) para a vida humana: embora desvelasse o sentido da condição humana e reconhecesse a vacuidade de todas as coisas, por conterem o nada como princípio e fim. Ele sabia, entretanto, da necessidade de se retomar a imaginação e as ilusões de forma rigorosa, numa “vida enérgica e móvel” (vita energica e mobile), pois só assim esta se tornaria “coisa viva e não morta” (cosa viva e non morta), caso contrário, “esse mundo se tornará um serralho de desesperados e, talvez, até, um deserto”. A retomada leopardiana da imaginação e das ilusões não significaria uma ultrapassagem de qualquer niilismo?

A lucidez de Leopardi diante dos problemas da vida social moderna inviabiliza identificá-lo tout court a um “pensador supra-histórico”. Em verdade, ele não busca uma “salvação” no desenvolvimento da história, valendo-se da crença nas idéias de “progresso”, “melhoramento” e “perfectibilidade”. Não se pode, igualmente, vincular o seu pensamento a uma doutrina da felicidade, pois o ponto de partida da sua reflexão é a impossibilidade de sua realização para todo ser vivo, mas sem qualquer posição resignada. A sua postura em relação à condição humana e aos rumos da modernização se exprime como força combativa e não conformista.

Quanto à virtude, Leopardi estava consciente de que no mundo moderno prevalecem a “fragilidade de ânimo”, os “sentimentos destrutivos”, e a carência de “espíritos virtuosos”. Ao atribuir à sua época a designação de “século morto” (secolo morto) ou “século altivo e tolo” (secol superbo e sciocco), ele teria compreendido as diversas perdas que tornavam a vida no seu presente invivível. Contudo, o poeta não se lança numa “penitência”, pois propõe, como indicam os versos La Ginestra (1845), o resgate de um “vero saber” (verace saper) e a solidariedade entre os homens (social catena) diante das ameaças da natureza e da destruição no tempo presente.

A preocupação leopardiana é a compreensão do que origina a infelicidade na vida humana. Outrossim, a sua insistência de compreender a origem da infelicidade humana e o pessimismo expresso pelo seu pensamento, não resultam de uma “decadência fisiológica”, pois criticava a todos os que buscavam identificar o teor de seu pensamento com o seu estado de ânimo e os seus males físicos. Nesse sentido, Leopardi afirma ser a sua “filosofia desesperada” uma posição que brota da coragem e do enfrentamento ante a experiência infeliz da existência humana. Não há no pensamento de Leopardi um descaso em relação à questão da existência, pois não é sufocada por um discurso “intelectualista” sujeita ao primado epistêmico.

O verdadeiro interesse da sua reflexão não é a coerência sistemática concernente ao estatuto filosófico de saberes e disciplinas, pois não há uma preocupação gnosiológica e epistêmica. Embora seja evidente a orientação filosófica que fundamenta tal reflexão, o pensamento sensístico e, em geral, iluminista francês, desde Montesquieu, Helvétius, D’ Holbach a Rousseau, é dificil, entretanto, indicar a cada momento as fontes. Além da presença fragmentária das citações no texto leopardiano apropriadas no decorrer da leitura, Leopardi não se preocupa em reconstruir as premissas histórico-filosóficas do seu “sistema”: embora remeta à filosofia moderna, não obstante a sua condenação das “luzes de hoje” (lumi d’oggidì).

Isto explica a sua necessidade e pressa de se envolver com a existência a fim de compreender a condição humana: a atenção com a realidade circundante mediante uma recepção espontânea. Não obstante a ausência de premissas ou impostação gnosiológica e lógica inicial, ou seja, a lacuna da construção lógico-sistemática, pode-se aqui pressupor temas centrais, que possibilitam a elaboração de uma exposição sistemática. Entre tais temas se destaca a idéia de Natureza, expressa em dois momentos: um ponto de partida fundamental para a compreensão da reflexão leopardiana. Não se trata de uma afirmação arbitrária, pois, em Leopardi, as considerações sobre o “sistema das coisas humanas” (sistema delle cose umane) ou a “teoria do homem” (teoria dell’uomo) pressupõe o “sistema da natureza” (sistema della natura): tema fundamental do segundo capítulo.


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Fonte:
Fábio Rocha Teixeira: “A CRÍTICA À MODERNIDADE EM GIACOMO LEOPARDI: EM BUSCA DE UMA ULTRAFILOSOFIA”. (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras   e   Ciências Humanas da Universidade de  São Paulo,  como requisito para obtenção do título de Mestre em Filosofia. Orientadora: Profª. Dra. Olgária C. Feres Matos). São Paulo, 2007
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Notas:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Disponível digitalmente no site: Domínio Público

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