“O burrinho pedrês”



“A história do burrinho Sete-de-Ouros contada pelo narrador principal transcorreu em apenas um dia da vida do personagem, das seis da manhã à meia-noite, intervalo durante o qual um grupo de boiadeiros conduziu uma boiada da Fazenda da Tampa até a estação de trem do vilarejo de Arraial, tendo como obstáculo o córrego da Fome, um afluente do Rio das Velhas. Esse dia seria normal caso a tropa de vaqueiros voltasse ilesa à fazenda. Todavia, o grupo, que na ida atravessara o rio sem problemas, foi surpreendido na volta por uma enchente. A tragédia aniquilou oito boiadeiros e aconteceu porque o grupo confiou na experiência do burrinho que lhe serviu de guia: como este resolveu atravessar o rio, os boiadeiros também decidiram fazer a travessia.

O narrador principal de “O burrinho pedrês” (1984, p. 17-79) conta que Sete-de-Ouros era um burrinho “miúdo e resignado” e havia tido vários donos e diversos nomes, até se tornar animal de estimação do Major Saulo, proprietário da Fazenda da Tampa. No dia em que ocorreu o episódio fatídico, a existência de Sete-de-Ouros já tomara outro rumo: ele passara de corajoso, valente, audacioso, como era visto na juventude, a acomodado e tranqüilo, encontrando-se, então, em idade avançada. Segundo o narrador principal do conto, um dia é tempo suficiente para se conhecer a “estória” do burrinho Sete-de-Ouros, porque:

a estória de um burrinho, como a história de um homem grande, é bem dada no resumo de um só dia de sua vida. E a existência de Sete-de-Ouros cresceu toda em algumas horas – seis da manhã à meia-noite – nos meados do mês de janeiro de um ano de grandes cheias, no vale do Rio das Velhas, no centro de Minas Gerais.
(1984, p. 18)

O animal permanecia confortável, sonolento e sempre meio perpendicular ao cocho, num dos currais da fazenda, uma área de três mil alqueires de terra, localizada no vale do Rio das Velhas, centro de Minas Gerais. Sete-de-Ouros demonstrava ser bem tratado. Isso era evidenciado pelo seu comportamento conformado e pela ausência de carrapichos e de carrapatos em sua pelagem pedrês, salpicada de preto e de branco. O burrinho tinha, ainda, uma marca de ferro no quarto esquerdo dianteiro, uma espécie de coração, já meio apagada, outra evidência de sua senilidade e uma lembrança de quando os ciganos o raptaram.

À medida que o narrador principal conta a história da vida do burrinho, ele lembra de histórias contadas por outros narradores. Assim, os personagens ganham voz e narram suas histórias: Major Saulo e os boiadeiros Raymundão, Sinoca, Leofredo, Silvino, Sebastião, Benevides, Juca Bandeira, Badu, Francolim, Tote, Zé Grande e João Manico – conversam sobre si próprios, trocam impressões acerca da boiada, falam das condições do tempo e contam casos. Entre as histórias desfiadas pelos vaqueiros, destacam-se: o evento da morte de Josias, relatado por Tote ao companheiro Grande; os quatro episódios narrados por Raymundão, o primeiro sobre o resgate da vaquinha da filha do Major Saulo, momento em que este pôde comprovar a valentia do boi Calundu, capaz de proteger uma manada de vacas do ataque de uma onça – contado a Juca, e os outros três – um sobre o dia em que se tornou vaqueiro, outro acerca da morte de Vadico provocada por Calundu e o último relativo a um fato estranho, acontecido durante o velório de Seu Leôncio Madurera relatados ao Major Saulo; a passagem do pretinho que, a pedido de Major Saulo, tinha de ser entregue no Curvelo, por João Manico, contada por este último ao grupo. Observa-se, também, que a tropa de vaqueiros, especialmente Francolim, o braço-direito de Major Saulo, envolve-se com o caso da tentativa de assassinato de Badu, por parte de Silvino, intriga que corre paralela à história do burrinho.

No dia da viagem, no curral, perto da casa-grande, o cavalo preto de Benevides desalojou o burrinho de seu lugar na coxia, enquanto o matungo de Zé Grande espancava o tabique da coberta; o amarilho de Silvino saracoteava empinando; o poldro pampa de Badu relinchava escandalosamente. O burrinho não aprovava tais atitudes e afastou-se do conflito, até encostar-se nos pilares da varanda, cometendo o primeiro engano do dia, pois o Major Saulo estava ali e o viu. Esse equívoco, segundo o narrador principal, “decide o destino e ajeita caminho à grandeza dos homens e dos burros, porque quem é visto é lembrado” (1984, p. 23). Antes disso, porém, o Major Saulo tinha sido avisado de que alguns cavalos haviam fugido na noite anterior e pedira a Francolim que inventariasse as montarias restantes. O secretário concluíra que faltava uma. Major Saulo, ao ver o burrinho, ordenou que Francolim o aprontasse, também, para a viagem, atitude que o vaqueiro, a princípio, não levou muito a sério. Assim, começaram os diálogos entre os boiadeiros.

Francolim disse que o burro estava velho e quase cego, mas o Major desconsiderou o comentário de seu interlocutor e reiterou a ordem, justificando que eram apenas quatro léguas e que o João Manico, por ser o de menos peso, poderia montar o animal. Em seguida, o Major, na frente da casa-grande, demonstrando contentamento, consultou o relógio da sala pela porta da varanda, e constatou que ainda era cedo. Pensou que seria bom que chovesse naquele momento, para que a chuva não viesse atrapalhar os vaqueiros na hora da partida. Nisso, apareceu Maria Camélia com o café. Serviu-os e voltou à cozinha, onde estavam as outras negras, para contar a novidade. Todas acharam muita graça em saber que o burrinho seria montado por João Manico, o mais velho e cauteloso vaqueiro do grupo. Na frente da casa-grande, os boiadeiros começaram os preparativos para a saída. Leofredo cantava, enquanto montavam.

Era início da estação das cheias, época do êxodo dos rebanhos para corte, e havia expectativa de chuva. Um cão latia para os cavalos, que rodopiavam com seus cavaleiros; as vacas fugiam com seus bezerrinhos. Juca advertiu os companheiros de que Badu não estava entre eles, mas Francolim solucionou o mistério, dizendo que o malandro tinha ido despedir-se da namorada. Major Saulo ressaltava a gordura e a qualidade da boiada a Francolim. Este, por sua vez, contou ao Major que Silvino estava com ódio de Badu e pretendia matá-lo, ainda naquele dia. Acrescentou que a causa da encrenca era o desgosto de Silvino por ter perdido a moça para Badu. Francolim afirmou que estava disposto a prender Silvino, se essa fosse a vontade do patrão, porém Major Saulo não deu muita importância ao caso, preferindo assistir à cena de Badu a montar o poldro.

Depois, Francolim, Major Saulo e Zé Grande rumaram em direção ao esteio, onde estava João Manico tratando de encilhar Sete-de-Ouros. Major Saulo, no meio do alvoroço dos vaqueiros, perguntou a João Manico se ele tinha consciência do valor de um burro. O vaqueiro, demonstrando sabedoria, respondeu que burro servia somente para marchas de estrada, mas não para tocar boiada. João Manico disse, ainda, que o burro era um bicho medonho e que nunca se amansava totalmente; só se acostumava com as imposições.

Os trovões revolviam a boiada. Os vaqueiros tinham medo de que o gado rebentasse as cercas dos currais. Grande analisou a boiada, acompanhado de Tote. Este último chamou a atenção de Zé Grande para uma vaca que empurrava outros animais, querendo ficar sozinha. Zé Grande comentou que aquela vaca parecia muito com a que havia matado Josias. Tote, motivado por essa comparação, lembrou do episódio em que ele e Josias tinham sido atacados pela vaca Fumaça, e passou a contar a história a Grande, advertindo, desde o início, que a culpa pela morte de seu parceiro não tinha sido dele:

Já jurei que não foi culpa minha, e não foi mesmo. A vaca Fumaça estava com a cria no meio do curral, [...] Josias falou comigo: “Vamos dar uma topada, para ver se ela tem mesmo coragem conversada.” [...] Mal a gente tinha botado os pés no chão, e ela riscou o ar, [...] Escolheu quem, e guampou o Josias na barriga. [...] Eu corri. Não tinha mesmo de correr?! [...] Josias foi o mais desfeliz, porque foi jogado para tudo quanto era lado, com a monstra sapateando em cima dele e chifrando. [...] Culpa tive eu?... Má-sorte do companheiro. Era dia dele, o meu não era!...
(1984, p. 32-33)

Zé Grande ouviu a história atento e interferiu três vezes. A primeira para comentar que, realmente, não havia precisão de instigar animais em tal estado; outra quando perguntou o que tinha acontecido com a vara, instrumento que devia estar sempre na mão de bom vaqueiro; a última para interromper o contador da história, advertindo que parasse de contar coisas tristes, porque o Major não gostava disso. Logo a seguir, o Major disse que era hora de partir. Iam à frente Zé Grande, tocando o berrante, e Sebastião, aboiando; à direita, Leofredo, Tote, Sinoca e Benevides; à esquerda, Badu, Juca Bandeira, Silvino e Raymundão; mais atrás, o Major Saulo, regozijando-se da boiada, e João Manico, queixando-se do burrinho miserável. Entre um trompear e outro do berrante, ouviam os gritos fortes de aboio, entremeados de canções: “O Curvelo vale um conto, / Cordisburgo um conto e cem. / Mas as Lages não têm preço, / Porque lá mora o meu bem... Um boi preto, um boi pintado, / cada um tem sua cor. / Cada coração tem um jeito / de mostrar o seu amor. (1984, p. 36-37)

Pouco a pouco, a boiada acalmou-se, e os vaqueiros puderam descobrir o rosto e acomodar-se nas celas. De repente, um boi investiu contra Raymundão, fazendo-lhe lembrar da história do boi Calundu. Então, Raymundão pediu a Juca Bandeira que emparelhasse com ele – estava tudo tranqüilo e podiam conversar sossegados –, pois sentiu necessidade de dividir com o amigo a história lembrada. O episódio acontecera no dia em que resgatara a vaca da filha do Major Saulo, que havia parido perto da lagoa e teve a cria comida por um jacaré. Raymundão afirmou que, antes daquele dia, nunca tinha visto uma lua tão brilhante e que, além disso, ainda não havia presenciado um boi proteger uma manada de vacas do ataque de uma onça:

Eu tinha ido lá, buscar uma vaca fronteira, da filha de seu Major. A vaquinha tinha parido na beirada da lagoa, e jacaré comeu a cria. [...] De noite, saiu uma lua rodoleira, que alumiava até passeio de pulga no chão. [...] minha cachorra Zeferina estava estranhando, [. .] as vacas, desinquietas, estavam se ajuntando, se amontoando num bolo, [.. ] aí eu ouvi um miado longe, e me lembrei daquela onça preta que estava salteando estrago no gado de seu Quilitano, [...] então, o Calundu, que era garrote delas, ainda parecia ser mais graúdo do que era mesmo, rodeando as vacas, meio dando as costas para a manada, assim de cabeça em pé! [...] O Calundu ia ficando cada vez mais enjerizado e mais maludo, [...] nunca eu não tinha visto o zebu tão grandalhão assim! [...] E o Calundu cavacava o chão e bufava, com uma raiva tão medonha, [...] Cruz! E até a lua começou a alumiar o Calundu mais do que as outras coisas, por respeito. [...] Pois, nesse dia, a cangussu [...] correu para longe, sem um miado, e foi-s’embora. Onça esperta!
(1984, p. 40-43)

A história teve várias interferências, uma porque a chuva começou a engrossar e os vaqueiros voltaram a cantar: “Chove, chuva, chorevá, / Santa Clara a clarear / Santa justa há-de justar / Santo Antônio manda o sol / P’ra enxugar o meu lençol...” (1984, p. 41); as outras interrupções foram causadas pelo interesse do ouvinte nas passagens da história. Juca Bandeira perguntou, por exemplo, por que a cadela chamava-se Zeferina, tendo como resposta que esse era o nome da ex-esposa de Raymundão, que se tinha ido embora. Outras interferências vieram no sentido de incentivar a contação da história: “E daí?”; “Mas, e o zebu?”; “E depois?” (1984, p. 42). A última interferência do ouvinte foi quando Raymundão exagerou um pouco no caso da lua iluminando Calundu: “Eu estou quase não acreditando mais, Raymundão...” (1984, p.43). A contação da história terminou porque a tropa de bois e de boiadeiros estava chegando no córrego.

Os vaqueiros pararam para ver a bravura das águas e constataram que devia estar chovendo muito na cabeceira do rio. Francolim chegou a galope, com um recado do Major Saulo dizendo que esperassem um pouco e que não espremessem o gado na travessia. Francolim aproveitou a espera para contar aos vaqueiros que já tinha passado por situação pior na travessia do Jequitinhonha, mas o patrão chegou logo, chamando por Sebastião e impedindo o outro boiadeiro de continuar a história.

A travessia foi tranqüila. João Manico comentou com o patrão que não precisava ter vindo, pois estava se sentindo dispensável, e completou o comentário dizendo que, se o burrinho tivesse morrido três dias, não faria falta nenhuma. Major Saulo riu da casmurrice do vaqueiro e perguntou se ele achava mesmo que burro era burro. João Manico respondeu: “Seô Major meu compadre, isso até é que eu não acho, não. Sei que eles são ladinos demais...” (1984, p. 46). O narrador principal retomou a atenção no burrinho, que andava indiferente, para mostrar que burro que se preza não corre desembestado, como um cavalo qualquer, a não ser em casos extremos. Era um animal que estava sempre do mesmo jeito, impassível, com as pestanas no meio dos olhos:

Só um remanso, pouso de pausa, com as pestanas meando os olhos, o mundo de fora feito um sossego, coado na quase-sombra, e, de dentro, funda certeza viva, subida de raiz; com as orelhas – espelhos da alma – tremulando, tais ponteiros de quadrante, aos episódios da estrada, pela ponte nebulosa por onde os burrinhos sabem ir, qual a qual, sem conversa, sem perguntas, cada um no seu lugar, de vagar, por todos os séculos e seculórios, mansamente amém.
(1984, p. 46)

Major Saulo e João Manico seguiam conversando e olhando a boiada. O primeiro contou ao segundo que pouco sabia ler e escrever e que nunca estivera na escola, mas que aprendera muito das coisas da vida e das pessoas, lidando com o gado. João Manico disse que também mal sabia “pôr algum bilhete no papel” (1984, p. 47). Voltaram a conversar sobre a boiada, que vinha concluindo a travessia. De repente, Francolim apareceu para contar o que havia acontecido a Badu: Silvino tinha instigado um touro bravo contra ele, com a intenção de que o animal o matasse. O Major chamou Raymundão e perguntou-lhe o que achava dessa história. Raymundão disse que não achava nada de mais, mas que, para ele, aquilo ainda estava no começo. Os dois, então, seguiram emparelhados.

O Major, que valorizava os vaqueiros e gostava de ouvir suas histórias, perguntou se Raymundão ainda lembrava da primeira vez que enfrentara boi bravo. Raymundão respondeu afirmativamente e passou a contar a história do dia em que seu pai atiçou um boi contra ele:

Meu pai, que era vaqueiro mestre, achou que era o dia de experimentar minha força. [...] Só, na horinha em que o bicho partiu em mim, eu achei que ele era grande demais, e pensei que, de em-antes, eu nunca tinha visto um boi grande assim, [...] quando dei fé, a festa tinha acabado, e meu pai estava dando um cigarro, que ele mesmo tinha enrolado para mim, o primeiro que eu pitei na frente dele... E foi falando: “Meu filho, tu nasceu para vaqueiro, agora eu sei”...
(1984, p. 52-53)

O Major, depois de ouvir essa história, perguntou a Raymundão o que ele tinha conversado com Juca Bandeira e Badu, ainda do outro lado do rio. O vaqueiro disse que era conversa sem importância sobre o Calundu e perguntou ao Major se ele sabia que esse boi terrível tinha matado Vadico, o filho do Borges. O Major demonstrou interesse pelo caso, perguntando se o boiadeiro tinha trabalhado lá e dando início, assim, à terceira história de Raymundão:

Ah, nunca imaginei que ainda ia ver o menino morrer daquele jeito. [...] Seu Vadico gostava muito do Calundu, e o zebu também gostava dele, [...] Doideira, eu sempre achei. Zebu é bicho mau, que a gente nunca sabe o que é que eles vão cismar de fazer. [...] Seu Vadico foi fazer festa nele, dando sal para ele lamber na mão. [...] Pois eu juro, seô Major, que aquilo foi de supetão... Eu vi o Calundu baixar a cabeça, [...] E, aí, de testada e de queixo, ele deu com o menino no chão, [...] foi uma chifrada só, [...] o sangue subiu atrás, num repuxo desta altura. [...] o Velho Valô Venâncio, vaqueiro cego que não trabalhava mais, explicou para a gente que era um espírito mau que tinha se entrado no corpo do boi. [...] De manhã cedo, no outro dia, ele estava murcho, morto, no meio do curral.
(1984, p. 55-57)

A história era interrompida por Major Saulo, a fim de mostrar que se interessava pelo que ouvia e, também, para incentivar o desfecho da mesma. Numa das interferências, o Major comentou, referindo-se à presença de um espírito mau no corpo do boi e àquilo que as pessoas não conseguem definir: “Às vezes vêem coisas dessas, que a gente não sabe, Raymundão” (1984, p. 57). Nisso, Raymundão emendou outra história, que ouvira do pai, sobre um fato curioso, ocorrido no velório do seu Leôncio Madurera:

Sei de um caso que se passou, há muitos anos, contado por meu pai, que quando moço foi campeiro de um tal Leôncio Madurera, [.. ] era um homem herodes, que vendia o gado e depois mandava cercar os boiadeiros na estrada. [...] Pois meu pai contava que, quando ele morreu, [...] as vacas de leite começaram a berrar feio, [...] o garrote preto urrava: Madurera!. . Madurera!... [...] Foi p’r’os infernos!... Foi p’r’os infernos!... [...] Tiveram de soltar tudo e exortar para o pasto, porque eles não queriam sair de de-perto da casa. E meu pai contou que, de longe, a gente ainda escutava a maldição deles, que subiam a caminho do morro, sem parar de berrar.
(1984, p. 57)

O evento de contação de histórias dissipou-se porque viram o Arraial, com a igrejinha, as casas da Rua-de-Baixo e da Rua-de-Cima, e a fumaça da locomotiva. O amontoado de bois e vaqueiros cruzou as ruas do vilarejo e logo estava toda a boiada acomodada nos vagões do trem. Os boiadeiros saíram para comer e, principalmente, para beber. As montarias ficaram na cobertura de um curral para descansar. Sete-de-Ouros alojou-se num canto, sério, cumpridor do seu dever.

Mais tarde, os homens voltaram, pegaram suas montarias e saíram, deixando para trás Badu, muito bêbado, e o mísero Sete-de-Ouros, fato que levou o narrador principal a comentar: “Era uma vez, era uma vez, no umbigo do mundo, um burrinho pedrês” (1984, p. 60). Badu insistiu na procura do poldro pampa, mas o cavalo já havia sido montado por João Manico, que chegara primeiro. Então, Badu montou o burrinho. Sete-de-Ouros enrugou a pele do pescoço e amoleceu as orelhas: não queria saber de complicações. O animal concordou com a montaria do vaqueiro, não por causa das chilenas que esse possuía, mas porque pressentia que estava indo-se em direção ao caminho de casa, uma promessa de repouso e solidão.

Na volta, escurecia, e os vaqueiros emparelharam-se, a fim de ir conversando. Leofredo cantava, e Sinoca dizia que mal podia esperar pelo momento de ver o tempo dos embarques se acabar, porque sabia que todo aquele gado ia morrer e não gostava disso. Tote, irmão de Silvino, aconselhou-o a desistir daquela “loucura” que pretendia fazer, referindo-se ao enfrentamento dele com Badu. Sebastião aproximou-se de João Manico e insistiu em uma história contada pelo companheiro em outra ocasião, embora todos a conhecessem. Era o episódio do pretinho que João Manico teve de entregar no Curvelo, a pedido de um compadre do Major Saulo. O grupo reuniu-se mais, e a história iniciou:

conto porque é o meu compadre Sebastião quem está pedindo, [...] Se duvidar, para mais de vinte anos. Não tinha trem de ferro no Arraial... Ainda nem tinha casa-de-fazenda na Tampa. [...] Foi que a gente tinha ido por longe, [...]. Pegamos uma boiada de carepas: só bicho mazelento e feioso: bom quase que nenhum, [.. ]. Mas, o pior, Deus que me livre dele, foi o menino.. o pretinho [...]. Um negrinho, assinzinho, regulando por uns sete anos, um toquinho de gente preta... O fazendeiro que vendeu o gado pediu a seu Saulinho para trazer, para entregar a um irmão, no Curvelo, [.. ]. O pretinho vinha comigo na garupa, dando soluços grandes, e molhando minhas costas de tanta lágrima, [...]. E foi aí [...] que o pretinho começou a cantar, [. .] logo que ele principiou a toada, eu vi que o gado ia ficando desinquieto [...]. Aí, então, comecei a me alembrar de uma porção de coisas, do lugar onde eu nasci [...]. Mas – Virgem Santa Mãe de Deus! – acordei, de madrugada, foi com os gritos do patrão. Que é do gado?! [...] Tinham espandongado por ali a fora. [...] Um prejuizão! [.. ] E o pretinho, esse ninguém não viu, nem teve notícia dele mais!
(1984, p. 65-71)

A história foi a mais longa e sofreu várias interrupções pois os ouvintes eram muitos –, a maioria das quais serviu de incentivo ao narrador para continuar seu relato: “Onde é que você campeava, então?”; “Que pretinho, Manico?”; “E o menino preto?”; “Mas, como foi?”; “E o negrinho?”; “Mas, conta o resto...”. As interrupções que não tinham como objetivo estimular o narrador eram motivadas pelo envolvimento dos ouvintes com o que era narrado: “E ir buscar coisa ruim assim, tão longe!”; “Assim é que eu gosto!, dá respeito”; “Que inferno!”; “É isso mesmo...”. Ressalta-se que o uso do ponto de interrogação nas interferências feitas pelos ouvintes no curso da história e o emprego do ponto de exclamação e das reticências, nas mesmas circunstâncias, são procedimentos narrativos por meio dos quais o autor cria efeitos de realidade. Tais estratégias conferem verossimilhança à narrativa, como se narrador e personagens estivessem participando, de fato, de um ato de contação de histórias.

Terminada a história de João Manico, Grande estranhou o chão encharcado e perguntou se estavam no caminho certo. Logo os boiadeiros ouviram o barulho da enchente. Chegaram na encosta do rio e decidiram esperar o burrinho, pois não tinham certeza se deveriam fazer a travessia. Silvino opinou dizendo que o burrinho era quem ia decidir: “se ele entrar n’água os cavalos acompanham, e nós podemos seguir sem susto. Burro não se mete em lugar de onde não pode sair!” (1984, p. 73). Alguém pediu para prestarem atenção no canto do pássaro que parecia dizer: “João, corta pau! João, corta pau!” (1984, p. 72). Segundo João Manico, o pio do pássaro era indício de mau agouro e, por isso, resolveu respeitá-lo, contendo o poldro pampa:

Eu não entro! A modo e coisa que esse passarinho ou veio ficar aqui para dar aviso para mim, que também sou João, ou então ele está mas é agourando... Para mim, de noite, tudo que há, agoura. [...] Não vou e não vou, de jeito nenhum! Para esse poldro me tanger dentro d’água no meio do córrego?... O burrinho é beócio... E não vou mesmo! Não sei nadar..
(1984, p. 74-75)

Juca Bandeira alegou que também ia permanecer em terra, pois estava resfriado e não podia molhar o corpo. Sete-de-Ouros chegou com Badu, bêbado, abraçado em seu pescoço. O burrinho “chafurdou, espadanou a água, e foi” (1984, p. 74). Todos os vaqueiros se lançaram atrás do burrinho, menos João Manico, que respeitou o agouro da ave, dizendo que, além de tudo, não sabia nadar, e Juca, que afirmava não sentir-se bem. Este último sugeriu a Manico que esperassem o dia clarear para procurar um lugar alto, apropriado à travessia.

Sete-de-Ouros metia peito; dava as braçadas devagar, mas precisas. Parou para deixar passar um pedaço de pau. Não tinha pressa, pois no fim de tudo sabia que teria o pátio, com os cochos cheios de milho, e muita sombra, capim e sossego. Atrás dele, de súbito, “o córrego crispou uma sístole violenta” (1984, p. 76), e ninguém mais pôde encontrar o caminho; só se via homens e cavalgaduras se debatendo. O narrador principal ressaltou que, no momento em que contava a história, ainda se ouvia falar da grande enchente do córrego da Fome, que resultara na morte de oito boiadeiros. O burrinho pedrês, sem susto, deixara-se levar pela água, para saber onde subir a encosta, e trouxera Badu no lombo, agarrado à crina, e Francolim, pendurado à cauda:

E aquele um aconteceu ser Francolim Ferreira, e a coisa movente era o rabo do burrinho pedrês. E Sete-de-Ouros, sem susto a mais, sem hora marcada, soube que ali era o ponto de se entregar, confiado, ao querer da correnteza. Pouco fazia que esta o levasse de viagem, muito para baixo da travessia. Deixou-se tomando tragos de ar. Não resistia. Badu resmungava más palavras, sem saber que Francolim se vinha agüentando atrás, firme na cauda do burro.
(1984, p. 79)

Assim que sentiu não haver mais água debaixo dos cascos, o burrinho parou. Deu um coice em Francolim e esperou que Badu resolvesse descer. O vaqueiro desceu, bradando nomes feios, para, logo depois, começar a cantar uma cantiga de negros do tempo da escravidão e para acomodar-se em uma cama de madeira, ali mesmo no paiol. Alguém que despertou com a algazarra veio desarrear o burrinho. Folgado, Sete-de-Ouros foi para a cobertura do curral. Farejou o cocho, achou milho e comeu. Depois, saracoteou, dançando de patas no ar e esfregando as costas no chão, e procurou um lugar para dormir entre a vaca mocha e a vaca malhada, que ruminavam, tranqüilamente, na escuridão.

A análise das estratégias narrativas empregadas por João Guimarães Rosa na construção do conto revela que a voz do narrador principal de “O burrinho pedrês” é entrecortada pela voz dos personagens-narradores. Ao mesmo tempo que o narrador principal relata um episódio da vida do burrinho e as peripécias do grupo de boiadeiros naquele dia fatídico, ele dá voz aos próprios boiadeiros, permitindo que estes desfiem suas histórias e que, assim, transformem-se em narradores. Ressalta-se que as histórias contadas pelos personagens-narradores assemelham-se àquela relatada pelo narrador principal, porque todas podem ser agrupadas sob um mesmo eixo temático: o cotidiano dos boiadeiros com as lides do gado na fazenda. Tal semelhança temática é reforçada na medida em que a maioria das histórias dos personagens-narradores, a exemplo do que acontece com a história principal, relatam eventos relacionados à morte. A predileção pelo tema da morte é evidenciada tanto nas histórias de Tote e Raymundão relativas ao desaparecimento de Josias, de Vadico, da cria da vaquinha da filha do Major, de Calundu e de Leôncio Madurera –, quanto naquelas contadas pelo narrador principal, de que é um exemplo o próprio afogamento dos boiadeiros.

Um indício da semelhança temática que irá aproximar as tramas pode ser encontrado logo após a introdução da história de “O burrinho pedrês”, quando o narrador principal conta que a vaca Açucena havia dado à luz. Nesse momento, ele afirma que é prudente desviar de animal em tal estado, pois “é crível que o homem mais virtuoso do mundo possa ser atirado a seis metros de distância, [...] com alças do intestino penduradas e muito sangue de pulmão à vista” (1984, p. 22). Parece que, nessa passagem, o narrador principal é solidário a Tote, pois aceita antecipadamente e de modo indireto as explicações que seriam dadas pelo vaqueiro no sentido de desobrigar-se da morte de Josias.

Vale ressaltar, ainda, que os dois quartetos que servem de epígrafe a esse conto também assemelham-se às histórias contadas, no que se refere à temática. Enquanto a primeira quadra de desafio – “Lá em cima daquela serra, / passa boi, passa boiada, / passa gente ruim e boa, / passa a minha namorada” – parece aludir tão-somente às agruras dos boiadeiros no dia-a-dia, com as lides do gado, a segunda quadra – “‘For a walk and back again’, said / the fox.
‘Will you come with me? / I’ll take you on my back. For a / walk and back again’4 retirada de uma “estória” de Grey Fox para meninos, refere-se, diretamente, à história do burrinho Sete-de-Ouros, que se transformou num carrasco para oito boiadeiros, convertendo-se em herói somente para dois integrantes do grupo.

Também vale destacar certa semelhança entre o narrador principal e um dos personagens que se transformam em narrador. Tem-se a impressão de que Raymundão desata a contar histórias com a mesma disposição que o narrador principal do conto, apesar de não receber qualquer tratamento especial por parte deste último, ao contrário do que acontece com João Manico, que é apresentado como um sujeito sensato, esperto, cauteloso, além de bom contador de histórias. Talvez, ao relatar as quatro histórias, Raymundão procure entender acontecimentos que lhe soam contraditórios. Primeiro, ele conta uma história em que o Calundu figura como herói, e, logo a seguir, narra outra em que o próprio boi é a causa da morte de Vadico. Depois, deixa transparecer que não entendia bem o que o pai representava para si, pois em um momento conta que o velho atiçara um boi contra ele, a fim de testar a força do filho, e, em outro, demonstra afinidade com a figura paterna, que, além disso, contava-lhe histórias, como a da maldição dos bois sobre o seu Leôncio Madurera.

De certa forma, pode-se dizer que o narrador principal também conta sua história a fim de investigar acontecimentos contraditórios ou porque precisa entender algo que ainda não compreendera, como por exemplo: o que teria levado o grupo de boiadeiros a confiar no burro?; por que a viagem do gado não fora transferida devido ao mau tempo e pela falta de montarias?; seria o acaso, o destino ou uma decisão pensada (quem sabe uma vingança contra a rejeição que sofrera ou contra o fato de ser arrancado de seu sossego), o fator que levara oito homens à morte pela atitude do burrinho?; qual a relação da “estória” de um burrinho com a “história” de um homem grande? Possivelmente, a busca de respostas a essas perguntas leve o narrador principal a tentar compreender os inúmeros sinais inscritos na história ou a aceitar o mistério presente nos episódios.

É interessante ressaltar, ainda, que uma das tramas se aproxima da história principal não exatamente pela temática: o episódio do menino preto, relatado por João Manico, o qual não trata da morte. As duas histórias, a principal e aquela lembrada por esse personagen, revelam a sabedoria dos narradores, a característica principal de quem sabe contar histórias. A astúcia do narrador principal pode ser observada, no decorrer da narração, pelo modo como utiliza os provérbios, embora a maioria deles seja atribuída a Major Saulo: “quem vai na frente bebe a água limpa!”; “joá com flor formosa não garante terra boa!”; “não é nas pintas da vaca que se mede o leite e a espuma!”; “suspiro de vaca não arranca estaca!”; “para bezerro mal desmamado, cauda de vaca é maminha”; “galinha, tem de muita cor, mas todo ovo é branco”. A sabedoria de João Manico, por sua vez, pode ser notada, ao longo do relato, sobretudo, pela decisão que tomara, de orientar-se pelo pio do pássaro e não pelo burrinho, respeitando, assim, sua intuição e os ensinamentos advindos da cultura popular. Tendo em vista essa semelhança entre o narrador de “O burrinho pedrês” e João Manico, pode-se inferir que esse personagem-narrador é o alter-ego do autor, ou seja, é nele que João Guimarães Rosa deposita suas experiências, ao menos as que deixa transparecer, por meio do discurso do narrador principal, na construção da história do burrinho pedrês.

Cabe, ainda, ressaltar que a principal diferença entre a história principal e as histórias dos personagens-narradores é que a primeira é contada por um narrador em terceira pessoa ou heterodiegético, enquanto que as outras são relatadas por narradores posicionados em primeira pessoa ou homodiegéticos. É interessante observar que esses personagens-narradores contam suas histórias, à medida que dialogam, promovendo a instauração do modo dramático em várias passagens do conto. Essa diferença entre narrador principal e personagem-narrador permite que se observem os processos de exteriorização e de interiorização empreendidos no ato de contação de histórias."

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Fonte:
Jocilei Dalbosco: "A representação dos contadores de histórias em Sagarana". (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade de Passo Fundo, como requisito para obtenção do grau de mestre em Letras, sob a orientação da Prof. Dr. Márcia Helena Saldanha Barbosa). Passo Fundo, 2006.

Nota
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A imagem (Sagarana, Livraria José Olympio, 1976) inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

Disponível digitalmente no site: Domínio Público

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