“A primeira edição de O Primo Basílio foi publicada em 1878, com três mil exemplares que logo foram esgotados e uma segunda edição revista é lançada no mesmo ano, não obstante o próprio autor, em cartas ao amigo Ramalho Ortigão, reconheça que se trata de um romance medíocre.
Já você deve ter recebido O Primo Basílio. Como verá é medíocre. A não ser duas ou três cenas, feitas ultimamente, o resto, escrito há dois anos, é o que os Ingleses chamam rubbish, isto é, inutilidades desbotadas, dignas de cisco. [...] Eu por mim penso mal; foi um trabalho útil porque me formou a mão; mas não era publicável; devia ter ficado em carões - como ficam em atelier os quadros amalgamadamente borrados onde os pintores se familiarizam com a paleta. (QUEIRÓS, 1878, p.27).
Através desse romance, Eça de Queirós ataca a família burguesa lisboeta, de maneira implacável e reafirma o compromisso da obra literária com o seu tempo: combater os vícios, as mazelas e os desvios sociais. Ora, se a burguesia era a principal consumidora dos romances, deveria enxergar-se neles, ver seus defeitos a fim de modificar seu comportamento.
Embora o autor faça duras críticas à estrutura familiar, o seu alvo não é a família, segundo ele, “instituição eterna”, mas a família lisboeta que merecia ser combatida em suas bases falsas e podres. Em carta a Teófilo Braga, Eça explica qual é a sua função como escritor de romances:
[...] mas eu não ataco a família ─ ataco a família lisboeta, ─ a família lisboeta produto do namoro, reunião desagradável de egoísmos que se contradizem, e, mais tarde ou mais cedo, centro de bambochata. [...] A minha ambição seria pintar a sociedade portuguesa, tal qual a fez o Constitucionalismo desde 1830 ─ e mostrar-lhe, como num espelho, que triste país eles formam ─ eles e elas. [...] É necessário acutilar o mundo oficial, o mundo sentimental, o mundo literário, o mundo agrícola, o mundo supersticioso ─ e com todo o respeito pelas instituições que são de origem eterna, destruir as falsas interpretações e falsas realizações que lhes dá uma sociedade pobre (QUEIRÓS, 1878, p.51-53).
O romance expõe um quadro doméstico onde as personagens representam a sociedade sob várias facetas: a começar pelo casal Jorge e Luísa, aparentemente feliz e perfeito; a cozinheira Joana que utiliza o local de trabalho para encontros amorosos; a criada Juliana, solteirona, virgem, revoltada com a função que ocupa, odeia e inveja todas as patroas; Julião, um médico decepcionado com a profissão; Ernestinho Ledesma, representa o escritor medíocre preocupado com dramalhões românticos para o teatro; D. Felicidade, uma beata apaixonada pelo Conselheiro Acácio, alto funcionário público, falso-moralista que, além de esconder, na mesinha de cabeceira, poemas obscenos de Bocage, vive em concubinato com a criada; Sebastião, solteirão íntegro, grande e fiel amigo de Jorge; Leopoldina, amiga de Luísa, escandaliza a sociedade por ser adúltera, fumar e possuir vários amantes; e, finalmente, Basílio, um janota mau caráter e conquistador que trata as mulheres como simples objetos sexuais.
─ Há um marido que a veste, que a calça, que a alimenta, que a engoma, que a vela se está doente; que a atura se ela está nervosa; que tem todos os encargos; todos os tédios, todos os filhos, todos, todos os que vierem, sabes a lei... Porconsequência o primo não tem mais que chegar, bater o ferrolho encontra-a asseada, fresca, apetitosa à custa do marido e... (PB, p. 104).
Luísa é uma moça bela, frágil, ingênua, sonhadora, superficial e mimada. Na adolescência, apaixonara-se por seu primo, Basílio, com quem pretendia se casar. Todavia, a família do rapaz perde toda a fortuna e ele é obrigado a viajar para o Brasil a fim de recuperar os negócios. Após três anos de espera, Luísa recebe uma carta de Basílio, rompendo o noivado. Ela entra em um estado de tristeza profunda e torna-se apática, o que caracteriza o luto que, segundo Freud, “é a reação à perda de um ente querido, à perda de alguma abstração que ocupou o lugar de um ente querido, como o país, a liberdade ou o ideal de alguém, e assim por diante”. (FREUD, Luto e Melancolia, 1917).
Passado o período do luto, Luísa conhece Jorge, um engenheiro que se apaixonara por ela, no passeio público. Casam-se em pouco tempo, e vivem aparentemente felizes, numa casa confortável, de estilo burguês. A jovem senhora passa o tempo lendo romances de folhetim ou tocando piano, para evitar a monotonia, já que não tinha filhos e as atividades domésticas eram entregues aos cuidados de uma cozinheira, a Joana e de uma criada, a Juliana. Esta última é, a nosso ver, a personagem mais complexa do romance. Vive pelos cantos, tentando ouvir conversas, resmungando inconformada com a sua condição de criada, mexe nas gavetas e no lixo, à procura de alguma prova que possa comprometer a patroa, e se regozija com o sofrimento da mesma.
Todavia, a felicidade do casal dura pouco. Jorge viaja para a Alentejo, a negócios e Basílio, recém-chegado do Brasil, vai visitar a prima. Admira-se do longo período que ela está sozinha e se oferece para fazer-lhe companhia, com o único objetivo de seduzi-la. Para impressionar a moça, fala de suas viagens pelo mundo, de amizade com príncipes, da moda em Paris, usa termos franceses, enfim, apresenta-lhe um mundo que ela só conhecia dos romances.
─ Que vida interessante a do primo Basílio! ─ pensava. ─ O que ele tinha visto! Se ela pudesse também fazer as suas malas, partir admirar aspectos novos e desconhecidos, a neve nos montes, cascatas reluzentes! Como desejaria visitar os países que conhecia nos romances [...]. (PB, p. 57).
Essas visitas tornam-se frequentes e ela, sentindo-se solitária pela ausência do marido, deixa-se envolver pelo discurso galante do primo, tornando-se alvo de mexericos dos vizinhos e das chantagens de Juliana, a qual não mede esforços para conseguir, a qualquer custo, algum segredo de Luísa.
Antes de Jorge se casar com Luísa, Juliana fora dama de companhia de uma tia dele que estava muito doente. Durante o tempo em que cuidou daquela senhora, dedicou-se com fingido esmero, desejando que a mesma, ao morrer, lhe deixasse como reconhecimento pelo seu trabalho, uma boa herança. Somente dessa forma,ela poderia abandonar definitivamente aquela vida de servidão e passaria a ser senhora.
[...] um conto de réis era um dote, poderia casar, teria um homem! Estavam acabadas as canseiras. Ia jantar, enfim, o seu jantar! Mandar, enfim, a sua criada! Via-se a chamá-la, a dizer-lhe de cima para baixo: ─ Faça, vá, despeje, saia! ─ Tinha contrações no estômago, de alegria. Havia de ser boa ama. Mas que lhe andassem direitas! Desmazelos, mas respostas, não havia de sofrer a criadas! (PB, p. 64).
Luísa, sentindo-se solitária com a ausência do marido, deixa-se seduzir pelos encantos e galanteios do primo e se torna adúltera. Juliana, desconfiada daquelas visitas, passa a espreitar todos os passos da patroa, à procura de algo que possa comprometê-la. Certo dia, por um descuido de Luísa, a criada rouba as cartas que ela trocara com o amante e passa a chantageá-la, exigindo uma quantia elevada em troca das mesmas. A partir de então, há uma inversão de papéis entre elas. Luísa é obrigada a desempenhar as funções domésticas e a doar suas roupas a Juliana, a qual assume o lugar da patroa, acordando tarde, saindo a passeio e exigindo luxo e conforto.
[...] Tenho sofrido muito, mas estou farta! Vá buscar o dinheiro onde quiser. Nem cinco réis de menos! Tenho passado anos e anos a ralar-me! para ganhar meia moeda por mês, estafando-me a trabalhar, de madrugada até à noite, enquanto a senhora está de pânria! [...]. (PB, p.199).
Aos poucos, Luísa foi perdendo a liberdade dentro da própria casa. Tornou-sesubmissa à criada que passou a lhe fazer cada vez mais exigências e a lhe dar ordens. Começou por exigir o “quarto dos baús”, alegando que o seu era insalubre. Depois, começou a pedir os vestidos novos de Luísa, bem como os adornos com os quais saía para passear ou ir ao teatro, em pleno horário de trabalho. Essa atitude da criada pode ser vista como o desejo do desejo do outro que remete à dialética do senhor e do escravo, em que o Senhor e o Escravo não representam seres reais, surgem apenas como alegorias para representar a dialética do reconhecimento da consciência-de-si, a qual, segundo Hegel, “[...] suprime o Outro, pois não vê o Outro como essência, mas é a si mesma que vê no Outro” (HEGEL, 1992, p.26). Alexandre Kojève, em Introdução à Leitura de Hegel (1933 – 1939), salienta que “desejar o desejo do outro é, em última análise, desejar que o valor que eu sou ou que represento seja o valor desejado por esse outro: quero que ele reconheça meu valor como seu valor, quero que me reconheça como um valor autônomo.” (KOJÉVE, 2002, p. 14).
Juliana, por invejar Luísa, estabelece com esta uma relação especular,
─ Pois que lhe parece? ─ exclamava. ─ Não que eu coma os restos e a senhora os bons-bocados! Depois de trabalhar todo o dia, se quero uma gota de vinho, quem mo dá? Tenho de o comprar! A senhora já foi ao meu quarto? É uma enxovia! A percevejada é tanta que que tenho de dormir quase vestida! E a senhora se sente uma mordedura, tem a negra de desaparafusar a cama, e de catar frincha por frincha. Uma criada! A criada é o animal! Trabalha se pode, se não rua, para o hospital. Mas chegou a minha vez [...] ─ Quem manda agora sou eu! [Os grifos são nossos]. (PB, p. 199, 200).
A respeito do desejo humano, a partir da visão hegeliana, Lacan afirma que:
O desejo inicialmente é apreendido no outro, e da maneira mais confusa. A relatividade do desejo humano em relação ao desejo do outro, nós a conhecemos em toda relação em que há rivalidade, concorrência, e até em todo o desenvolvimento da civilização, inclusive nesta simpática e fundamental exploração do homem pelo homem cujo fim não estamos a ponto de ver, pela razão de que é absolutamente estrutural, e que constitui, admitida de uma vez por todas por Hegel, a estrutura mesma da noção de trabalho. (LACAN, 1986, p.172).
Mas acrescentando também que o desejo do homem é o desejo do outro, onde o “de” fornece a determinação chamada pelos gramáticos de subjetiva, ou seja, é como Outro que ele deseja (o que dá a verdadeira dimensão da paixão humana). (LACAN, 1998, p. 826).
Como em toda relação especular, Juliana é capturada pela imagem do outro (Luísa), estabelecendo-se uma tensão: sendo Luísa o outro, portador de sua alienação, Juliana precisa destruí-la, pois percebe seus desejos realizados na patroa. Logo, se toda relação especular é uma relação mortal, somente superável pelo surgimento do simbólico, ou seja, da linguagem, não há outra saída para as personagens a não ser a morte, já que essa linguagem falhou.
E cada dia detestava mais Luísa. Quando pela manhã a via arrebicar-se, perfumar-se com água de colônia, mirar-se ao toucador, cantarolando, saía do quarto porque lhe vinham venetas de ódio, tinha medo de estourar! Odiava-a pelas toilletes, pelo ar alegre, pela roupa branca, pelo homem que ia ver, por todos os seus regalos de senhora [...]. (PB, p.149).
Luísa entra em desespero com as chantagens da criada, arruma as malas e procura o amante, com o ingênuo propósito de fugirem juntos para viverem livres
A senhora chora! Também eu tenho chorado muita lágrima! Ai! Eu não lhe quero mal, minha senhora, certamente que não! Que se divirta ,que goze, que goze! O que eu quero é o meu dinheiro! O que eu quero é o meu dinheiro aqui escarrado, ou o papel há de ser falado! Ainda este tecto me rache, se eu não for mostrar as cartas ao seu homem, aos seus amigos, à vizinhança toda, que há de andar arrastada pelas ruas da amargura. (PB, p.200).
Basílio, por medo do escândalo que estava por vir, com a chegada de Jorge, parte de Lisboa com destino a Paris, deixando Luísa entregue à própria sorte e às ameaças de Juliana que, aproveitando a fragilidade da patroa, dobra o valor exigido como resgate das cartas. Diante das chantagens da criada, sem vislumbrar uma forma de conseguir o dinheiro, Luísa vai ficando cada dia mais fragilizada, enquanto Juliana assume o controle sobre ela, e aumenta o nível das exigências.
E Luísa passou a vesti-la. Deu-lhe um vestido roxo de seda, um casaco de casimira preta, com bordados a soutache. E receando que Jorge estranhasse as generosidades, transformava-as para as não reconhecer; mandou tingir de castanho o vestido; ela mesma por sua mão pôs uma guarnição de veludo no casaco. Trabalhava para ela agora! – Como acabaria tudo aquilo, Santo Deus? (PB, p. 227).
Jorge retorna e Luísa fica desesperada, com medo de ser desmascarada e perder o marido. Resolve, portanto, contar tudo a Sebastião que, com a ajuda de um policial, consegue reaver as cartas que estavam com a criada. Juliana fica assustada com a presença da polícia, tem um ataque cardíaco e morre. Luísa sente-se aliviada. Afinal, com a viagem de Basílio e a morte de Juliana, a paz estava de volta ao seu lar.
Entretanto, o destino quis que fosse diferente. Jorge intercepta e lê uma correspondência de Basílio, na qual ele promete enviar o dinheiro que comprará o silêncio da criada. Jorge fica transtornado e exige explicações da mulher que não resiste ao desespero e morre.
No desfecho do romance, Basílio regressa de Paris e, ao saber da morte de Luísa, age com ironia e indiferença, lamentando-se por não ter trazido a amante francesa. ─ “Que ferro Podia ter trazido a Alphonsine! (PB, p.326).” Percebemos que, da mesma forma que Amaro, o que estava em causa para Basílio era o desejo sexual apenas."
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Fonte:
Lidia Bantim Frambach: “As mulheres sob o véu da melancolia”. (Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós-Graduação em Letras, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de Concentração: Literatura Portuguesa. Orientadora: Profª. Drª. Nadiá Paulo Ferreira). Rio de Janeiro, 2010.
Nota:
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As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
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Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
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