Os “limites” de Kafka



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Já em Kafka, veremos que: “[...] o homem, realmente, não governa o seu destino; enquanto ser isolado em seu mundo, pode reger-se pelas suas normas de conduta, porém vivendo em sociedade, [...] é conduzido pelas forças do espírito e da matéria e se torna joguete nesta formidável luta” (GUIMARÃES, 2007, p. 34).

Grande parte dessa relação “impessoal”, como vimos, nasceu das rejeições religiosas, advindas da tensão entre pressupostos racionais exatamente onde não existia a possibilidade da racionalização, que separaram as esferas de atuação por áreas de interesse exclusivas, antes possuidoras de uma imanência religiosa que as uniam.

É a partir desta tensão que a religião se vê alijada do mundo cotidiano e as diferentes esferas de valores conseguem tomar uma especificidade relativa a seus interesses próprios. Nessa cisão, a arte toma algo de especial porque ela “nos aparece como uma atividade ao mesmo tempo auto-reveladora e autoplasmadora do homem. O trabalho de criação artística dá ao homem uma visão de si mesmo tanto dos seus problemas quanto das suas potencialidades” (KONDER, 2009, p. 162, grifos no original).

Esta consideração é importante porque diante de uma leitura da modernidade existem ideais que não se verificam na realidade. No caso de Franz Kafka, o que acontece é uma proposta extrema, e por isso se trata de um romance. O essencial a se retirar de um autor como esse são suas críticas subjacentes:

Enquanto os homens enfrentarem as mazelas do dia-a-dia urbano, do mundo organizado do qual nunca mais se espera que eles saiam, Kafka estará presente como um outdoor afixado permanentemente numa das vias principais, próximo do olhar de toda a multidão anônima que por ali circula. (MANDELBAUM, 2007, p. 315)

Tratar romances tão densos de maneira categórica, diminui-se o trabalho deste autor, que se deixa passar uma grande contribuição para a crítica à sociedade, como vemos similarmente em outras obras clássicas como Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, A divina comédia, de Dante Alighieri, e tantos outros autores clássicos que construíram romances com grandes críticas subjacentes. Nestes casos, as críticas realizadas à sociedade medieval-romântica e à religião/teologia e sua racionalização, respectivamente.

No caso de Kafka, duas de suas obras se concentram sobre a racionalização do direito e do estamento da burocracia de uma forma extremada exatamente para uma crítica mais pujante dos efeitos negativos da sociedade moderna, já trabalhados em Marx, Simmel e Weber: “Acolhi vigorosamente o que há de negativo no meu tempo – ao qual, aliás, estou muito ligado e que tenho direito, não de combater, mas, até certo ponto de representar” (KAFKA apud ANDERS, 1969, p. 11, grifos nossos). É por isso que também utilizaremos textos, cartas, diários, conversas e contos do autor, que às vezes são negligenciados, para conseguirmos mostrar o quão perceptiva pode ser a modernidade dentro de seus escritos .

É verdade que o conjunto das obras deste autor já foi revisitado por variados autores, ao ponto de García (1989) associar por “afinidades eletivas”, Max Weber e Franz Kafka. Os comentários sobre sua obra não cessam de aumentar tanto em profusão de línguas quanto pela infinidade de seus empreendimentos (LÖWY, 2005).

Logicamente, foram desenvolvidos trabalhos de variados temas sobre Kafka, desde abordagens estritamente literárias, biográficas, psicanalíticas, religiosas, sobre a identidade judaica, sociopolíticas e pós-modernas. Deixamos claro que não utilizaremos toda a força explicativa possível quando debruçamos sobre a vida e a 84 obra deste autor17. No entanto, similarmente à García (1989), utilizaremos o conceito de “afinidades eletivas”, tão interessante para uma leitura sociopolítica, quando o interesse é guiado pela aproximação dos problemas discutidos na modernidade pelos clássicos alemães e pelos romances de Franz Kafka.

O que nosso trabalho se mostra diferenciado é tentar dar uma força interpretativa ainda maior aos escritos de Kafka, ampliando o conceito sobre burocracia para o conceito de modernidade ocidental. É necessário deixar claro aqui que se trata de uma realidade prussiana em que o autor passou sua vida, onde a própria direção de seus estudos acadêmicos o levou a enfrentar diariamente toda a burocracia de sua época. E, provavelmente, é por este motivo que conseguiremos aproximar os romances kafkianos à realidade semelhante, a qual foi enfrentada e combatida pelos sociólogos selecionados.

[...] a descrição do funcionamento opaco e absurdo das instâncias burocráticas em O processo deve muito a essa experiência cotidiana – considerada, é verdade, não do ponto de vista da alta hierarquia institucional, mas do dos humildes trabalhadores aos quais se dirigia a simpatia de Kafka, vítimas de acidentes profissionais, perdidos nesse labirinto administrativo. (LÖWY, 2005, p. 111)

Na verdade, se ele teve o intuito de representar a vida sobre a sociedade de sua época, não basta apenas reduzi-lo à condição de um mero convivente e representante da burocracia: “Cada „chave‟ traz consigo uma verdade parcial; o mal delas é que, na medida em que se apresentam como „chaves‟, exageram a verdade parcial em que se baseiam e tende a reduzir os múltiplos e variados problemas da obra de Kafka a problemas de um único tipo” (KONDER, 1974, p. 186).

Portanto, não queremos dizer que os romances do autor não possuem um íntimo contato com as abordagens que não utilizaremos aqui. Na verdade, estamos querendo ampliar uma de suas interpretações sem, no entanto, tentar invalidar qualquer corrente interpretativa, pois todas somam, de alguma maneira, à compreensão maior de suas obras. Já em Adorno, ao combater as interpretações metafísicas de Kafka, anuncia de certo modo o ponto que queremos desenvolver. Através de uma leitura imanente dos textos, ele diz que os escritos do romancista possuem um tom de “extrema esquerda” (de sentido musical) (LÖWY, 2005), que representa o ponto de conexão que iremos desenvolver. Segundo Löwy (2005, p. 85 57), a interpretação de Adorno infere que: “a problemática de sua obra não é metafísica, mas histórica: a sociedade (burguesa) moderna”.

É necessário dar a este autor um foco mais amplo, não da maneira de Michael Löwy (2005) que, mesmo percebendo em Adorno uma leitura kafkiana sobre a crítica à sociedade, muitas vezes ainda se retém a analisar o espectro burocrático, e não da sociedade burguesa. Assim, cremos que seja possível compreender o conjunto de sua obra como uma representação imagética de um mundo discutido amplamente pelos teóricos clássicos abordados.

Não basta apenas afirmar que ele dirigiu sua representação para, e apenas para, este problema real e muito significativo de sua época. Parece-nos que ele não se importou apenas com a burocracia, mas com a vida tomada como um todo, e é este ponto que queremos afirmar: Kafka não representou apenas a burocracia de sua época, mas também escreveu sobre a dinâmica da vida moderna: “Sim, é certo. Não sou um esquimó, mas vivo, como a maioria das pessoas de hoje, em um mundo glacial”. (KAFKA, 1983, p. 43)

Uma leitura aprofundada mostra que o ambiente de suas obras é sempre soturno porque as mudanças modernas acontecidas durante sua vida foram extremamente influenciadoras em suas obras. Compreender Kafka sobre apenas uma ótica limita a capacidade da representação de seus trabalhos, no aspecto em que propomos. Se for injusto afirmar que essa profusão de trabalhos sobre sua obra é míope, podemos ao menos dizer que o foco de discussão esteve muitas vezes limitado. Adicionando à nossa proposta, Konder também já anunciava esta possibilidade de interpretação: “As estórias de Kafka não são senão visões agudíssimas de alguns dos problemas cruciais do mundo moderno. A ficção só „exagera‟ a verdade para que a verdade seja compreendida em toda a sua profundidade” (1974, p. 200, grifos nossos). Isso mostra que o espectro burocrático pode sem realmente ampliado.

Exatamente por este motivo que não selecionaremos aqui algum autor interpretativo das obras kafkianas com o qual poderíamos discutir diretamente, o que não inviabiliza, é claro, a utilização destes para dar mais ênfase à nossa proposta. Utilizaremos em grande parte interpretações diretas de seus romances, cartas e diários e conversas para realizarmos a leitura no qual propomos.

Portanto, tentaremos aqui fazer uma leitura sociopolítica que coadunará com os clássicos alemães selecionados e, com isso, compreender como esta esfera literária discutida por Habermas pôde e, pela constatação de Löwy (2005), ainda pode absorver as representações de “seu mundo” a fim de discuti-los ante sua própria realidade. Ao mesmo tempo, estaremos atentos a Walter Benjamin quando este diz que “É com prudência, com circunspeção, com desconfiança, que se deve avançar tateando no interior destes escritos” (apud LÖWY, 2005, p. 07)."

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Fonte:
HENRIQUE ALMEIDA DE QUEIROZ: "KAFKA E A MODERNIDADE". (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, área de concentração: Cultura Democracia e Instituições, da Universidade Federal de Juiz de Fora, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre. Orientador: Prof. Dr. Raul Francisco Magalhães). Juiz de Fora, 2010.

Nota
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