Kafka: vida e obra



“A complexidade do escritor Franz Kafka se evidencia com a sua própria (in)definição. Tomemos, como exemplo, a citação de Durval Muniz de Albuquerque Jr.:

Judeu, tcheco, vivendo em uma Boêmia submetida ao Império Austro- Húngaro, dilacerado por tensões crescentes entre suas várias nações e etnias, falando e escrevendo em alemão, que poucos dominavam à sua volta, convivendo com uma sociedade judaica orgulhosa, rica e isolada do restante da sociedade, incapaz de se abrir para a cultura em que estava imersa, sendo vítima, por isso, de um sentimento e de um ódio que se mostravam cada vez mais intolerantes e agressivos, Kafka parece falar, em suas obras, deste devir que capta ao seu redor.
(ALBUQUERQUE JR., 2004, p. 25).

Há quem o defina como “boêmio-alemão-judeu” (MAYER, s/d), “austro-tcheco-alemão-judeu” (ANDERS, 1983), ou utilize somente um desses termos para caracterizá-lo. Na tentativa de se evitar uma definição errônea, por estar o autor inserido em todos estes grupos, acreditamos que a definição mais correta seja a de “escritor universal”, não só porque abrange a idéia de um escritor de ampla repercussão, mas também porque qualifica, de maneira correta, as suas obras que se mantêm atuais até os dias de hoje e que abordam problemas, igualmente, universais.

Dada à complexidade da própria definição do escritor e para melhor compreendê-lo, acredita-se que seja necessário contextualizá-lo, em seu espaço e seu tempo, como defende Vilém Flusser (1961, p. 3): “Torna-se necessário, para a compreensão do inquietante fenômeno Kafka, desta procura de Deus através do diabo, uma compreensão de Praga”. Assim, na esteira do crítico, voltaremos nossa atenção para sua cidade natal.

Praga foi fundada no século IX, tornando-se sede da Boêmia. A cidade começou a crescer no século XIII, mais precisamente em 1232 quando, por determinação de Wenceslau I, rei da Boêmia, implantaram-se comunidades constituídas por colonos de origem alemã. Na Idade Média, alcançou o seu apogeu sob o comando do Imperador Carlos IV, que fixou residência em Hradcany, fundando, em 1348, a primeira Universidade do Império. Em 1442, foi conquistada pelos hussitas, que se apoderaram da Universidade de Praga, levando os professores e estudantes alemães a emigrarem para Leipzig. Um grande incêndio afetou a cidade em 1541. Durante o século XVII, a cidade sofreu várias batalhas e derrotas e só voltou a recuperar o seu resplendor artístico no século posterior.

A cidade de Praga pertencia ao Império austríaco, o qual se dividia em duas partes: Cisleithânia e Translethânia. De um lado, da Áustria-Hungria, os magiares (húngaros) dominavam a região que era habitada pelos povos de origem tcheca, enquanto que do outro lado, encontrava-se uma minoria germânica dominante. O Imperador Francisco José I instaurou, em 1867, um sistema de monarquia dualista, concedendo à Hungria um estatuto semelhante ao da Áustria. O Tratado de Saint-German-en-Laye estabeleceu que a Áustria se transformaria em um Estado com território menor. O Tratado de Trianon, por sua vez, determinou que a Hungria passaria a ser um Estado independente. No entanto, ao longo dos anos, as contradições entre uma Hungria agrária e uma Áustria industrializada se tornavam cada vez mais acentuadas. Esta monarquia dualista durou até a derrota do Império Austro-Húngaro e da Alemanha, na I Guerra Mundial. Em 1918, o Império foi oficialmente dissolvido, quando se proclamou a República Democrática da Hungria. Neste mesmo ano, os tchecos e os eslavos juntaram-se e formaram a República Independente da Tchecoslováquia. Este país continha uma minoria alemã, o que levou à dissolução da Tchecoslováquia quando da anexação dessa minoria pela Alemanha, mediante o Acordo de Munique, em 1938.

Franz Kafka nasceu na comunidade judaica de Praga, uma minoria de língua alemã, na parte velha da cidade, em 3 de julho de 1883. O escritor era o filho mais velho do comerciante judeu Hermann Kafka (1852-1931) e de Julie, nascida Löwy (1856-1934), que provinha da comunidade judaica do sul da Boêmia. Hermann Kafka nasceu na comunidade de Osek, era filho de um açougueiro judeu e teve uma infância marcada por privações materiais. Ao emigrar para Praga, à custa de economias e de seu casamento com Julie Löwy, estabeleceu-se como comerciante médio, o que isentou seus filhos das privações que ele mesmo passara em sua infância.

Kafka não foi filho único. Teve três irmãs: Elli (1889-1941), Valli (1890-1942) e Ottla (1892-1943). Em Brief an den Vater (Carta ao pai), demonstra preferência pela irmã caçula e descreve com minúcia todas as suas angústias colegiais, os exames e os obstáculos a vencer. Além de suas irmãs, dois irmãos morreram ainda pequenos: Georg que nasceu em setembro de 1885, mas morreu de sarampo na primavera de 1887, e Heinrich, que nasceu em setembro de 1887 e morreu em 1888, vítima de otite.

Depois da infância difícil, a puberdade trouxe a magreza, o crescimento e a luta para manter-se ereto. Kafka odiava o seu corpo e tinha horror à intimidade física, o que relataria em uma de suas cartas dirigida ao pai:

Naquela oportunidade, e apenas naquela ocasião, teria necessitado de encorajamento. Se apenas com a tua presença física me esmagavas... Lembro, por exemplo, quando nos desvestíamos juntos em uma cabina. Eu, fraco, débil, enxuto; tu, forte, grande, amplo. Já na cabina sentia-me lamentável, e não somente diante de ti, mas diante de todo o mundo, pois eras para mim a medida de todas as coisas. Mas quando saíamos da cabina e íamos entre o povo, eu seguro pela tua mão, um esqueleto pequeno, hesitante, descalço sobre as tábuas, com medo da água, incapaz de imitar os teus movimentos ao nadar, que, com boa intenção, mas, na realidade para minha profunda vergonha, repetias constantemente para ensinar-me, então sentia-me profundamente angustiado, e todas as minhas experiências desalentadoras em todos os campos, nesses momentos, coincidiam perfeitamente. Preferia que te desvestisses primeiro e ficar sozinho na cabina, retardando a vergonha de minha apresentação pública até que, por fim, vinhas buscar-me e tiravas-me dali. Agradecia-te o fato de não pareceres notar minha angústia e também estava orgulhoso do corpo de meu pai. Por outro lado, ainda hoje persiste essa diferença entre nós.
(1997, p. 81).

No final da adolescência, muitos dos seus amigos já se arriscavam em prosa e verso na tentativa de se tornarem escritores. Kafka começou a escrever aos 15 anos, mas manteve seus escritos protegidos, longe dos olhos de seus amigos. Infelizmente quase todos os textos dessa época foram queimados pelo próprio escritor em 1907, quando estava com 24 anos, por conta de uma crise em relação a sua escrita. Quanto mais escrevia, menos seguro se sentia em escrever, pois o ato exigia rendição total, sinceridade e honestidade. Escrever significava, ao mesmo tempo, engajar-se e libertar-se, questionar a sua existência, o mundo dos valores, encarar a impossibilidade de escrever, nomear o silêncio. O próprio escritor comenta:

A maioria daqueles que começaram a escrever em alemão queriam fugir de seu judaísmo, em geral com o vago consentimento dos pais (o caráter vago era o que o tornava ultrajante). Queriam escapar, mas suas patas traseiras estavam ainda atoladas no judaísmo dos pais, enquanto as patas dianteiras não encontravam terreno seguro. E o desespero daí resultante servia-lhes de inspiração.
(KAFKA, 1921, p. 7).

De 1893 a 1901, freqüentou o Instituto Alemão de Altstädter Ring, onde conheceu Oskar Pollak (1883-1915), crítico de arte que o familiarizara com novos aspectos da vida artística. Pollak, interessado pela arte e pela teoria estética, estimulava em Kafka preocupações relacionadas “com estilo, na arte e na linguagem” (PAWEL, 186, p. 88). Nesta fase, Kafka sentia a necessidade de ter amigos, de ter uma companhia espiritual e intelectual, o que encontrou em Pollak.

A intensidade pouco característica e bastante unilateral do vínculo dele com Oskar Pollak expressara uma sede de contato de final de adolescência, uma necessidade de romper o isolamento e correr o risco de expor-se como escritor e como ser humano adulto
. (PAWEL, 186, p. 108).

Ao longo dos anos, freqüentou o curso de Engenharia no Instituto Técnico, que talvez possa ter exercido uma influência posterior na sua obra In der Strafkolonie (Na colônia penal). Ao final do estudo no Instituto Técnico, entre 1901 e 1906, cursou a Faculdade de Direito e estudou um ano de Filologia Românica. Concluído o curso de Direito, Kafka defendeu o doutorado nesta mesma área e, a posteriori, iniciou um estágio de um ano na prática jurídica.

Nos primeiros anos do século XX, Kafka teve uma participação discreta na vida cultural de Praga. A sua atuação nos colóquios literários desta cidade foi mais passiva do que de destacadas intervenções e poucos foram os amigos que compuseram o seu círculo de amizade. Dentre eles destacou-se Max Brod (1884-1968), que Kafka conhecera em 1902. O ensaísta e novelista de língua alemã, e tcheco de nascimento, ficou internacionalmente conhecido como o editor dos trabalhos de Kafka. Devido à sua insistência, os romances, as novelas e os contos de seu amigo foram enviados às editoras e aos jornais, especialmente após a morte do escritor.

Ainda neste mesmo ano de 1902, ao passar férias em Lübloch e Triesch, com seu tio Siegfried, Kafka reuniu elementos para a sua narrativa Der Landzart (Um médico da aldeia). Em fins de 1903 e começo de 1904, escreveu a primeira versão de Beschreibung eines Kampfes (Descrição de uma luta), publicada em 1908, na primeira edição da Revista Hyperion. Este é o marco da sua estréia em texto impresso. Em janeiro de 1904, em carta dirigida ao seu amigo Pollak, deixa transparecer a sua posição frente ao fenômeno literário:

Acho que só devemos ler a espécie de livros que nos ferem e trespassam. Se o livro que estamos lendo não nos acorda com uma pancada na cabeça, porque o estamos lendo? Porque nos faz felizes, como você escreve? Bom Deus, seríamos felizes precisamente se não tivéssemos livros e a espécie de livros que nos torna felizes é a espécie de livros que escreveríamos se a isso fossemos obrigados. Mas nós precisamos de livros que nos afetam como um desastre, que nos magoam profundamente, como a morte de alguém a quem amávamos mais do que a nós mesmos, como ser banido para uma floresta longe de todos. Um livro tem que ser como um machado a quebrar o mar de gelo que há dentro de nós. É nisso que eu creio.
(KAFKA, Cartas aos meus amigos, s/d, p. 9).

Influenciado por Pollak, lia regularmente a revista Der Kunstwart, pela qual entrou em contato com a literatura de Nietzsche e Hoffmannsthal. Além disso, aumentava o seu interesse pela documentação pessoal de Goethe, Grabbe, Hebbel, Byron, Amiel, Stifter, Kleist, Grillparzer, Thomas Mann, Robert Walser e Flaubert. Em Briefe an Felice (Cartas à Felice), Kafka demonstra o seu grande interesse por Flaubert:

Quanto a Educação sentimental, é um livro que, durante muitos anos, tocou- me tão a fundo quanto o fazem dois ou três seres humanos. A qualquer momento e em qualquer lugar que eu o abra, ele me deixa sobressaltado, com medo e toma-me inteiramente, e cada vez mais eu me sinto como um irmão espiritual desse escritor, ainda que pobre e infeliz
. (15 nov. 1912). (KAFKA, 1985, p. 10).

Ao longo de toda a sua vida, Kafka se deixou influenciar fortemente pela literatura, os livros foram seus verdadeiros mestres, seus companheiros mais íntimos e, muitas vezes, seus antagonistas mais perigosos. Ele amava os livros, amava senti-los nas mãos, vê-los nas prateleiras. Suas primeiras leituras foram os contos de fadas, mais tarde, dedicou-se ao suspense. Leu sempre, passando por Conan Doyle, Knut Hamsun3, Sven Hedin4, James Fenimore Cooper Júlio Verne.

No ano de 1907 começou a escrever para a Revista Hyperion, fase esta em que produziu textos como o conto “Hochzeitsvorbereitung auf dem Lande” (Preparativos de um casamento no campo), ao mesmo tempo em que trabalhava na Companhia de Seguros Assicurazioni Generalli. Neste mesmo ano, mudou-se, enfim, para a Rua S. Nicolau.

Em 1908, esta mesma Revista, dirigida por Franz Blei e Carl Sterheim, publicou pela primeira vez uma seleção de textos de Kafka. Editada anualmente em seis fascículos, os quais só podiam ser vendidos juntos, a Revista Hyperion teve uma tiragem de 1050 exemplares. Como parte do seu quadro de colaboradores estavam Rilke, Barrès, Borchardt, Brod, Croce, Gide, Hofmannstahl, Musil, Schickele, Sternheim, entre outros (cf. Anexo I). Em janeiro-fevereiro, no 1º volume da Revista, no fascículo 1, encontra-se Betrachtung (Contemplação), uma seleção de oito textos de Kafka: “Der Kaufmann” (O comerciante), “Zerstreutes Hinausschauen” (Contemplação vaga na janela), “Der Nachhauseweg” (Volta ao lar), “Die Vorüberlaufenden” (Os Transeuntes), “Kleider” (Vestidos), “Der Fahrgast” (O Passageiro), “Die Abweisung” (A rejeição) “Die Bäume” (As árvores) (cf. Anexo II).

Bohemia
, um jornal matutino de Praga, também portando o título Betrachtungen (Contemplações), publicou em 27 de março de 1910 os seguintes textos de Kafka: “Am Fenster” (Na janela), “Nachts” (À noite), “Kleider” (Vestidos), “Der Fahrgast” (O passageiro) e “Zum Nachdenken für Herrenreiter” (Para que os cavaleiros meditem). Algumas alterações se notam entre estas duas publicações. Kafka introduziu o texto “Zum Nachdenken für Herrenreiter” (Para que os cavaleiros meditem) e suprimiu “Der Kaufmann” (O comerciante), “Der Nachhauseweg” (Volta ao lar), “Die Abweisung” (A rejeição) e “Die Bäume” (As árvores). Em futuras publicações “Am Fenster” (Na janela) foi substituída por “Zerstreutes Hinausschauen” (Contemplação vaga na janela) e, finalmente, “Nachts” (À noite) por “Die Bäume” (As árvores).

Em 1910, Kafka entrou pela primeira vez em contato com o teatro iídiche, mais especificamente, com a Companhia de Lemberg e, no ano seguinte, freqüentando o Café Savoy, conheceu Jischak Löwy (1887-1942), diretor do referido teatro. Esta amizade levou Kafka a adquirir e a consultar obras sobre a cultura judaica. Depois de assistir à primeira peça iídiche, iniciou um estudo permanente sobre a história e a literatura judaicas, passou a ter aulas de hebraico e a revista sionista Selbstwehr tornou-se, então, uma leitura indispensável.

Como freqüentador habitual dos teatros, nos tempos de estudante, Kafka teve a sorte de viver em Praga, cidade que oferecia um cardápio teatral de excelente qualidade. O seu interesse pelo teatro o transformou em um crítico discriminador e incisivo, e em suas viagens ao exterior não perdia a oportunidade de assistir ao maior número de espetáculos. Dentre seus esforços literários na produção teatral, somente um fragmento de uma peça sobreviveu: parte de “Der Bau – Der Gruftwächter” (O guardião do túmulo). No ano de 1967 foi encontrada uma obra teatral inédita cuja autoria se atribuiu a Kafka, o que provocou e ainda provoca muitas dúvidas em vários especialistas. “A peça chama-se ‘O vôo em torno da lâmpada’ e teria sido esboçada por Kafka em 1922 para uma companhia teatral iídiche que então se apresentava em Praga” (PEÇA...., 1967, p. 1). Ao que tudo indica, na seqüência, Kafka pediu ao diretor Ludek Mandaus que a adaptasse à cena, o que somente se realizou, conforme o desejo do autor, em 1967.

Iniciou a escrita dos seus diários em 1910, aos 27 anos, completando o triângulo: cartas, diários, ensaios. As suas cartas e diários, além de possuírem um valor documental, são, acima de tudo, literatura. É neles que, muitas vezes, surgem as primeiras versões de seus contos e romances. Assim, por exemplo, “Die städtische Welt” (O mundo urbano), núcleo do seu conto “Das Urteil” (A sentença), aparecia escrito em seu diário, em fins de 1911. Esses textos documentais representam, segundo Ernst Pawel (1986, p. 259), “abstrações idealizadas”, pois mostram a disparidade entre o ser humano real e um outro, fruto da imaginação criativa do escritor.

Allain Robbe-Grillet, ao discorrer sobre a importância desse tipo de texto, afirma que os diários são exemplos de um novo realismo e nele o que chama a atenção do romancista não é o que “soa verdadeiro”, mas sim o pequeno detalhe que soa falso:

Assim, já no diário de Kafka, quando este anota as coisas vistas durante o dia no decorrer de um passeio qualquer, ele retém apenas fragmentos não apenas sem importância como ainda aqueles que lhe surgiram como que separados de seu significado – portanto separados de sua verossimilhança – desde a pedra abandonada sem que saiba porque no meio de uma rua, até o gesto estranho de um transeunte, gesto inacabado, desajeitado, que não parece responder a nenhuma função ou intenção determinada. Objetos parciais ou separados de seu uso, instantes imobilizados, palavras separadas de seu contexto ou então conversas misturadas, tudo aquilo que soa um pouco falso, tudo aquilo a que falta naturalidade, é exatamente isso que oferece ao ouvido do romancista o som mais adequado possível.
(ROBBE-GRILLET, 1969, p. 109).

Nos últimos meses de 1911 e início de 1912, Kafka escreveu alguns contos que fariam parte de seu primeiro livro, Betrachtungen (Contemplações), publicado pela Rowohlt e sob a influência de Max Brod, que o auxiliou na seleção dos textos: “Blumfeld, ein älter Junggeselle” (Blumfeld, um solteirão azarado), “Entlarvung eines Bauernfänger” (O desmascaramento de um trapaceiro), “Der plötzliche Spaziergang” (O súbito passeio), “Entschlüsse” (Resoluções) e “Wunsch, Indianer zu werden” (O desejo de ser um Pele-Vermelha), “Kinder auf der Landstraβe” (Meninos em um caminho de campo), “Der Ausflug ins Gebirge” (A subida à montanha), “Der Kaufmann” (O comerciante), Zerstreutes Hinausschauen” (Contemplação vaga na janela), “Der Nachhauseweg” (Volta ao lar), “Die Vorüberlaufenden” (Os transeuntes), “Der Fahrgast” (O passageiro),Kleider” (Vestidos), “Die Abweisung” (A recusa), “Zum Nachdenken für Herrenreiter” (Para que os cavaleiros meditem), “Das Gassenfenster” (A janela para a rua), “Die Bäume” (As árvores) e “Unglücklichsein” (Infelicidade). Destes 18 textos, nove já haviam sido publicados. Entretanto, Kafka relutou em publicar este livro, e isto fica claro nas palavras dirigidas ao editor Kurt Wolff, no final do encontro para a entrega da última versão, palavras essas que merecem destaque: “Ich werde Ihnen immer viel dankbarer sein für die Rücksendung meiner Manuskripte als für deren Veröffentlichung". (DIETZ, 1969, p. 73).

O conto Der Verschollene” (O desaparecido), que mais tarde se transformaria no romance Amerika (América), foi escrito neste mesmo ano da entrega do manuscrito Betrachtung (Contemplação) e publicado em dezembro. Assim como Der Prozeβ (O processo) e Das Schloβ (O castelo), Amerika (América), inacabado e sem título, é publicado postumamente. Kafka recusou-se a mostrar a primeira versão do romance, destruindo-a. Também escreveu “Strafen” (A condenação), com a intenção de publicá-lo juntamente com “Der Heizer” (O foguista) e “Die Verwandlung” (A metamorfose) em um volume chamado Die Söhne (Os filhos). Isto não ocorreu, pois o editor Kurt Wolff considerou a publicação inviável. Kafka recebeu os primeiros exemplares encadernados de Betrachtung (Contemplação), em dezembro de 1912.

Em 13 de agosto de 1912, encontrou-se pela primeira vez com Felice Bauer e, em setembro, começou a se corresponder com ela. Em maio de 1913 (ano de publicação de “Der Heizer” - “O foguista”) conheceu a família de Felice, e em agosto deste mesmo ano, o escritor passou pela primeira crise em seu relacionamento, rompendo seu compromisso em setembro, quando começava a se corresponder com Grete Bloch.

Um jornal de Praga publicou, em abril de 1914, o anúncio do noivado de Felice e Kafka, cuja recepção aconteceria em 1º de julho. O relacionamento, que fora retomado em abril, é mais uma vez desfeito em julho. Sob este clima tenso, Franz Kafka escreveu “In der Strafkolonie” (Na colônia penal) e começou a escrever Der Prozeβ (O processo).

No ano de 1915, escreveu “Die Verwandlung” (A metamorfose) e, no campo afetivo, restabeleceu suas relações com Felice, firmando-se, então, um novo compromisso em julho de 1917 que se romperia definitivamente em dezembro. Felice casou-se, um ano mais tarde, com um banqueiro de Berlim, com quem teria um casal de filhos. Em 1936, ao fugir com a família para os Estados Unidos, ela levou consigo as mais de cento e cinqüenta cartas que recebera de Kafka, mantendo-as em segredo até mesmo de seus filhos. Essas cartas na época não tinham outro valor a não ser o sentimental, pois Kafka era praticamente um escritor desconhecido. Somente após a II Guerra Mundial, Max Brod alertaria o editor Zalman Schocken, em Nova Iorque, sobre a existência dessas cartas. Felice, por muitos anos, recusara-se a cedê-las, mas em 1955, quando já estava adoentada, aceitou a oferta de cinco mil dólares. Estas cartas e as escritas à Milena Jesenká, com quem o escritor começara a se corresponder em 1920, foram postas à venda em 1970 e renderam um estrondoso lucro a Zalman Schocken.

Ainda em 1915, Kafka recebeu o prêmio Theodor Fontane. Na verdade, o prêmio foi conferido a Carl Sterheim, que o aceitara e transferira a Kafka, juntamente com os 800 marcos que o acompanhavam. Com este gesto Carl Sterheim, que jamais se encontrara com Kafka, conseguiu chamar a atenção para a obra do escritor, o que motivou o editor Kurt Wolff a reeditar Betrachtung (Contemplação)

Em outubro de 1915 surgiu a primeira edição de Die Verwandlung (A metamorfose): primeiro, sob a forma de um periódico literário mensal de Leipzig, Weisse Blätter, organizado por René Schickele e, em novembro, em um volume da série Dommsday, de Kurt Wolff. Kafka cuidou de todos os detalhes e sentiu-se aflito com o desenho que estamparia a capa do volume:

Uma vez que Stark é ilustrador, ocorreu-me que poderia querer desenhar o próprio inseto. Isso não, por favor, isso não. Não pretendo invadir uma área que compete a ele, mas apenas fazer-lhe um apelo em função de meu conhecimento, naturalmente mais íntimo, da história. O inseto como tal não pode ser retratado. Não pode sequer ser mostrado à distância
. (PAWEL, 1986, p. 331).

A Galeria Goltz de Munique, uma galeria de arte de vanguarda, no final de outubro de 1916 convidou Kafka para fazer uma leitura pública de suas obras. As escolhidas “In der Strafkolonie” (Na colônia penal), “Das Urteil” (A sentença) e “Der Landzart” (Um médico rural), para sua surpresa, obtiveram a aprovação dos ouvintes. Não se sabe ao certo, se nesse momento Rilke esteve presente, nem se ele o conheceu, mas Kafka afirmaria em uma carta à Felice, que Rilke fez comentários generosos sobre “Der Heizer” (O foguista), “Die Verwandlung” (A metamorfose) e “In der Strafkolonie” (Na colônia penal). O interesse de Rilke pelo escritor se confirmaria em uma carta que o mesmo dirigiu a Kurt Wolff, na qual lhe pediu para que fosse informado sobre qualquer nova obra de Franz Kafka, classificando-se como um de seus leitores mais dedicados (WOLFF. Briefwechsel, p. 152).

Entre 1916 e 1917, Kafka produziu a maior parte dos contos publicados em vida: “Die Brücke” (A ponte), “Der Jäger Gracchus” (O caçador Graccus), “Leiter von Gegenkräften” (O condutor de Draga), “Schakale und Araben” (Chacais e árabes), “Der neue Advokat” (O novo advogado), “Der Landzart” (Um médico de aldeia), “Auf der Galerie” (Na galeria), “Ein Besuch im Bergwerk” (Uma visita à mina), “Das nächste Dorf” (O povoado mais próximo), “Ein Brudermord” (Um fratricídio), “Der Nachbar” (O vizinho), “Beim Bau der chinesichen Mauer” (A grande muralha da China), “Ein altes Blatt” (Um velho manuscrito), “Der Schlag ans Hoftor” (A batida no portão da propriedade), “Elfsöhne” (Onze filhos), “Der Riesenmaulwurf” (Um animal híbrido), “Bericht für eine Akademie” (O relato de uma academia) e “Die Sorge des Hausvaters” (Preocupação de um pai de família). Estes contos, juntamente com o fragmento teatral “Der Gruftwächter” (O guardião de túmulos), foram submetidos à avaliação de Kurt Wolff para uma possível publicação. A sua efetiva publicação, intitulada Der Landzart (Um médico rural), só ocorreria em 1919. Kafka estava certo de que este seria o seu último livro. Em seguida, trabalhou regularmente, mas a maior parte de sua produção foi rasgada. As restantes foram intituladas e publicadas postumamente por Max Brod: “Die Stadtwappen” (O brasão da cidade), “Vor dem Gesetz” (Diante da lei), “Der Geier” (O abutre), “Die Prüfung” (A prova), “Nachts” (À noite), “Die Truppenaushebung” (O recrutamento de tropas), “Der Steuermann” (O timoneiro), “Der Kreisel” (O pião), “Der Nachhauseweg” (Volta ao lar).

No ano de 1918, em Schelesen, Kafka conheceu Julie Wohrysek, a filha de um sacristão da sinagoga, assumindo um compromisso em 1919 e chegando, até mesmo, a afirmar que desejaria se casar com ela e ter filhos, contudo, um dos obstáculos encontrados fora a oposição de seu pai. Hermann Kafka não aceitava que seu filho se casasse com a filha de um empregado da sinagoga. Por essa razão, o compromisso se romperia no ano seguinte.

Em 1920, Kafka conheceu Gustav Janouch, filho de seu colega de serviço, que reuniria num livro as suas conversas com o escritor. Suas anotações foram publicadas somente depois da II Guerra Mundial sob o título Conversas com Kafka.

No mesmo ano de 1920, correspondeu-se com Milena Jesenká, que traduziu para o tcheco Der Heizer (O foguista) e Betrachtung (Contemplação). Nascida em Praga, em 1896, era filha de um cirurgião. Casada com um psicopata, que não lhe dava dinheiro suficiente, nem para a sua alimentação, adoeceu e se viu obrigada a trabalhar para o seu próprio sustento. Começou a escrever como free-lancer traduções do alemão para o tcheco. Por meio deste trabalho, estabeleceu o primeiro contato com Kafka, quando lhe escreveu a fim de expressar sua admiração pelos seus escritos e pedir autorização para traduzir seus textos. Kafka, por sua vez, ficou satisfeito com a idéia e pediu a Wolff que lhe enviasse os exemplares de seus livros. Suas cartas passam a ser diárias e o envolvimento entre eles aumenta. O escritor admirava-a como pessoa e como escritora.

No dia 14 de agosto, Kafka encontrou-se com Milena em uma estação entre Praga e Viena. Ela, mesmo infeliz, continuava casada, pois seu marido estava doente e não tinha como abandoná-lo naquele momento. Esse encontro marcaria o fim do relacionamento e as cartas reduziram-se até cessarem. Em 1921 dirigiu-lhe pela última vez algumas palavras:

Fora disso, há muito que estavas de acordo comigo sobre a conveniência de que não nos escrevêssemos mais; que justamente eu o tenha proposto apenas foi uma causalidade, do mesmo modo terias podido propô-lo tu. E como estamos de acordo, não é necessário explicar por que é conveniente que não nos escrevamos
. (KAFKA, Cartas à Milena, s/d, p. 205).

Dora Dymant (1904-1952), uma polonesa, judia ortodoxa, surgiu na vida de Kafka em 1923, e manteve com ele uma relação feliz até a sua morte. Duas vezes noivo de uma mesma mulher, Felice Bauer, não se casaria nem com ela, nem com nenhuma outra mulher: nem Milena Jesenká, Julie Wohrysek e nem mesmo Dora Dymant.

Grande parte de sua produção literária foi escrita nos anos 20. Assim, por exemplo, em 1922, escreveu “Poseidon” (Poseidon), “Nachts” (À noite), “Vor dem Gesetz” (Diante da lei), “Forschungen eines Hundes” (Investigações de um cão), “Eine kleine Frau” (Uma pequena mulher); “Ein Hungerkunstler” (Um artista da fome) e Das Schloβ (O castelo). De vola a Praga, neste mesmo ano, Kafka escreveu “Das Ehepaar” (O casal), “Gib’s auf!” (Desista!) e “Von den Gleichnissen” (Das parábolas), além de revisar “Forschung eines Hundes” (Investigações de um cão). No ano seguinte, Brod colocou Kafka em contato com a editora Die Schmiede, para quem entregou “Ein Hungerkunstler” (Um artista da fome), “Erstes Leid” (O primeiro desgosto), “Eine kleine Frau” (Uma pequena mulher) e “Josefine, die Sängerin oder Das Volk Mäuse” (Josefina a cantora ou o povo dos ratos), publicados alguns meses depois da morte do autor. Os editores adquiriram os direitos autorais das obras subseqüentes, mas publicaram somente Das Schloβ (O castelo, 1926) e Amerika (América, 1927).

Em 1923, a doença, que teve a sua primeira hemoptise em 1917, se agravava. No ano seguinte, a tuberculose atacou-lhe a laringe. Alternando temporadas em sanatórios (Sanatório em Wienerwald – Clínica Universitária de Viena – Sanatório de Kierling) e com o trabalho burocrático, nunca deixou de escrever (“Tudo o que não é literatura me aborrece” (KAFKA, 1985)). Embora publicasse pouco, já no fim da vida, pediu ao amigo Max Brod que queimasse os seus escritos – no que evidentemente não foi atendido.

Kafka morreu em 3 de junho de 1924, um mês antes de completar 41 anos, no Sanatório de Kierling e foi enterrado em Praga.

Na sua cidade natal encontram-se os seus traços meditativos, em tamanho natural, moldados em bronze negro na parede de um edifício na Rua Maisel, onde nascera. Há, também, uma escultura feita pelo artista tcheco Jaroslav Rona, inspirada especialmente no conto “Beschreibung eines Kampfes” (Descrição de uma luta). O monumento está erguido entre uma Sinagoga Espanhola e a igreja de Holy Spirit, lugar que simboliza a religião e a cultura da cidade.

No dia de sua morte, o jornal Prager Presse publicou o comovente tributo de Max Brod ao amigo, além de vários extensos obtuários publicados na imprensa de língua alemã. No dia 19 de junho cerca de 50 pessoas se reuniram em uma cerimônia em memória de Kafka, no auditório do Teatro de Câmara Alemão, em Praga. No resto do mundo, a sua morte passou quase despercebida, mesmo entre seus conterrâneos.

Kafka viveu praticamente a vida inteira em Praga, exceção feita ao período final (novembro de 1923 a março de 1924), passado em Berlim, onde ficou longe da presença esmagadora do pai, que nunca reconheceu a legitimidade da sua carreira de escritor. Em uma carta à Felice, em 16 de novembro de 1912, sua mãe afirma que não acreditava na sua carreira: “[...] Nesses momentos de folga ele se ocupa da literatura, eu sei há anos. Mas eu acho que isso é apenas um passatempo [...]” (KAFKA, 1985, p. 8). Todos nós sabemos que a verdade é o oposto, como escreveu Max Brod a Felice em 22 de novembro de 1912: “[...] a mãe de Franz o ama muito, mas ela não faz a menor idéia do que seja seu filho, nem conhece suas necessidades. A literatura um passatempo!” (KAFKA, 1985, p. 9). Para Kafka, escrever foi muito mais do que isso:

Minha maneira de viver está organizada unicamente em função da literatura e, se ela sofre algumas modificações no decorrer do tempo, é simplesmente para responder o melhor possível às exigências do meu trabalho, pois o tempo é curto, as minhas forças são mínimas, o escritório é um lugar terrível, o apartamento é barulhento e é preciso esforçar-se habilidosamente para se desembaraçar nos negócios, já que não se pode deixar o trabalho devido à procura de uma vida honesta e boa.
(1º de novembro de 1912). (1985, p. 11).

Quase desconhecido em vida, Kafka é considerado hoje – ao lado de James Joyce e Proust – um dos maiores escritores do século. Vinte anos após a sua morte, conquistou inédito prestígio mundial, e é considerado o escritor que melhor captou as angústias do homem moderno: “Cem anos após seu nascimento, Franz Kafka, é mais do que nunca, nosso contemporâneo. Suas estranhas histórias fazem ver com grande realidade, aspectos absurdos de situações que vivemos diariamente.” (KONDER, 1983, p. 2).

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Fonte:
IEDA MARIA FERREIRA NOGUEIRA SILVA: "RECEPÇÃO DE FRANZ KAFKA EM PERIÓDICOS CARIOCAS E PAULISTAS: 1941-1983". (Tese apresentada à Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP – Universidade Estadual Paulista para a obtenção do título de doutora em Letras (Área de Conhecimento: Literatura e Vida Social). Orientadora: Dra. Marlene Holzhausen) Assis, 2006.

Nota
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As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

Disponível digitalmente no site: Domínio Público

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