“Stanzel lembra que os primeiros romances do século XIX tinham uma pronunciada preferência pelo estilo não-perspectivo: Dickens, Thackeray, George Eliot, Balzac, Tolstoy estão entre os que cultivaram tal estilo. A tendência ao perspectivismo é anunciada primeiramente nas novelas de Flaubert e Henry James, diz Stanzel, tornando-se predominante no século XX. As causas para isso são literárias e não-literárias, segundo o autor. As literárias ligam-se ao fato de escritores como Flaubert e James objetivarem construir narrativas impessoais e cênicas. Assim, subordinando-se a descrição espacial ao ponto de vista das personagens, o narrador fica isento de intrometer-se, esclarecer dados, interferir na narrativa. As causas não-literárias podem ser relacionadas ao aparecimento do Impressionismo no final do século XIX. Com o advento do Impressionismo, passa a predominar a percepção individual e subjetiva. Segundo Stanzel, portanto, o desenvolvimento do romance no curso do século XIX tem um efeito decisivo para a descoberta da perspectiva como uma dimensão da apresentação literária.
Carlos Reis analisa o desenvolvimento e a evolução da perspectiva nos romances queirosianos em Estatuto e perspectiva do narrador na ficção de Eça de Queirós. Em Introdução à leitura dos Maias, resume seu pensamento:
uma visão de conjunto lançada sobre o romance realista e naturalista, no século XIX, mostra claramente que as intenções programáticas responsáveis por este tipo de narrativa e os fundamentos sociológicos que lhe subjazem aconselham uma utilização preferencial de uma perspectiva omnisciente.
Em geral, na narrativa realista do século XIX, o narrador apresenta-se como um demiurgo, com capacidade de caracterizar exaustivamente as personagens e os lugares. Entretanto, ainda neste período, diz o crítico: manifestam-se “sinais evidentes de ruptura e inovação; com Stendhal e com Flaubert e, entre nós [em Portugal], já com o Eça d’O crime do padre Amaro, começa a revelar-se um certo privilégio do ponto de vista das personagens inseridas na diegese”. Integrado ao espaço representado, é com e como a personagem que o narrador vê, sente e julga os eventos na ficção.
Os preceitos da escola realista-naturalista apresentam, portanto, duas tendências: a partir de Flaubert, a ótica do narrador onisciente, dominante em Balzac, tende a recuar e entregar-se para a visão dos protagonistas. Como resultado, a muito gabada objetividade realista passa a ser permeada pela apreensão subjetiva das personagens. No caso de Eça de Queirós, essa apreensão subjetiva das personagens pode ser mais facilmente detectada na construção do espaço, uma vez que n’O crime do padre Amaro e n’O primo Basílio ainda predomina a visão “por detrás” do narrador para revelar personagens e ações. É, pois, sobretudo a composição do espaço em Eça de Queirós que chama a atenção para uma apreensão perspectiva do mundo representado.
Osman Lins, ao abordar a relação do ponto de vista com o espaço, nomeia de franca a ambientação em que “o narrador introduz pura e simplesmente a descrição”, mostrando-se como um observador declarado; reflexa, “quando as coisas sem engano possível são percebidas pela personagem” e dissimulada quando “os atos das personagens fazem surgir o que as cerca”. Devendo à sua análise, meu estudo enfoca a relação que o observador estabelece com o espaço e o modo como tal relação é apresentada pela narrativa. Nesse sentido, distingo três maneiras de apresentar o espaço: 1) a apresentação do espaço é declaradamente do narrador, ele vê além do que pode ver a personagem, podendo descrever os lugares em que ela (ainda/ já) não está presente; 2) a percepção do espaço parece ser da personagem, por permanecer limitada ao seu ponto de vista, mas o narrador não esclarece que assim é; 3) a percepção do espaço é da personagem, conserva-se nos limites do que ela pode ver e o narrador deixa isso claro.
Grande parte das descrições nos três romances de Eça em estudo dificulta discernir quem vê, uma vez que o narrador tende a aderir ao ponto de vista das personagens, sem explicar que faz isso. O leitor pode mais facilmente deduzir quem fala – a não ser em situações de discurso indireto livre que confundem as vozes do narrador e das personagens – porém é mais difícil compreender exatamente quem percebe o espaço, pois, ao invés de a perspectiva manter-se coerente com a autoridade do narrador que descreve, predomina um ponto de vista que parte da situação limitada da personagem. Em geral, o espaço resulta da experiência, do movimento, do olhar das personagens, mesmo que, na maior parte das vezes, a percepção não seja apresentada como delas.
Dentre os modos de apresentação antes indicados, o primeiro tipo se refere àquela visão panorâmica do espaço que aparece sobretudo na abertura de alguns romances, com largo uso em narrativas de estilo realista-naturalista. O narrador demonstra um ponto de vista distante e autoritário, que aparenta ser absoluto, abarcar o espaço em sua totalidade. Segundo María Tereza Zubiaure, esse tipo de descrição, aparentemente apriorística e objetiva, favorece a impressão de que o espaço está aí, como se de um cenário teatral se tratasse, à espera das personagens. Já nos romances de Eça de Queirós em estudo, tal modo não prevalece. Ainda no início d’O crime do padre Amaro, quando o Cônego Dias “mostrou com satisfação ao coadjutor da Sé [...] uma carta que recebera de Lisboa, de Amaro Vieira”, observamos:
Era uma tarde de agosto e passeavam ambos para os lados da Ponte Nova. Andava então a construir-se a estrada da Figueira: o velho passadiço de pau sobre a ribeira de Liz tinha sido destruído, já se passava sobre a Ponte Nova, muito gabada, com os seus dois arcos de pedra, fortes e atarracados. Para diante as obras estavam suspendidas por questões de expropriação; ainda se via o lodoso caminho da freguesia de Marrazes, que a estrada nova devia desbastar e incorporar [...] Em roda da ponte a paisagem é longa e tranqüila. Para o lado donde o rio vem são colinas baixas [...]; embaixo, na espessura dos arvoredos estão os casais que dão àqueles lugares melancólicos uma feição mais viva e humana – com as suas alegres paredes caiadas que luzem ao sol, com os fumos das lareiras que pela tarde se azulam nos ares sempre claros e lavados. Para o lado do mar, para onde o rio se arrasta nas terras baixas entre dois renques de salgueiros pálidos, estende-se até os primeiros areais o campo de Leiria, largo, fecundo, com o aspecto de águas abundantes, cheio de luz. Da ponte pouco se vê da cidade; apenas uma esquina das cantarias pesadas e jesuíticas da Sé, um canto do muro do cemitério coberto de parietárias, e pontas agudas e negras de ciprestes; o resto está escondido pelo duro monte ouriçado de vegetações rebeldes, onde destacam as ruínas do Castelo, todas envolvidas à tarde nos largos vôos circulares dos mochos, desmanteladas e com um grande ar histórico./ Ao pé da ponte, uma rampa desce para a alameda que se estende um pouco à beira do rio. É um lugar recolhido, coberto de árvores antigas. Chamam-lhe a Alameda Velha. Ali, caminhando devagar, falando baixo o cônego consultava o coadjutor.
A fala é do narrador, mas ele mantém o olhar fixo apenas no que as personagens podem ver, “o resto” permanece “escondido”, como ele mesmo afirma. Essa noção fica mais evidente quando a narrativa deixa de usar o tempo verbal no pretérito (“Era uma tarde de agosto”) e passa a usá-lo no presente (“em roda da ponte, a paisagem é longa”), fazendo parecer que a situação do narrador se aproxima ainda mais da situação das personagens e que a narração concentra-se no que elas estão a ver.
A paisagem é descortinada aos poucos e sua conformação supõe o caminhar dos padres: a chegada na ponte, o olhar “para diante”, o olhar “em roda da ponte”, para o “lado donde o rio vem”, “embaixo, na espessura dos arvoredos”, “para o lado do mar”, até chegar “ao pé da ponte”. Limitando-se ao campo visual das personagens, tal construção espacial parece nascer da relação delas com o seu entorno. Assim também não há uma pausa total na narração enquanto se descreve o lugar: a seqüência de posições do olhar revela a travessia da ponte, o movimento das personagens e, em ausência, sugere a conversa que mantinham enquanto caminhavam.
Observamos outro exemplo:
Ficaram calados. A tarde descaía muito límpida; o alto céu tinha uma pálida cor azul; o ar estava imóvel. Naquele tempo, o rio ia muito vazio; pedaços de areia reluziam em seco; e a água baixa arrastava-se com um marulho brando, toda enrugada do roçar dos seixos/. Duas vacas [...] entraram no rio devagar [...]. Com a inclinação do sol a água perdia a sua claridade espelhada, estendiam-se as sombras dos arcos da ponte. Do lado das colinas ia subindo um crepúsculo esfumado, e as nuvens cor de sanguínea e cor de laranja que anunciam o calor faziam, sobre o lado do mar, uma decoração muito rica/. Bonita tarde! – disse o coadjutor”.
De acordo com Osman Lins, caracterizaríamos tal ambientação como franca, uma vez que é o narrador que se declara descrevendo o espaço; a princípio então a percepção seria dele, como se tivesse tomado uma espécie de “corpo invisível” que lhe permitiu revelar as notações espaciais. Na verdade, é justamente a possibilidade de assumir esse “corpo invisível” que permite ao narrador perceber o espaço conforme as personagens o fazem, restringir o seu foco ao que elas olham, sem ao mesmo tempo apresentar a percepção diretamente como delas. Ainda assim, a idéia de que são as personagens que percebem o espaço permanece, uma vez que a descrição respeita os limites do seu campo perceptivo.
Além disso, a narrativa de Eça de Queirós costuma deixar um sinal de que a percepção pode ser da personagem, para que o narrador não pareça estar se intrometendo na diegese. No caso em exemplo, a fala do coadjutor sobre a paisagem da tarde sugere que a percepção espacial, recém-mencionada, poderia ser dele: fica calado, como o início do excerto indica, e pode admirar com mais atenção a paisagem, chegando por fim a fazer comentários sobre a mesma.
De qualquer modo, há um corpo situado, olhos e ouvidos que percebem o espaço, e alguns aspectos dependem totalmente da posição de alguém, pois, caso a direção do olhar fosse diferente, o espaço também teria outra configuração: a cor espelhada da água e a imagem da sombra dos arcos ressaltam de acordo com o lugar de onde são olhadas; a impressão de que as sombras estendiam-se e de que o crepúsculo esfumado ia subindo também resulta de um ponto de vista particular. Em outras palavras, uma certa posição do olhar em relação ao objeto significa uma certa aparência do objeto, bem como uma certa aparência dos objetos vizinhos.
Quando da chegada do padre Amaro na cidade, notamos como é descrito o seu deslocamento do largo do Chafariz, onde desembarca, até a casa da S. Joaneira:
Eram quase nove horas, a noite cerrara. Em redor da praça, as casas estavam já adormecidas: das lojas debaixo da arcada saía a luz triste dos candeeiros de petróleo, entreviam-se dentro figuras sonolentas, caturrando em cavaqueira, ao balcão. As ruas que vinham dar à praça, tortuosas, tenebrosas, com um lampião mortiço, pareciam desabitadas.
A maneira de apresentação da cidade concentra-se nas impressões que as personagens em movimento podem ter, não revelando nada mais do que está ao alcance delas, o que é indicado pelos verbos usados: “entreviam-se”, “pareciam”. A descrição rápida e impressionista descarta a onisciência do narrador, que poderia oferecer uma imagem ampla da cidade, limitando-se a revelar, resumidamente, o que surpreende o padre recém-chegado.
De forma semelhante se apresenta a descrição da casa de S. Joaneira:
No meio da sala de jantar, forrada de papel escuro, a claridade da mesa alegrava, com a sua toalha muito branca, a louça, os copos reluzindo à luz forte dum candeeiro de abat-jour verde. Da terrina subia um vapor cheiroso de caldo, e na larga travessa a galinha gorda, afogada num arroz úmido e branco, rodeada de nacos de bom paio, tinha uma aparência suculenta de prato morgado. No armário envidraçado, um pouco na sombra, viam-se as cores claras de porcelana; a um canto ao pé da janela, estava o piano, coberto com uma colcha de cetim desbotado. Na cozinha frigia-se; e sentindo o cheiro fresco que vinha dum tabuleiro de roupa lavada, o pároco esfregou as mãos.
Há uma orientação corporal pressuposta na construção da sala. As relações entre as coisas descritas dependem de um sujeito posicionado, cujos sentidos distinguem, do todo escuro que o rodeia, o claro da toalha, os copos a refletir a luz; em relação a tal pessoa e aos objetos que coexistem em seu campo perceptivo, o armário permanece na sombra e, por isso, destacam-se dele as cores claras da porcelana. A personagem, situada em um ponto da sala, apenas pode ver da terrina um vapor subindo e sentir o cheiro de caldo, assim como só ouve os sons da comida a frigir na cozinha. E a informação de que Amaro esfregou as mãos diante de tais coisas só vem a confirmar que a percepção espacial se dá em conformidade com o que interessa aos olhos do padreco faminto, recém-chegado de viagem e naturalmente disposto a sentir o vapor cheiroso e a aparência suculenta do caldo.
No seu primeiro dia em Leiria, Amaro jantou na casa do Cônego Dias. Logo após o jantar, foram ambos dar um passeio pela estrada de Marrazes:
Uma luz doce e esbatida alargava-se por todo o campo; havia nos outeiros, no azul do ar, um aspecto de repouso, de meiga tranqüilidade; fumos esbranquiçados saíam dos casais, e sentiam-se os chocalhos melancólicos dos gados que recolhem.
A apresentação do lugar está implicada na percepção do corpo próprio das personagens, na sensação física de saciedade e satisfação, associada a uma visão interior que sente, na luz que vê, doçura; nos outeiros e no ar, tranqüilidade; no som dos chocalhos que ouve, melancolia. Tal percepção depende ainda mais do caráter e da situação existencial de quem vê, pois obviamente nem todos que olham para os outeiros sentiriam neles tranqüilidade. Aqui a descrição espacial sugere os sentimentos que caracterizam as personagens nessa ocasião e principalmente as impressões de Amaro sobre o começo de sua vida em Leiria. É o narrador quem fala, mas ele descreve de acordo com o que as personagens percebem, em coerência com o estado de espírito delas.
As situações mencionadas já servem para exemplificar um aspecto que é recorrente nos romances de Eça de Queirós: o apoio da descrição na nomenclatura dos cinco sentidos (olfato, visão, ouvido, tato e paladar) e no uso de expressões como “tinha um aspecto de”, “um ar de”, “uma sensação de”, “uma aparência de”. Segundo Philippe Hamon, essas são as marcas da técnica impressionista. Tais modos de descrever sugerem que as coisas são o que é possível conceber delas pelos sentidos, e muitas vezes essa possibilidade responde a determinada inclinação emocional. Como resultado, “cada ambiente é, no romance de Eça, sugestivo de uma disposição da personagem focada – langor, cansaço, hostilidade, sensualidade, etc.; eis o que podemos designar como impressionismo”. Esse tipo de construção vem a confirmar o que explicou Stanzel sobre a ligação entre a apresentação perspectiva do espaço e o Impressionismo.
Até mesmo os objetos apresentados num determinado ambiente podem representar o que a personagem “quer ver” em certo momento de sua vida, a direção do olhar sugere certo estado de ânimo. Nesse sentido, notamos a construção do lugar
Amaro imaginava que o padre Natário enfim descobrira o liberal! / A saleta parecia muito fria com a luz pequenina da vela sobre a mesa: e na parede, num velho painel muito escuro [...] destacava uma face lívida de monge e um osso frontal de caveira.
Mesmo que nesse fragmento haja uma quebra de parágrafo entre um período e outro, parece estar em causa a percepção de Amaro do lugar (“Amaro imaginava que.../ A saleta parecia [a Amaro] muito fria”), inclinado a ver na parede sinais sinistros, conformes aos seus sentimentos de ódio e vingança.
O mesmo significado confirma-se na seguinte passagem: “[Amaro] Estava de pé no meio da saleta. Fora o vento uivava: a luz de avelã agitada fazia alternadamente destacar e reentrar na sombra do quadro o osso frontal da caveira”. É a situação corporal da personagem que se apresenta na cena, são os seus sentimentos que pulsam ali, daí que pareça também impor-se a sua percepção, ainda que o narrador não a esclareça como tal.
Esse efeito de sentido também resulta da apresentação da nova casa de Amaro, para a qual o padre sente-se obrigado a ir depois de ter beijado Amélia.
Parara [Amaro] no meio do quarto, punha-se a olhar em redor: a cama era de ferro, pequena, com um colchão duro e uma coberta vermelha; o espelho com o aço gasto luzia sobre a mesa; como não havia lavatório, a bacia e o jarro, com um bocadinho de sabonete, estavam sobre o poial da janela; tudo ali cheirava a mofo; e fora, na rua negra, caía sem cessar a chuva triste.
Observa-se no quarto o que nele é escasso, pobre, mal-cheiroso, o que condiz com a visão negativa que Amaro tem da sua vida nesse momento. De acordo com tal fase, nada mais natural que também a chuva se apresente ao padre como triste.
Os exemplos referidos dão uma amostra do que é recorrente nos romances em estudo: na construção do espaço, uma certa posição emocional em relação ao objeto significa muitas vezes uma certa aparência do objeto e dos objetos vizinhos. A caracterização do casarão da Ricoça, onde Amélia esconde sua gravidez, permite a mesma conclusão:
Quando se viu naquele casarão de Ricoça, num quarto regelado, pintado a cor de canário, lugubremente mobiliado com uma cama de dossel e duas cadeiras de couro, chorou [...] – torturada por um cão que debaixo das janelas [...] uivou até de madrugada/. Ao outro dia desceu à quinta a ver os caseiros. Era talvez boa gente com quem podia distrair-se. Encontrou uma mulher, alta e lúgubre como um cipreste, carregada de luto: um grande lenço negro tingido, muito puxado para a testa, dava-lhe um ar de farricoco; e a sua voz gemebunda tinha uma tristeza de dobre de finados [...]. Abalou bem depressa, foi ver o pomar: andava maltratado; as ruazitas estavam invadidas por um ervaçal úmido; e as sombras das árvores muito juntas, num terreno baixo, cercado de altos muros, davam uma sensação doentia.
O narrador evidencia, no início do excerto, que a percepção é da personagem, como também indicam os dois pontos, no exemplo anterior, sobre o quarto de Amaro. Ao apontar a influência desse meio lúgubre no ânimo da personagem, ele insinua que o tipo de ambiente, assustador, determina o tipo de sentimento, o caráter amedrontado de Amélia, ou seja, que tais características do lugar existem independentemente da percepção dela. No entanto, mais parece que o ambiente nasce com o olhar da personagem, pois só é descrito o que Amélia está emocionalmente inclinada a ver dentro do casarão, nas pessoas e no pomar. A aparência do lugar – com “ar de farricoco”, “tristeza de dobre de finados”, “sensação doentia” – mostra-se coerente com o estado melancólico de Amélia, dada a situação de carência, abandono e solidão em que se encontra. Desse modo, o espaço não parece ser antes da personagem, mas, isto sim, conseqüência da comunhão entre ela e o seu meio.
Tanto é assim que, conforme muda o estado de ânimo de Amélia, a paisagem que rodeia o casarão da Ricoça começa a ganhar uma aparência positiva: a moça, após conviver com “as palavras sensatas” do abade Ferrão, percebe “a quietação dos campos que se estendiam diante dela”, os quais lhe davam “desejos de paz e repouso”. Quando sua paixão avassaladora por Amaro parecia controlada pela influência do abade, “os dias iam muito serenos e tépidos. Era bom estar no terraço, pelas tardes, naquela serenidade outonal dos campos”.
A impressão de que há uma percepção particular implicada na construção espacial é mais intensa, n’O crime do padre Amaro, porque os lugares são revelados nas oportunidades que as personagens têm de observá-los e/ou senti-los. E tal constatação vale também para O primo Basílio, que usa o mesmo tipo de construção espacial, ligada fundamentalmente à percepção das personagens.
Após ler o anúncio da chegada do primo, Luísa abre a “portada da janela” e comenta com Jorge “que calor que lá vai fora”. O narrador parece então comungar do ponto de vista dela, sem explicar que o faz:
aqui, ali, naquela verdura crestada de verão, largas pedras faiscavam, batidas do sol perpendicular; e uma velha figueira brava, isolada no meio do terreno, estendia a sua grossa folhagem imóvel, que, na brancura da luz, tinha os tons escuros do bronze. Para além, eram as traseiras doutras casas, com varandas, roupas secando em canas, muros brancos de quintais, árvores esguias. Uma vaga poeira embaciava, tornava espesso o ar luminoso.
A paisagem resultante dessa descrição depende da posição do olhar, o “aqui e ali”, o “para além” deixam implícitos um mover de olhos que parece ser da personagem, pois há um campo visual limitado ao que ela pode enxergar da portada da janela. A descrição espacial se dá pela possibilidade da visão de alguém, da contemplação ou descoberta de um lugar. E tal possibilidade acaba por justificar a descrição do espaço, não se mostrando esta como gratuita à narração.
O quarto de Luísa, do mesmo modo, é descrito quando a amiga Leopoldina o visita:
Entraram no quarto. Luísa foi descerrar a janela, abrir o guarda-vestidos. Era um quarto pequeno, muito fresco, com cretones dum azul pálido. Tinha um tapete barato, de fundo branco, com desenhos azulados. O toucador, alto, estava entre as duas janelas, sob um dossel de renda grossa, muito ornado de frascos facetados. Entre as bambinelas, em mesas redondas de pé-de-galo, plantas espessas, Begônias, Macoimas, dobravam decorativamente a sua folhagem rica e forte, em vasos de barro vermelho vidrado/. Aqueles arranjos confortáveis lembraram decerto a Leopoldina felicidades tranqüilas.
Na última afirmação, o narrador insinua o olhar de Leopoldina sobre os objetos e infere a possível conclusão dela sobre a decoração do lugar. A sensação de realidade é alimentada no ato de Luísa abrir a janela e permitir à Leopoldina visualizar os pormenores do quarto – o narrador onisciente enxergaria muito bem no escuro, mas as personagens precisam de luz. Assim o ato de abrir as janelas para iluminar os ambientes fechados ou para que as personagens possam visualizar as paisagens externas, tão constantes nos romances ecianos, ligam a descrição realizada à contemplação das personagens e favorecem a idéia da necessidade da descrição.
Essa relação fica mais explícita, obviamente, quando o espaço recebe características que apontam para a visão interior das personagens, como já analisado n’O crime do padre Amaro. N’O primo Basílio, a visita de Leopoldina segredada a Jorge por Juliana e a conseqüente repreensão de Jorge a Luísa fizeram com que esta se encerrasse em seu quarto:
muito nervosa, foi encostar-se à vidraça/. O sol desaparecera; na rua estreita havia uma sombra igual, de tarde sem vento: pelas casas, de uma edificação velha, escuras, estavam abertas as varandas onde em vasos vermelhos se mirrava alguma velha planta miserável, manjericão ou cravo; ouvia-se, no teclado melancólico dum piano, a Oração de uma virgem, tocada por alguma menina, no sentimentalismo vadio do domingo; e na sua janela, defronte, as quatro filhas do Teixeira Azevedo, magrinhas, com os cabelos muito riçados, as olheiras pisadas, passavam a sua tarde de dia santo, olhando para a rua, para o ar, para as janelas vizinhas, cochichando se viam passar um homem – ou debruçadas, com uma atenção idiota, faziam pingar saliva sobre as pedras da calçada.
O olhar tristonho e a reflexão à janela são os pretextos para se descrever a paisagem humana da Patriarcal, sem se distanciar da perspectiva de Luísa. A descrição espacial está toda perpassada pela indisposição, o desgosto da personagem (sugeridos nos adjetivos usados: melancólico, miserável, vadio, idiota) que parece olhar com raiva a rua. Algumas expressões (manjericão ou cravo, dum piano; alguma menina; alguma velha planta), como nos outros exemplos já citados, apontam para o ponto de vista reduzido da personagem, que faz deduções sobre a paisagem só a partir do que pode ver da vidraça e do que sente em conseqüência do seu desentendimento com Jorge.
Após o envolvimento de Luísa com Basílio, quando vão ao Passeio, à noite, o lugar é percebido sob uma sensação de desfalecimento e fraqueza. Em algumas passagens, a percepção é identificada explicitamente como das personagens:
Luísa sentia-se mole; o movimento rumoroso e monótono, a noite cálida, a cumulação de gente, a sensação de verdura em redor davam ao seu corpo de mulher caseira um torpor agradável, um bem estar de inércia, envolviam-na numa doçura emoliente de banho morno.
Nesse exemplo, como também aconteceu na apresentação da casa de Ricoça, o narrador salienta a sujeição do corpo da personagem ao espaço – é o meio que dá, é o meio que envolve – negligenciando a idéia de que, na identificação do rumor, da monotonia e do aspecto cálido da noite, já estão implicadas as sensações físicas da personagem; a noção de que o espaço nasce da troca entre o sujeito que sente e o sensível, sem que um dos elementos seja o determinante.
Ainda na mesma cena:
Luísa olhava, calada. A multidão crescera. [...] Toda a burguesia domingueira viera amontoar-se na rua do meio [...] e ali se movia entalada, com a lentidão espessa duma massa mal derretida, arrastando os pés, raspando o macadam [...]. No meio da abundância das luzes e das festividades da música, um tédio morno circulava, penetrava como uma névoa: a poeirada fina envolvia as figuras, dava-lhes um tom neutro; e nos rostos que passavam sob os candeeiros, nas zonas mais diretas de luz, viam-se desconsolações de fadiga e aborrecimento de dia santo.
Novamente é a impressão sobre as coisas olhadas que permanece, tirando delas sempre “um aspecto de”, muito coerente com a sensação de torpor que acomete Luísa nessa noite: como as coisas, não há nela energia, vontade. Tal exemplo deixa ainda mais evidente que a percepção exterior da personagem é imediatamente sinônima de uma certa percepção de seu próprio corpo, assim como a percepção de seu próprio corpo se explicita na linguagem da percepção exterior.
A configuração que toma o espaço no romance, no entanto, nem sempre resulta do que sentem as personagens. N’O primo Basílio, por exemplo, há um momento em que, após sofrer as ameaças de Juliana, Luísa, chorosa, vai “encostar-se à janela. Estava um dia muito azul, muito doce. O sol punha grandes claridades de um dourado ligeiro sobre as paredes brancas, sobre a calada. E havia no ar uma suavidade aveludada”. Aqui, a revelação do espaço parece indiferente aos sentimentos da personagem, ainda que permaneça restrita ao que ela pode constatar da janela. O que faz diferir a qualidade das duas percepções supracitadas é a necessidade da narrativa, posto que, no último exemplo, Luísa contrasta o que vê ao que está vivendo: “todos eram felizes naquela manhã de rosas, só ela sofria, pobre dela!”. O uso criativo do motivo da natureza indiferente – convencional na literatura – em uma narrativa em que esse recurso é incomum, acaba por criar um efeito de estranhamento sobre a situação representada e servir para ironizar o caráter romântico da personagem.
Resultando da atividade das personagens, da sua atenção aos lugares, a descrição do espaço não parece representar uma pausa total na narrativa. Antes, aliás, chega algumas vezes a ocupar o lugar de uma ação, sugerindo o desenvolvimento da história, como acontece no seguinte exemplo
O teatro, quase vazio, estava lúgubre; aqui e além, nalgum camarote, uma família rica perfilava-se [...]; na platéia, à larga nas bancadas vazias, pessoas avelhadas e inexpressivas escutavam com um ar acalmado e farto [...]; na geral, gente de trabalho arregalava olhos negros em faces trigueiras e oleosas; a luz tinha um tom dormente; bocejava-se. E no palco, que representava uma sala de baile amarela, um velhote condecorado falava a uma magrita de cabelos riçados, sem cessar, com o tom diluído de uma água gordurosa e morna que escorre./ Sebastião saiu.
Nessa passagem, apenas se descreve o teatro, em vez de se narrar a busca de Sebastião por Luísa. Apesar de ser o narrador quem fale e não mencione explicitamente o olhar da personagem, pode-se sentir a presença dela a observar as bancadas. Supõe-se que Sebastião chegou ao teatro, lançou um ligeiro olhar sobre o camarote, a platéia, a geral, não encontrou Luísa e saiu. A importância da ação e da presença da personagem como motivadoras da descrição é que tornam esta necessária à narrativa.
D’O primo Basílio, destaca-se uma situação em que a perspectiva é obrigatoriamente do narrador – estando a personagem impossibilitada de olhar –, a qual chama a atenção por diferir do que predomina no romance. O narrador apresenta a casa de Sebastião:
morava ao fundo da rua, num prédio seu, de construção antiga, com quintal [...] Em toda a casa havia um tom caturra e doce; na sala de visitas, quase sempre fechada, o vasto canapé, as poltronas tinham o ar empertigado do tempo do Sr. D. José I, e os estofos de damasco vermelho desbotado lembravam a pompa duma corte decrépita; das paredes da sala de jantar pendiam as primeiras gravuras das batalhas de Napoleão [...]. Sebastião dormia os seus sonos de sete horas, sem sonhos, numa velha barra de pau-preto torneado; e numa saleta escura, sobre uma cômoda de fecharias de metal amarelo, conservava-se, havia anos, o padroeiro da casa, S. Sebastião – que se torcia, cravado de setas, nas cordas que o atavam ao tronco, à luz duma lâmpada [...]. A casa condizia com o dono. Sebastião tinha um gênio antiquado. Era solitário e acanhado.
É evidente aqui a ambientação franca, a visão onisciente, onipresente do narrador, que parece adentrar a casa de Sabastião e descrevê-la enquanto este dorme. Só a partir do olhar de alguém, por mais perspicaz que fosse sua observação, não se poderia saber que a sala permanecia “quase sempre fechada” e que o padroeiro existia sobre a cômoda “havia anos”. O narrador recorre ao seu conhecimento para sugerir, através da descrição da casa, o tipo de comportamento de Sebastião, sem que a narrativa envolva para isso a percepção de outras personagens.
Neste caso, a descrição espacial mostra-se necessária à narrativa, por estar também a serviço da caracterização da personagem. Esse é o tipo de descrição que Lukács defende, com base no modelo balzaquiano; ao mesmo tempo em que critica Zola, por construir cenários casuais e não úteis à representação das ações. Entendo, de qualquer modo, que, se ligada à percepção das personagens, a necessidade da descrição estaria garantida, por se relacionar aos agentes, resultar da atividade deles e ter a possibilidade de favorecer o andamento da intriga. Já quando a percepção é do narrador, a funcionalidade da descrição para a narração da história vai depender do modo como ela se liga ao entrecho narrativo, se serve à caracterização das personagens, se tem o papel de “preparar” o drama, criar expectativas sobre os conflitos, indiciá-los.
N’Os Maias, a percepção do espaço, igualmente demonstra um comprometimento com a orientação psicofísica das personagens. Já na abertura do romance, a voz do narrador vai aderindo aos poucos à perspectiva de Vilaça.
A casa que os Maias vieram habitar em Lisboa, no outono de 1875, era conhecida na vizinhança da rua de S. Francisco de Paula, e em todo o bairro das Janelas Verdes, pela casa do Ramalhete, ou simplesmente o Ramalhete. Apesar deste fresco nome de vivenda campestre, o Ramalhete, sombrio casarão de paredes severas, com um renque de estreitas varandas de ferro no primeiro andar, e por cima uma tímida fila de janelinhas abrigadas à beira do telhado, tinha o aspecto tristonho de Residência Eclesiática [...] O nome do Ramalhete provinha decerto dum revestimento quadrado de azulejos[...]./ Este inútil pardieiro (como lhe chamava Vilaça Júnior...) só veio a servir, nos fins de 1870, para lá se arrecadarem as mobílias e as louças provenientes do palacete da família em Benfica [...]/. Ao fim dum ano [...], do antigo Ramalhete só restava a fachada tristonha, que Afonso não quisera alterada por constituir a fisionomia da casa. E Vilaça não duvidou declarar que Jones Bule (como ele chamava ao inglês) [...] fizera do Ramalhete um “museu”./. O que surpreendia logo era o pátio, outrora tão lôbrego, nu, lajeado de pedregulho – agora resplandecente, com um pavimento quadrilhado de mármores brancos e vermelhos [...]. Em cima, na antecâmara, revestida como uma tenda de estofos do Oriente, todo o rumor de passos morria: e ornavam-na divans cobertos de tapetes persas, largos pratos mouriscos com reflexos metálicos de cobre [...] Daí partia um amplo corredor [...] As melhores salas do Ramalhete abriam para essa galeria. No salão nobre [...] havia uma bela tela de Constable, o retrato da sogra de Afonso [...]. Uma sala mais pequena, ao lado, onde se fazia música, tinha um ar de século XVIII [...]/ . Defronte era o bilhar, forrado dum couro moderno trazido por Jones Bule [...] e, ao lado, achava-se o fumoir, a sala mais cômoda do Ramalhete: as otomanas tinham a fofa vastidão de leitos; e o conchego quente, e um pouco sombrio dos estofos escarlates e pretos era alegrado pelas cores cantantes de velhas faianças holandesas/. Ao fundo do corredor, ficava o escritório de Afonso, revestido de damascos vermelhos [...] No corredor do segundo andar, guarnecido com retratos de família, estavam os quartos de Afonso. Carlos dispusera os seus, num ângulo da casa, com uma entrada particular, e janelas sobre o jardim: eram três gabinetes a seguir, sem portas, unidos pelo mesmo tapete: e, os recostos acolchoados, a seda que forrava as paredes, faziam dizer ao Vilaça que aquilo não era aposentos de médico – mas de dançarina!.
Como nos demais romances estudados, n’Os Maias, o narrador abstém-se, na maior parte das vezes, de dar informações que imponham sua autoridade, ultrapassem o que pode ser constatado pelas personagens, como se nota da explicação sobre o nome que identifica o palacete: “O nome do Ramalhete provinha decerto dum revestimento quadrado de azulejos”. A referência a Vilaça Júnior na abertura da descrição exemplificada (“E Vilaça não duvidou declarar que Jones Bule (como ele chamava ao inglês) [...] fizera do Ramalhete um ‘museu’/. O que surpreendia logo [Vilaça??] era...”) e no fecho (“e, os recostos acolchoados, a seda que forrava as paredes, faziam dizer ao Vilaça que aquilo não era aposentos de médico – mas de dançarina!”) aproxima a percepção do lugar à perspectiva dele. Para isso também contribui a adesão da narrativa, na segunda menção ao arquiteto, ao modo como Vilaça o denominava – “Defronte era o bilhar, forrado dum couro moderno trazido por Jones Bule” – denominação antes explicada pelo narrador entre parêntesis “(como ele chamava ao inglês)”, como se assim estivesse isolando sua intromissão da percepção da personagem que ali predomina.
Além disso, as expressões adverbiais que indicam a posição das partes da casa (“Em cima, na antecâmara”; “Daí partia um amplo corredor”; “As melhores salas do Ramalhete abriam para essa galeria”; “Uma sala mais pequena, ao lado”; “Defronte era o bilhar”; “ao lado, achava-se o fumoir”; “Ao fundo do corredor, ficava o escritório de Afonso”; “eram três gabinetes a seguir”) indicam a existência de um corpo em movimento que olha o palacete conforme o percorre e medeia as relações entre as coisas. Prevalece uma diferença entre essa descrição e a da casa de Sebastião n’O primo Basílio, em que a visão é necessariamente do narrador: “em toda a casa”, “na sala de visitas”, “das paredes da sala de jantar”, “numa saleta escura”, são os termos que lá predominam. No caso da cena d’O primo Basílio, tornam-se indiferentes as relações espaciais, a posição de um cômodo em relação ao outro, e o narrador oferece apenas uma visão geral da casa, sem ficar nítida sua situação enquanto observador.
A percepção da personagem pode ser deduzida pela presença dela na cena de que a descrição faz parte e pelo interesse que o lugar toma aos seus olhos, como indica a maioria dos fragmentos até aqui exemplificados. A quinta de Santa Olávia, por exemplo, é revelada ao velho Vilaça quando lá retorna depois de anos. Na sua chegada, Afonso o convida: “Venha você cá para dentro, Vilaça, que há muito que conversar”. No parágrafo seguinte: “Tinham entrado na sala de jantar, onde um lume de lenha na chaminé de azulejo esmorecia na fina e larga luz de abril; porcelanas e pratas resplandeciam nos aparadores de pau-santo”. Logo Afonso apresenta ao outro o quarto em que iria repousar: “o verniz dos móveis novos brilhava na luz das duas janelas, sob o tapete alvadio semeado de florzinhas azuis”. A narrativa não precisa explicar que é Vilaça que está a constatar os aspectos da casa, porque é evidente que só a ele interessam tais novidades, por conseguinte a noção do espaço parece surgir do que os seus olhos flagram ali.
Do mesmo modo é revelada a casa de Ega, conforme repousa o olhar de Carlos sobre as coisas que ali existem: “E a visita à casa continuou./ Na sala de jantar, quase nua, caiada de amarelo, um armário de pinho envidraçado abrigava melancolicamente um serviço barato de louça nova; e do fecho da janela pendia um vestuário vermelho, que parecia roupão de mulher”. A expressão “parecia roupão de mulher” confirma a restrição de campo da personagem, pois o narrador saberia dizer se aquelas eram realmente vestes femininas. Não se intrometendo, o narrador deixa que a residência de Ega seja apresentada conforme Carlos a reconhece e mantém o suspense.
N’Os Maias, a apresentação dos lugares por que passam Carlos, Cruges e Alencar quando retornam de Sintra oferece mais um exemplo de como a descrição inclui o movimento do foco, permitindo ainda perceber quem orienta a percepção espacial:
algum tempo o break rodou em silêncio, na beleza da noite. A espaços, a estrada aparecia banhada duma claridade quente que faiscava. Fachadas de casas, caladas e pálidas, surgiam, dentre as árvores, com um ar de melancolia romântica. Murmúrios de águas perdiam-se na sombra; e, junto dos muros enramados, o ar estava cheio de aroma. Alencar acendera o cachimbo e olhava a lua.
A descrição deixa implícito o olhar situado no “break” em deslocamento: a impressão de que a estrada aparecia, as fachadas surgiam, os murmúrios perdiam-se resulta da visão de alguém que passa rapidamente pelos lugares. E a caracterização recebida indica a percepção particular de Alencar, que projeta na paisagem suas impressões românticas.
Como nos demais romances, n’Os Maias também há ocasiões em que o narrador explicita de quem é a percepção, que se trata de uma ambientação reflexa:
seus olhos [de Carlos] se esqueciam, se perdiam, enlevados na religiosa solenidade daquele belo fim da tarde. Do lado do mar subia uma maravilhosa cor de ouro pálido, que ia no alto diluir o azul, dava-lhe um branco indeciso e opalino, um tom de desmaio doce; e o arvoredo cobria-se todo de uma tinta loura, delicada e dormente. Todos os rumores tomavam uma suavidade de suspiro perdido. Nenhum contorno se movia como na imobilidade de um êxtase. E as casas voltadas para o poente, com uma ou outra janela acesa em brasa, os cimos redondos das árvores apinhadas, descendo a serra numa espessa debandada para o vale, tudo parecera ficar de repente parado dum recolhimento melancólico e grave, olhando a partida do sol, que mergulhava lentamente no mar...
Entretanto, mesmo quando a percepção do espaço é mais diretamente ligada à personagem, há logo uma quebra de período, um ponto final, um travessão ou ainda uma mudança de parágrafo que separam o olhar da personagem da descrição do espaço – como indica a mudança de período no início desse exemplo (o mesmo formato predominou no caso de outros exemplos aqui citados, como na caracterização do casarão da Ricoça n’O crime do padre Amaro e do Passeio, n’O Primo Basílio). O fragmento, a partir daí, não explicita que é a personagem quem sente a suavidade dos rumores: eram os próprios rumores que “tomavam uma suavidade”, e o único verbo que refere a percepção de um sujeito é “parecera”, o qual, conjugado desse modo, não deixa claro de quem é a impressão. Insinua-se, com isso, uma intenção de demonstrar que o objeto descrito é assim e não que a personagem o vê assim, de descrever o objeto em seu estado puro, como se o olhar de Carlos apenas constatasse a aparência da paisagem e não participasse da conformação dela.
Contudo, as características espaciais deixam notar o diálogo que Carlos estabelece com o lugar, refletindo a qualidade de sua percepção no momento em que via perdida a possibilidade de encontrar Maria Eduarda. Já as cores da paisagem (“maravilhosa cor de ouro pálido”, “tinta loura”) lembram a imagem de Maria Eduarda (Maria é caracterizada, na situação
Ao fim e ao cabo, parece que o vínculo entre os elementos é tão estreito que não é possível estabelecer quem determina quem: as características da paisagem tocam os sentidos de Carlos e despertam nele certos sentimentos tanto quanto os sentidos de Carlos e seu estado de espírito estão inclinados a perceber certos pormenores da paisagem.
De forma semelhante é revelado o Ramalhete quando Carlos e Ega retornam a Lisboa, no final do romance:
Em cima porém a antecâmara entristecia, toda despida, sem um móvel, sem um estofo, mostrando a cal lascada dos muros [...] Nos quadros devotos, dum tom mais negro, destacava aqui e além, sob a luz escassa, um ombro descarnado de eremita, a mancha lívida duma caveira. Uma friagem regelava [...] No salão nobre os móveis de brocado cor de musgo estavam embrulhados em lençóis de algodão, como amortalhados, exalando um cheiro de múmia à terebintina e cânfora.
O espaço não tem vida independente, como a construção sintática a princípio sugere (a antecâmara entristecia, uma friagem regelava, nos quadros devotos destacava um ombro descarnado de eremita); esse aspecto do Ramalhete aviva-se, isto sim, pelas impressões das personagens que ali retornam, contagiadas pela memória dos acontecimentos que aquelas paredes abrigaram, os segredos que ali foram revelados e a morte que fechou suas portas. A aparência fria, lúgubre e triste do espaço é construída mediante as impressões das personagens. Em suma, ainda que a organização sintática e a voz do narrador sugiram uma relação de independência entre a construção do espaço e a personagem, a seleção lexical e a limitação do foco permitem que tais elementos sejam postos em correspondência e que se constate a percepção particular e variável das personagens sobre os lugares.
N’Os Maias, há apenas um curto excerto em que o espaço é descrito na ausência de personagens, trazendo necessariamente a visão do narrador: após a visita de Maria Eduarda ao Ramalhete, Carlos a acompanha até a Toca, Ega recolhe-se ao seu quarto e o narrador afirma sobre a sala da qual os três acabavam de sair: “na saleta deserta, entre as flores e os restos do jantar, as velas continuavam a arder solitárias, fazendo ressaltar no painel escuro a palidez de Pedro da Maia, e a melancolia dos seus olhos”. Aqui a intromissão do narrador intensifica o efeito do sentido que as ações daquela noite tomavam: Maria Eduarda e Carlos juntos, no Ramalhete, sob os olhos do pai – sentido para o qual, até aquele momento da narrativa, só o conhecimento do narrador poderia contribuir.
Enfim, também n’Os Maias, predomina a apresentação do espaço segundo a percepção das personagens, mantendo-se a narração restrita ao campo de visão delas. Assim é descrita a casa de Dâmaso, quando Ega o visita; a casa de Maria Eduarda, quando Carlos vai lá a primeira vez; a Toca, quando Carlos a apresenta a Maria Eduarda, etc. Tem preponderância o ponto de vista de Vilaça na primeira parte da narrativa; o ponto de vista de Carlos na segunda parte (quando Carlos retorna a Lisboa) e o ponto de vista de Ega na terceira parte (a partir da cena em que lhe é revelada a verdadeira identidade de Maria Eduarda até o momento que conta isso a Carlos).
As passagens exemplificadas, dos três romances em estudo, demonstram que, em relação à construção do espaço, a percepção permanece predominantemente com as personagens, ainda que a voz do narrador não explique que assim é. O foco narrativo aproxima-se, pois, do que Jean Pouillon chama de “visão com”: o saber do narrador restringe-se ao saber das personagens e sua voz orienta-se pela visão delas.
Nesse ponto, portanto, o romance eciano, desde O crime do padre Amaro, dá preferência à técnica consagrada por Flaubert, estudada por Lubbock, por exemplo,
Restringindo-se ao ponto de vista das personagens na composição dos lugares, a narrativa serve-se disso para construir as próprias personagens, revelar suas preferências e emoções, assim mantendo-se o espaço ainda mais funcional. Com a finalidade de aproximá-lo do foco das personagens, a narrativa usa vários recursos, tais como a referência a janelas abertas, a chegada da personagem a um lugar desconhecido, sua curiosidade frente a determinado ambiente, a busca por algo ou alguém, etc. Quando o espaço é descrito em função dos conflitos das personagens, das suas ações, das suas descobertas, a descrição normalmente pressupõe o movimento do foco e perde o caráter de pausa total, revelando certa duração.
É possível notar, pois, que é o corpo, a perspectiva de quem está fisicamente e emocionalmente envolvido com seu entorno que constrói o espaço. E é a prevalência do modo impressionista de descrever que favorece, no romance eciano, a idéia da comunhão entre aquele que sente e o sensível; do envolvimento psicofísico da personagem com o espaço, responsável pela revelação concomitante de ambos os elementos.
Certas expressões verbais, utilizadas nas descrições exemplificadas, apontam a qualidade da percepção do espaço: a atribuição constante de verbos de ação a seres inanimados (como nas construções “a antecâmara entristecia, a “estrada aparecia”, “subia uma maravilhosa cor de ouro pálido”) facilita perceber que o espaço anima-se no diálogo com um corpo também animado, pois afinal “uma paisagem de onde o homem se retira torna-se uma paisagem morta”. Como revela o próprio Eça, “por mais cantantes que sejam as águas correndo, por mais fresco e umbroso que se alargue o vale – a paisagem é intolerável se lhe falta a nota humana, fumo delgado de chaminé ou parede rebrilhando ao sol, que revele a presença de um peito, de um coração vivo”. Permanece, enfim, uma implicação existencial e humana na descrição do espaço.
Por outro lado, a organização frasal predominante nas descrições em Eça, bem como o não esclarecimento de que é a personagem que está a perceber o espaço sugerem certa resistência a dar o objeto como sendo fruto da percepção de uma testemunha ocular. Na maioria das situações, entre a menção ao olhar e a descrição propriamente dita, impõem-se fissuras (pontos finais, quebras de parágrafo, travessões) que minam essa relação direta e fazem parecer que os objetos descritos são apresentados diretamente, com “objetividade”, que se apresentam as coisas e não a experimentação das coisas por um sujeito. Do mesmo modo, quando se menciona a relação do espaço com os sentidos das personagens, os verbos indicam a influência daquele sobre essas, como se o espaço, em sua vida própria, determinasse os sentimentos humanos. Isso talvez porque sublinhar a relatividade da percepção das personagens seria admitir que a realidade é muito mais “subjetiva” do que “objetiva”, um processo em curso, um constante vir a ser que depende do contato com as sensações do sujeito em uma situação particular.
Mesmo assim, a narrativa permite entender que os lugares surgem em relação ao corpo de cada personagem que os percebe e, assim, a relatividade do espaço. Fica insinuada a interdependência existente entre o “estar” e o “ser”, relação em que ambos se constroem e se revelam, sem que um sobredetermine o outro."
---
Fonte:
Raquel Trentin Oliveira: “A CONFIGURAÇÃO DO ESPAÇO: UMA ABORDAGEM DE ROMANCES QUEIROSIANOS”. (Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras, Área de Concentração
Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Disponível digitalmente no site: Domínio Público
A percepção do espaço nos romances de Eça de Queirós
Marcadores:
EÇA DE QUEIROZ,
TESES E DISSERTAÇÕES
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Excetuando ofensas pessoais ou apologias ao racismo, use esse espaço à vontade. Aqui não há censura!!!