A propriedade da literatura kafkiana


Nossa arte se resume numa obcecação deslumbrante ante a verdade: a luminosidade ressaltando a expressão grotesca é verdadeira, mas nada mais do que isto.

"Kafka não pode simplesmente escrever como os demais autores de sua geração, apesar destes sofrerem a pressão dos mesmos guetos. Não queremos dizer que o círculo de Praga desprezasse a literatura, mas que o peso assumido por ela em Kafka é insustentável. Às características da literatura menor que relatamos anteriormente juntam-se ainda outras noções que permitem driblar esse peso insustentável. Uma delas é a inversão, como afirma Anders: “Se Kafka deseja afirmar que o ‘natural’ e ‘não-espantoso’ de nosso mundo é pavoroso, então ele faz uma inversão: o pavor não é espantoso”. O fato de que K. não é aceito pelo castelo apesar de ter sido contratado por essas autoridades, não causa aos personagens do livro o menor espanto. Tudo acontece naturalmente como o castigo de Karl Rossmann ao engravidar uma empregada e se ver obrigado ao exílio na América apenas com uma muda de roupa e alguns trocados. É impossível não associar esses fatos ao castigo sofrido pelo próprio Kafka na noite em que choramingava e foi levado à força para a varanda. Tudo é tão espantoso quanto o seu impacto no meio externo é natural. Anders ainda afirma que:

Confundir esses graus de realidade é um dos efeitos didáticos intencionais de Kafka. Uma vez que, como crítico de seu tempo, considera puramente ideológicos numerosos fenômenos reputados como evidentemente reais, mas julga extremamente reais outros cuja realidade é encoberta ou borrada, procura abalar a firme armação do que vale como real ou irreal. Tal ‘revisão’ exige uma espécie de revisio, isto é, um método novo de ver, o qual aperfeiçoa em sua técnica de representação potenciada.

Essa ressalva é importante para compreender o que significa a inversão kafkiana. Ao fazer inversões Kafka não está puramente criando metáforas, está revisando, e nessa atitude, recriando o mundo. Nem tudo o que ele distorce realmente é julgado por ele como uma impossibilidade, mas como uma outra face do real.

A questão das metáforas torna-se um grande problema para esse autor torturado pela realidade. A literatura se apresenta como instrumento de libertação, mas seu uso é demasiado complexo. Em passagem de seu Diário Kafka revela:

A metáfora é uma das muitas coisas que me fazem desesperar da possibilidade de escrever. A falta de independência da literatura, sua sujeição à criada que acende o fogo da chaminé, ao gato que se esquenta ao seu lado. Todas estas são atividades independentes, que se regem pelas suas próprias leis; apenas a literatura está indefesa, não vive por si mesma, é uma brincadeira e um desespero.
Duas crianças, sozinhas em sua casa, entraram em um grande baú; a tampa se fechou, não puderam abrir, e morreram sufocadas. (6 de Dezembro de 1921)

A metáfora pobre prende o autor como o baú que sufoca as crianças. É necessário ir além dessa simples metáfora para escrever verdadeiramente. A inversão defendida por Anders como padrão kafkiano não pode se reduzir a um simples joguete de metáforas mortas. Segundo Deleuze e Guattari: “Kafka mata deliberadamente toda metáfora, todo simbolismo, toda significação, não menos do que toda designação. A metamorfose é o contrário da metáfora. Não há mais sentido próprio nem sentido figurado, mas distribuição de estados no leque da palavra”. Todo o sentido da escrita de Kafka está, a partir daí, associado ao uso mais próprio da palavra relembrando o efeito da literatura menor de tornar o escritor um estrangeiro em sua língua. A metamorfose promovida por Kafka na literatura está nessa forma mais pura de ler as palavras com um respeito total ao que está sendo escrito.

Essa forma de escrever, tão espantosa quanto realista, desemboca em duas necessidades fundamentais: o narrador não conhece a história que conta, o que é explicado pela segunda necessidade, pois a própria história desconhece seu desfecho. Se se pretende escrever com essa pureza de estilo sem usar das metáforas, o texto precisa fluir naturalmente, por isso ele toma como exemplo o desenvolvimento de O veredicto, escrito de um só fôlego. E se esse é o desenvolvimento correto para se escrever então não existe, a princípio, o desfecho da história. Ele está velado para todos, mesmo para quem escreve. A narração dos textos da maturidade kafkiana é feita assim, através do discurso indireto livre, (o estilo de Flaubert) em que o narrador apenas expõe os acontecimentos sem fazer juízos de valor a respeito deles ou se envolver de qualquer forma com a história. A calmaria encontrada nos textos clássicos, na fala apaziguadora de um narrador onisciente da história que conta, é retirada nestes textos e seu impacto é multiplicado por esse ato. Se o narrador não conhece o desvelar do texto e sequer o autor se dá conta do que está por vir na sua escrita, é a própria história que está se construindo. O problema é que não há motivos para acreditar que em Kafka a história é senhora e conhecedora de si mesma.

A primeira implicação dessa forma de escrever está no narrador indireto livre. A segunda é a aporia constante nos textos de Kafka. Muitas vezes o autor não consegue terminar o texto, outras tantas ele termina sem uma conclusão plena de sentidos ao leitor racionalista. Existe uma indecisão inerente aos escritos kafkianos, impasses indissolúveis. As decisões a respeito de um personagem não podem ser tomadas desrespeitando a esse impulso criador. Muitos textos são abandonados sem o final devido, ou mesmo sem um desenvolvimento de uma questão interna como é o caso de O processo que formalmente possui um fim com a execução de Josef K., mas seu interior é constituído por fragmentos. Kafka não pode simplesmente tomar a dianteira e solucionar os problemas internos ao texto, seria um desrespeito à atividade literária forçar-se a escrever algo que não está pronto para ser escrito. Pawel finaliza sua biografia do escritor sentenciando que:

O mundo que Kafka estava ‘condenado a ver com tão ofuscante clareza que o considerou insuportável’ é nosso próprio universo pós Auschwitz, à beira da extinção. A obra dele é subversiva, não porque Kafka tenha descoberto a verdade, mas porque, por ser humano e, portanto, incapaz de descobri-la, ele se recusou a conformar-se com meias-verdades e soluções de compromisso. Em visões arrancadas do mais profundo do seu âmago e numa linguagem de pureza cristalina, deu forma à angústia de ser humano.

Todo seu trabalho, por não poder se realizar de outra forma precisa necessariamente permanecer sem conclusão. Não queremos com isso afirmar que exista uma deficiência na escrita kafkiana, a ausência de conclusão está em perfeito acordo com o estilo de sua obra. Não se trata aqui de que ele não crie desfechos para suas tramas, mas que esses desfechos não se referem a um ponto final que expresse o fim da angústia dos personagens, ou uma resposta aos sofrimentos que eles adquiriram ao longo da trama. Kafka não é nenhum deus, nem um visionário que consegue vislumbrar uma realidade superior, ele apenas consegue observar com mais clareza a realidade que está aí diante de nossos olhos. Como humano que é só pode traduzir esta realidade de forma humana e, portanto, imperfeita. A resposta está mais adiante do que qualquer linguagem pode transmitir.

Respeitando-se esses aspectos básicos de sua constituição, a literatura deixa de representar uma tortura para se apresentar como o principal alento em meio a um mundo excessivamente hostil. Alguns autores chegam a dizer que ela se apresenta como a única salvação possível para a angústia que corroía o jovem Kafka. Segundo Moeller: “Ao invés de libertação, procura – inteiramente no espírito do século XIX – a ‘redenção’, que consegue de facto através do instrumento da arte, do registro caligráfico da miséria, embora tenha querido propriamente, alcançar a redenção pelo ‘ingresso no mundo’”. De fato Kafka é um cidadão desterritorizado e deseja se encontrar no mundo, a conclusão de Moeller de que na literatura ele tenha de fato chegado a essa reterritorização é que talvez seja muito mais forte que a realidade. Kafka buscou um lugar no mundo em que pudesse sentir-se em um verdadeiro lar. A literatura, sem dúvida lhe ofereceu muito nesse sentido, mas precisamos lembrar da ressalva de Costa Lima: “a literatura é tanto defesa contra a loucura como sua modalidade de acesso”. De fato, Kafka nunca encontrou o repouso completo no mundo, sequer na literatura, que se manteve sempre como uma roda que, ora o defendia da loucura, ora o jogava diretamente nela. O processo de salvação que se encontra relacionado com a literatura é lido de forma diferente por Lima que a visualiza como sui generis:

Na maioria das vezes, porém, sua paixão por escrever é referida como único meio de que dispõe para salvar-se; de salvar-se mesmo porque esta era sua missão. (...) Peça habitual no contexto religioso, aqui poderia subentender que a obsessão kafkiana com a literatura fazia parte de um processo, não importa que sui generis, de conversão.

A literatura representa a conversão daquele homem amargurado pela pressão exercida por um mundo hostil em alguém que pode realizar algo por esse mesmo mundo. Já que toda a sua utilidade se resume à literatura, trabalhar nesse aspecto representa a única forma de se re-ligar ao mundo. Trata-se de uma religião destinada não a uma figura divina, mas à própria realidade mundana. A única possibilidade para ele é salvar-se ao ser reconhecido como um membro da humanidade. Algo que aparentemente se revela simples para ele torna-se um grande desafio."

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Fonte:
MAURO ROCHA BAPTISTA: “FRANZ KAFKA E A ANGÚSTIA RELIGIOSA DO MUNDO MODERNO”. (Dissertação apresentada ao programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião como requisito parcial à obtenção do título de mestre em Ciência da Religião, pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Orientador: Prof.Dr. Eduardo Gross). Juiz do Fora/MG, 2005.

Nota
:
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As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

Disponível digitalmente no site: Domínio Público

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