A relíquia, um embate literário



"Em junho de 1887, o Diário do governo abre o concurso para a atribuição de um prêmio literário a cargo da Academia Real das Ciências. Eça concorre a esse com A relíquia e Pinheiro Chagas será o relator do parecer do prêmio, que saiu em 11 de dezembro de 1887. A relíquia é preterida, ganhando o drama de Henrique Lopes de Mendonça, O duque de Viseu. Nesse relatório, Chagas, inicialmente, critica o regulamento do prêmio que permite o concurso de obras de gêneros diferentes. Em seguida, passa em uma análise rápida por obras de pouco conhecimento do público, para posteriormente analisar com mais afinco A relíquia Eça de Queirós. Não deixa, entretanto, de o elogiar e o comparar às maiores figuras literárias do cânone.

Essa polêmica não tem tanto destaque como a de Brasil e Portugal nas histórias literárias, talvez porque, mesmo diante das arbitrariedades do regulamento do concurso, as censuras de Chagas quanto à Relíquia fossem coerentes e sensíveis, caracterizando a vacuidade de Eça. Alguns biógrafos de Eça, como Lins (1939) acrescenta-nos que das polêmicas travadas pelo autor de Os Maias, esta “[...] é a mais frágil e a mais ausente de sentido. [Eça] Desliza pelo assunto, divaga em torno de outros, perde-se sobre vagas considerações a respeito do papel das academias e não responde nada. [...]” (LINS,1939, p.133).

Acreditamos que essa polêmica, novamente, traz em si vestígios da luta pelo poder intelectual no cenário português, dois representantes ideologicamente distanciados por suas concepções literárias. Essa controvérsia surgida após o Relatório de Pinheiro Chagas ilustra a turbulência que passava ainda o meio literário em Portugal em 1888. Mesmo depois das Conferências do Cassino, em 1871 – que para muitos estudiosos foi advento do Realismo em Portugal – ainda conviviam nesse campo dois tipos de tendências literárias, uns que se ligavam ao Realismo e outros que se mantinham contrários a ele. Nesse último grupo, perfilavam Pinheiro Chagas e outros escritores que, para alguns da imprensa da época, faziam parte da chamada literatura oficial. Na teoria de Carlos Reis (2001), esse tipo de literatura consistia na consolidação de um grupo de homens de letras que estavam de alguma forma ligados ao poder e às instituições da Regeneração. Como podemos ver pelo prólogo que antecede a carta de Eça de Queirós a Mariano Pina, sobre o Relatório de Pinheiro Chagas, publicada n’ A Ilustração.

Os nossos leitores ainda não esqueceram a vigorosa campanha sustentada em janeiro último, nas colunas da Ilustração, pelo nosso diretor Mariano Pina, em que ficou preterido o nosso grande romancista Eça de Queirós. [...] A crônica de Mariano Pina causou verdadeira sensação tanto em Portugal, como no Brasil, donde o nosso diretor recebeu inúmeras cartas de felicitação e de aplauso; – ao mesmo tempo que causava verdadeiro escândalo entre a literatura oficial do nosso país
.(ILUSTRAÇÃO, 1888, p.150)

Eça também não deixa por menos e cita sutilmente esse tipo de literatura, em seu texto A academia e a literatura, de forma textualmente irônica:

[...] Pinheiro Chagas naquela ruidosa e valorosa azáfama que o traz redemoinhando com tanto brilho da política à literatura, confunde a Academia com o parlamento, toma-me estonteadamente por um ministro da Fazenda, e investe contra mim por causa da questão dos tabacos! (
QUEIRÓS, NC, s.d, v. II, v.2, p.1460).

Mesmo depois de estabelecido o Realismo, com as Conferências do Cassino, em Portugal, parece-nos que o grupo de Pinheiro Chagas, que era caracterizado ainda como literatura oficial, permanecia como um incômodo e uma ameaça constante ao grupo de Eça. Para este, a coterie de Chagas estava diretamente ligada à Academia, assim, podia ocupar posições chaves e distribuir vantagens e favores.

Na revista A Ilustração (1888) diante de cada artigo dessa polêmica tem um preâmbulo para orientar o leitor sobre a última réplica, tentando levantar algumas considerações sobre o embate literário. Ao nosso ver, não deixa de ter uma certa inclinação para um dos debatedores, pois se trata de posicionamentos e, diante disso, algum lado teria de ser preterido. Aqui, particularmente, A Ilustração, ao final de toda querela, posiciona-se favorável às idéias defendidas por Eça de Queirós e Mariano Pina. Como transcrevemos na íntegra o trecho publicado antes do último texto de Eça, Ainda sobre a Academia.

Hoje publicamos a resposta de Eça de Queirós, a esse artigo do ilustre relator tão famoso quão discutido concurso. E sem todavia queremos sair da imparcialidade que nos impuséssemos, reunindo todos os documentos desta pendência provocada pela crônica do nosso diretor, quando teve lugar o concurso – não podemos deixar de declarar que a pendência deve terminar aqui, porque é impossível chegar-se a um acordo. – Mariano Pina afirma que tudo foi feito com a maior irregularidade: programa do concurso, composição do júri; e votação em que tomaram parte, sócios efetivos e correspondentes... Pinheiro Chagas afirma que tudo se fez regularmente e que o voto foi justíssimo. – Eça de Queirós põe a questão neste terrível estado: que um júri literário, seja ele qual for, não pode num concurso dizer o que é melhor se um livro de história, se um poema, atendendo a que são gêneros totalmente opostos.... E de tudo isto, o que concluímos nós, o que conclui a galeria, o que conclui o público?... Que no primeiro concurso houve irregularidades e faltas de previdências imperdoáveis. Que o programa era detestável, porque admitia todos os gêneros literários, o que é um absurdo, e torna o voto impossível. E que de futuro a Academia deve organizar um melhor programa, um júri mais literário, e uma votação mais acadêmica, aliás – os conflitos hão de recomeçar todos os anos
. (ILUSTRAÇÃO, 1888, p.215).

Partindo dessa proposição, antes de recapitularmos as investidas dos interlocutores nesta contenda, apresentaremos algumas idéias do Relatório de Chagas para estabelecermos ao final, quem sabe, esclarecimentos sobre as causas que motivaram esse novo embate entre Pinheiro Chagas e Eça de Queirós.

Como já antecipamos, no início do Relatório, Chagas tece elogios à grandeza literária de Eça, não deixando com isso de reforçar o seu repúdio quanto aos princípios realistas, que, para ele, são meras descrições gongóricas. Chagas elege um tipo de literatura em que a arte seja o espelho da sociedade, não no sentido da descrição minuciosa da matéria, mas como meio do leitor se rever no romance. Isto é, a ficção poderá ser uma oportunidade de aprofundarmos no conhecimento de nós mesmos.

[...] Bem sei que me objetam que o romance dever ser a pintura da sociedade real, e não de uma sociedade fictícia que nada se lucra com a leitura de um livro onde não aprendamos a conhecer os homens, e onde pelo contrário sejamos levados a encará-los por um prisma enganador.
[...] neste século, em que vai sendo cada vez mais pronunciada a tendência materialista, onde se poderão refugiar as nobres aspirações da humanidade, se o santuário da literatura também for profanado, se lhe arrancarem de a estátua do ideal para arrastarem pelo tremendais da sociedade, [...]. (CHAGAS, 1866, p.10)

Esse princípio é ainda bem caracterizado pela seguinte frase do crítico: “[...] Dize-me o que lês, dir-te hei que manhãs tens” (CHAGAS,1867,p.266).

Acreditamos que, outra vez, apresentam-se nessa contenda os temas que foram motivos de discórdia entre Pinheiro Chagas e Eça de Queirós, como por exemplo, o Realismo e a questão histórica, só que esta última agora, no sentido da história ficcionalizada. Dessa maneira, faz-se necessário explicitarmos em que se baseiam nossas conjecturas. Para tanto, iremos nos servir do seguinte fragmento da réplica de Eça, que nos diz nestes termos: [...] O que indigna Pinheiro Chagas, o que ele designa a Academia como imperdoável, é ter Teodorico visto a Paixão na sua comovente possibilidade histórica – em lugar de a ter visto, como ele textualmente escreve, sob as formas dum Evangelho burlesco! (QUEIROS, s.d, NC, v.II, p.1459, grifo do autor)”. Nesse trecho, ao nosso ver, temos duas preposições indissociáveis que são censuradas por Chagas; a primeira e principal, no que se refere à incoerência do narrador em primeira pessoa, quanto à descrição da passagem histórica do livro, o sonho de Teodorico, que por seu lado, configura-se na falta de unidade lógica da construção da personagem.

Por meio dessa definição de Chagas, não há uma unidade lógica nessa narrativa eciana quando seu autor coloca na fala de Teodorico o seu nível de conhecimento histórico, já que Raposão era um tipo caricato, um anti-herói. Se na questão Brasil e Portugal, para Chagas, Eça pecou pela falta de autoridade histórica, aqui ele se condena pelo excesso. Em outros termos, o autor do Poema da mocidade considera que Eça:

Imaginou, [...], que seria original e estranho fazer contemplar e descrever a paixão de Cristo por um pateta moderno, um devasso reles, vicioso e beato, mantido por uma tia no culto piegas de Nossa Senhora da Conceição e no sagrado horror das saias, e fazendo às furtadelas as suas incursões pelo campo do amor barato, e do cigarro e da genebra à mesa do botequim. Este homem transportado fantasticamente para Jerusalém do tempo de Cristo, vendo e descrevendo o grande drama sagrado, devia dar ao mundo um Evangelho burlesco, ímpio de certo, muito mais escandaloso que as Memórias de Judas, mas que podia ser, em todo o caso, uma obra de arte notável.”
(CHAGAS, 1887 apud AMARAL; MARTHA, 1947, p.285)

Chagas entendia que existia a convivência de dois Raposões inconcebíveis. O lógico era que o Raposão, um ateu atrevido, narrasse uma paródia do evangelho.

Acontece, porém, que o autor parece ter feito à parte o seu romance da Paixão de Cristo, colocando-o depois à pressa nas páginas do outro. Quem adormece é Teodorico e quem sonha é o autor, e com grande surpresa nossa, vemos aquele adorador de santinhos e freqüentador das ruas suspeitas de Lisboa sonhando que vê a Paixão de Cristo em todo o seu grandioso aspecto histórico. [...].Voltando à realidade com as impressões do sonho, aquele burguês devasso e tolo sente a sua alma inundada de uma luz nova? [...] Nada disso. Teodorico volta a ser o que fora, a sua transformação no final do romance em nada modifica a sua fisionomia burlesca. Singular equívoco foi este, e que nos faz supor que o Sr. Eça de Queirós não quis sacrificar o trabalho já feito com intuitos diversos para refazer a grande cena histórica por ele traçada, colocando-a no foco da luneta de Teodorico. [...] Se Eça de Queirós recuava diante da profanação de corrigir o drama do Evangelho com a equação pessoal do seu Teodorico, para que inventou este personagem e o colocou em situação de presenciar tão grandiosas cenas? [...] Teodorico se mostra apta para compreender o que há de grandioso e de sublime no drama de Cristo? Eis o defeito irremediável do livro [...].
CHAGAS, 1887 apud AMARAL; MARTHA, 1947, p.285-86, grifo nosso)

Seguindo essa perspectiva, Chagas conclui “[...] logo que o leitor se esqueça de quem é o personagem quem sonha, é uma beleza verdadeiramente admirável” (CHAGAS, 1887 apud AMARAL; MARTHA, 1947, p.286). Contudo, o relator de A relíquia ressalta que um dos trechos mais brilhantes desse livro é a transição da realidade para o sonho, elogiando a capacidade do autor de A relíquia em criar um cenário profundamente sensorial que nos transporta ao mundo onírico.

A respeito dessa mesma análise crítica, mereceria referência o fato de Pina, segundo Simões (1945), fazer as mesmas advertências quanto às incoerências ficcionais n’ A relíquia. Mariano Pina, como também apontou Pinheiro Chagas, considera incongruente o quadro histórico da Paixão de Cristo dessa obra em relação à mediocridade do Teodorico Raposo.

Se A relíquia fosse um romance, nós ficaríamos hesitantes sem saber qual o fim do livro: se os efeitos convergem unicamente para o quadro histórico da Paixão de Cristo – ou se convergem unicamente, como seria de todo o ponto racional, para a completa pintura desse tipo notável, dessa figura típica duma sociedade, e que no livro se chama Teodorico Raposo. [...] Abordaremos francamente o defeito artístico de A relíquia, defeito que, felizmente, o autor pode corrigir numa segunda edição, com a mesma facilidade com que o escultor pode, no mármore, corrigir a deformidade dum músculo que o artista errou no gesso. É a questão do eu, o ser o livro a conversa na primeira pessoa dum personagem bastante medíocre e bastante ignorante, recebendo durante a sua viagem de Lisboa a Jerusalém impressões e sensações como só as recebe um espírito superior, e vendo aspectos e indivíduos através dum prisma como só pode possuir e manobrar um artista maravilhosamente dotado, como é o Sr. Eça de Queirós.
(PINA, s.d, apud SIMÕES, 1945, p.546-547, grifo nosso)

No entanto, no texto A academia e a literatura, Eça irá explorar a fundo essa afirmação de Chagas, com habitual humor, criticando o ponto de vista deste:

O fato é, caro Pina, que Pinheiro Chagas no seu Relatório não dá, com indizível assombro meu, as razões honrosas e altas. Antes pelo contrário! Apresenta, para repelir A relíquia, razões estranhamente comezinhas e miudinhas, rasteiras e grosseiras, como se, em lugar de falar numa Academia, se achasse conversando num botequim diante de homens incultos, incapazes de compreender tudo o que é elevado ou profundo! [...] O que aponta ele à reprovação da Academia? O sonho de Teodorico – esse sonho em que o obsceno homem presencia aquilo que Pinheiro Chagas reverentemente chama “as grandiosas cenas da Paixão”. [...] Porventura o desgosta, como acadêmico, a falta de sobriedade, de harmonia, de proporção, de purismo? – Não! Acha tudo perfeito. O que indigna Pinheiro Chagas, o que ele designa a Academia como imperdoável, é ter Teodorico visto a Paixão na sua comovente possibilidade histórica – em lugar de a ter visto, como ele textualmente escreve, “sob as formas dum Evangelho burlesco!” Quer dizer: – para que A relíquia agradasse a Pinheiro Chagas e merecesse a coroinha da Academia, eu deveria ter mostrado Jesus de Chapéu de coco e lunetas defumadas, Pilatos deixando cair o pingo de rapé sobre o Diário de Notícias, e ao lado Oseias, vogal do Sanedrim, numa fardeta de polícia civil, com um número na gola, escabichando um dente furado.
(QUEIRÓS, NC, s.d, v.II, p.1459, grifo nosso)

Curiosamente, Eça comenta sobre essa fragilidade em A relíquia, pelo menos duas vezes oficialmente. Na primeira ocasião, de forma mais evidente, em carta ao seu amigo Luis de Magalhães, pouco tempo depois de aberto o concurso, e antes de sair o relatório de Chagas. A outra em resposta ao relatório final do concurso da Academia, carta endereçada a Mariano Pina, intitulada A academia e a literatura. Ressaltado isso, voltemos, agora, nossa atenção às reflexões que Eça fez a estrutura da sua obra aos amigos, respectivamente:

Eu por mim, salvo o respeito que lhes é devido, não admiro pessoalmente A relíquia. A estrutura e composição do livro são muito defeituosas. Aquele mundo antigo está ali como um trambolho, e é antigo por fora, nas exterioridades, nas vestes e nos edifícios. É no fundo uma paráfrase tímida do Evangelho de S. João, com cenários e fatos de teatro; e falta-lhe ser atravessado por um sopro naturalista de ironia forte, que daria unidade ao livro. D. Raposo, em lugar de se deixar assombrar pela solenidade histórica, devia rir-se dos judeus e troçar dos Rabis. O único valor do livreco está no realismo fantasista da Farsa. (QUEIRÓS, CO, s.d, V.III, p.575, grifo do autor).

A relíquia é certamente um livro malfeito. As suas proporções faltam harmonia, elegância e solidez; certos personagens, apenas recortados e não modelados, oferecem uma notação uniforme e esfumada; a forma não tem suficiente fluidez e ductilidade, antes por vezes encaroça e empasta e por querer ser grave parece hirta como sucede aos grandes homens da província, etc... etc... Mas estes defeitos, que só podem ser sentidos por um gosto afinado na perene convivência das coisas de Arte, nunca poderiam provocar a condenação dum livro numa Academia que não está povoada de artistas.
(QUEIRÓS, NC, s.d, v.II, p.1456-1457, grifo nosso.)

Podemos ver nesses trechos que a origem da polêmica quanto à réplica de Eça parece não estar nas imperfeições da estrutura de sua obra, mas sim no fato de ela ter sido desmerecida por pessoas que, para ele, não têm autoridade literária necessária.

Na sua carta a Mariano Pina, A academia e a literatura, Eça também ressalta a falta de critério desse concurso, como discutira Pinheiro Chagas em seu relatório. Já nos referimos a uma das estratégias utilizadas pelo Eça polemista que é o fato de sempre desconhecer a literatura de seus adversários, como se pode abstrair deste fragmento.

Eu não conheço, muito infelizmente para mim, nenhuma das obras oferecidas a concurso e mais detidamente louvadas pelo Relatório. Basta-me, porém, saber que havia um livro de viagens, um livro de odes, um drama em verso e um romance arqueológico, para desde logo pensar que qualquer preferência, entre obras tão heterogêneas e tão insusceptíveis de comparação, nunca poderá ser determinada por motivos puramente literários e críticos. E, para a Academia permanecer na equidade, forçoso lhe seria decidir – não pelas qualidades dos escritos, mas pelas qualidades dos escritores, todos homens, todos cidadãos, todos mortais, e todos comparáveis, já no seu peso em quilos, já na sua pontualidade à missa, já no asseio da sua roupa branca.
(QUEIRÓS, NC, s.d, v.II, p.1461, grifo nosso).

Assinalamos ainda, nesse trecho, que Eça sugere debochadamente que as regras do concurso, longe de serem literária e crítica, tendiam a favorecer a escritores que rezassem na mesma cartilha da Academia, na qual ele e não sua obra fora preterido. Tipicamente, caracteriza-se aqui o retorno da problemática da Questão coimbrã (1865), só que em proporções menores. Eça e Mariano Pina, em certa medida, tentam denunciar a parcialidade da Academia e os obscuros critérios de apadrinhamento a seus aliados, nesse caso o vencedor do concurso, Lopes de Mendonça. Essa polêmica, portanto, reflete a constante tensão entre dois grupos de mentalidades literárias que se chocavam. Eça, entre outras palavras, deixa claro que na Academia havia se estabelecido a política do elogio mútuo.

No entanto, Pinheiro Chagas irá retrucar a essa acusação:

[...] por mais que eu tivesse manifestado no meu relatório o meu sincero e antigo entusiasmo pelo talento de Eça de Queirós, nada havia que resgatasse aos seus olhos a culpa de não ter considerado A relíquia, no seu conjunto, uma das suas obras-primas. Mas o que eu não esperava, devo confessá-lo, era que Eça de Queirós atacasse não só o relatório, mas muito principalmente a Academia e o programa do concurso. E não o esperava por uma razão muito simples, porque para atacar a Academia e para atacar o programa do concurso eram indispensável duas coisas: não ser acadêmico e não ter ido ao concurso
. (CHAGAS, 1888, p.198)

Na observação de Campos Matos (1988), Chagas não deixa de dispensar elogios ao seu confrade, no entanto, ressalva novamente que dentre as suas criações primorosas não se enquadra A relíquia. Para o relator do parecer, proclamar incompetência do júri depois de um resultado desfavorável seria manifestar publicamente não uma convicção, mas a inveja e a presunção. Eça contra-ataca:

Suponhamos, portanto, que eu berro por despeito – e que toda a face se me acende de rancor e inveja. Pois bem! Neste vil estado de alma, que enjoaria Marco Aurélio, eu fiz uma afirmação: afirmei que Pinheiro Chagas não podia, como crítico e criticamente, comparar para um fim de escolha e de prêmio, um romance arqueológico em prosa e um drama romântico em verso. Lívido e roído pelas cobras verdes do ciúme, eu estabeleci esta tese. Mas desde que a estabeleci por escrito, num jornal – ela fica separada da minha personalidade, torna-se impessoal e abstrata, vivendo só por si e pela razão que em si contém
. (QUEIRÓS, CIFM, s.d, v. III, p.921, grifo nosso)

Nesse trecho, Eça ao se defender de uma acusação de Chagas, quanto ao desmerecimento que aquele teria feito ao escritor Henrique Lopes de Mendonça – ganhador do concurso – inverte estrategicamente os papéis de caluniador e caluniado. Isso vai de encontro a uma proposição feita por Viana Moog (1938) e, posteriormente, citada por outros, como Álvaro Lins (1939), ao sugerir que:

Tornou-se impossível pensar em Pinheiro Chagas sem associar ao seu nome à idéia do ridículo. É estranho, portanto, que Eça não tenha respondido um argumento tão pobre. Perturbou-se tanto que cometeu contra Pinheiro Chagas a sua única deslealdade literária, uma daquelas deslealdades em que Camilo era mestre: modificar o sentido do argumento, criar um argumento novo e investir então contra o “fantasma”.
(LINS, 1939, p.134)

Por outro lado, ainda no século XX, a crítica de Simões (s.d) dá a mão à palmatória ao considerar inteligente algumas proposições do relatório de Pinheiro Chagas sobre A relíquia. Para ele, esse romance torna-se o pomo de discórdia entre o romancista e a crítica oficial – a crítica oriunda do território romântico que Eça começara a hostilizar. No entanto, pela primeira vez os juízos dessa crítica não estavam inteiramente errados.

Diga-se o que se disser de Pinheiro Chagas como crítico ostensivamente detrator da personalidade e da obra queirosiana, há que lhe prestar (sic) homenagem pela lucidez com que, no seu “brilhante relatório”, analisava certos aspectos menos felizes de A relíquia. [...] O certo é que seria esta a primeira e única vez em que o homem fatal contestava ao grande romancista algo de realmente contestável
. (SIMÕES, s.d, p.132-138, grifo nosso).

Contudo, Simões (s.d), em seu texto, não deixa de utilizar os termos pejorativos criados por Eça ao se referir a Chagas, como indicamos no fragmento. Para aquele crítico, apesar da coerência de algumas discussões no relatório de Chagas, este não deixa de atacar e fazer algumas censuras à obra e à personalidade de Eça. O que, infelizmente, pelo trecho acima não podemos visualizar.

Por outro lado, José Régio (1945, apud Lisboa, s.d), sinaliza que os textos polêmicos de Eça não evidenciam o exercício de uma inteligência crítica. Pelo contrário, o excessivo recurso da comicidade, estrategicamente, ajuda a ocultar a ausência de argumentação. Por isso, a presença constante de humor não faz mais do que transparecer um caráter sofístico e vago neste artigo, ao invés de uma exposição de raciocínios claros e coerentes. Um trecho típico, para Régio, trata-se do momento quando Eça retoma o problema que Pinheiro Chagas encontrou na sua obra.

Mas, ao mesmo tempo, Pinheiro Chagas sente que esses homens, ainda que toscos, devem ter um resto de confuso e supersticioso respeito pela religião desse Jesus, dentro da qual a sua vida foi moldada. E, muito sagazmente, no seu esforço de atrair a desaprovação sobre o livro, apela também para esse sentimento. Mas como? Acusando alguma brutal negação do que é dogma, ou alguma atrevida simplificação do que é mistério? Não. Tudo isso Pinheiro Chagas o julga muito complicado para essas inteligências subalternas. E aponta então o detalhe comezinho e rasteiro, o detalhe que aqueles homens broncos mais facilmente poderiam apreciar – o cigarro que Teodorico acende no Pretório. Com a mão trêmula, Pinheiro Chagas mostra o cigarro blasfemo. E exclama textualmente: – Arrepia, arrepia na verdade ver aquele cigarro no meio de tão sublime agitação!
Portanto, em resumo, o que revolta Pinheiro Chagas neste infeliz livro – é que nele Jesus de Galiléia não aparece suficientemente burlesco, e que nele Teodorico Raposo não aparece suficientemente sério.(QUEIRÓS, NC, s.d, v.II, p.1459-1460)

Régio sugere que Eça tinha consciência da deficiência do livro e dos argumentos coerentes do Relatório. Para este crítico, Eça partia de premissas falsas acerca da opinião de Chagas com o intuito de desorientar o leitor, e assim preparar o terreno para as suas ironias em vez de argumentação. Por fim, Régio conclui que:

Eça faz com maestria, na maioria de suas polêmicas, é tão somente tentar vencer o contraditor não pela justeza, sagacidade, firmeza, lealdade do raciocínio e da análise, – mas sim pelas graças do talento literário e o prestígio do trocista que diverte o auditório; que melhor o diverte.[...].
(RÉGIO, 1945 apud LISBOA, s.d, p.133)

Também na tréplica, Eça não esconde seu enfado, logo no início desse artigo, intitulado Ainda sobre a academia, justifica-se não encontrar nenhuma questão no texto de seu adversário que merecesse alguma consideração sua. Os supostos defeitos do relatório da Academia passa ao segundo plano da exposição de Eça que, sob esse pretexto, passa a atacar jocosamente a personalidade literária e pública de Pinheiro Chagas. Primeiramente, aquele constrói pequenas histórias, cheias de comicidade, dentro deste texto, que irão contribuir para a ridicularização de seu adversário. Não devemos nos esquecer de que essa peculiaridade eciana se apresentou com maestria na contenda Brasil e Portugal. Para nós, esse trecho é um dos mais emblemáticos e, possivelmente, seja, juntamente com outros, a origem da cristalização caricata de Pinheiro Chagas. Aqui, evidenciando o perfil de escritor e crítico medíocre no seu tempo.

Somente, tratando-se de Pinheiro Chagas, o caso é radicalmente diferente. Ele é o mais honesto dos homens. Nunca da sua pena saiu voluntariamente uma falsidade ou uma perfídia. Reto, bom, amável, generoso, leal, largo de coração, ele senta-se candidamente à banca, toma a pena – para afirmar apenas o que é verídico e defender apenas o que é justo. Não sei se a pena de Pinheiro Chagas é de pato ou de aço: em todo o caso deve ter, como todas, uma haste ligeira que ele ao princípio sustenta e domina entre os dedos. A vela arde e o ilustre escritor começa a escrever... E eis que, instantes depois, aquela curta haste, conduzida pela mão já excitada, sob os impulsos impacientes da imaginação que aqueceu – larga, abala, corre, galga, pula, cabriola, redemoinha, mais tonta e levantando mais o pó que um potro bravo do Hejaz solto no deserto. Pinheiro Chagas a não poder sopear. De fato, já o nosso desditoso amigo vai arrastado por ela, como Mazeppa pelo seu corcel – e foge, rompe, fende, salta aqui as balizas da cortesia, atropela além a nudez da verdade, tudo escangalha e tudo espezinha até que escritor e pena rolam no pó, exaustos, arquejantes, inúteis para tudo e irresponsáveis por tudo!
Pinheiro Chagas é o Mazeppa do folhetim – um Mazeppa de chapéu alto. Com a diferença, porém, de que Mazeppa se ergueu ao fim da fabulosa carreira, para encontrar em torno de si uma horda bárbara que o aclamava rei! E Pinheiro Chagas, quando se levanta, acha-se rodeado de amigos que apenas sorriem e lhe gritam com uma repreensão cheia de carinho: “– Oh! Homem, quando há de você ter juízo?” E ele próprio, limpando o suor, e olhando para trás, para as conveniências que transpôs, para a verdade que pisou, suspira, com aquela sua honestidade que é tão alta e aquela sua inteligência que é tão clara, e, descontente de si, recolhe desconsoladamente a pena. Depois, no dia seguinte, recomeça. (QUEIRÓS, CIFM, s.d., v.III, p.925-926, grifo nosso).

Reparemos que neste fragmento, Eça se apropria dos processos de comparação e metonímicos para retratar o perfil literário de Chagas. Inicialmente, estende-lhe elogiosos adjetivos que excessivos pela ironia depreciam mais a figura do seu confrade. O jogo de comparações entre Chagas com as expressões “pena de pato” e “curta haste”, leva o leitor a concretizar a idéia de mediocridade deste escritor. Sem falar da metonímia apresentada pela figuração da imaginação indomável que toma conta do escritor, ou seja, a parte (imaginação) que suprimiu o todo (Chagas).

Exposto isso, observemos o fragmento seguinte, onde podemos encontrar outra argumentação muito discutida na polêmica Brasil e Portugal e que aqui foi recuperada por Eça. Trata-se fundamentalmente, na concepção do autor de A relíquia, da permanente intenção que tinha Chagas em indispô-lo junto à nação. Talvez fundamentado nessa idéia, Eça tenha revidado à altura por meio de sua tentativa de imortalizar para sempre uma figura caricata de Pinheiro Chagas.

Tudo isso, na verdade, constituiria uma abominação, se se tratasse dum escritor que, nos seus escritos, pusesse ao mesmo tempo – mais severidade e mais perversidade. Teríamos então aqui uma dessas repulsivas tricas de polemistas rábula, que, retrucando a um artigo publicado há longas semanas, e de que ele supõe que o público já se não recorda, lhe atribui perfidamente toda a sorte de feias proposições, que o pobre artigo não encerra, com o fim de tornar o autor desagradável e antipático aos olhos dos simples e aos olhos dos esquecidos
. (QUEIRÓS,CIFM, s.d, v.III, p.925, grifo nosso)

Recapitulando, talvez não se possa excluir o apadrinhamento ocorrido no concurso literário realizado pela Academia, se levarmos em conta as cotéries que existiam naquela época. No entanto, seria negligente de nossa parte não reconhecer diante do discutido que o aspecto que mais teria indignado Eça quanto ao Relatório de Chagas era o que menos tinha propriedade na sua argumentação, a exposição dos defeitos de A relíquia. Dessa maneira, não restaria a Eça a não ser dirigir habilmente a controvérsia com humorismo, levando o contendor e o leitor para o campo que lhe convinha. Finalmente, o autor de O primo Basílio demonstrou, mais uma vez, a genialidade na construção irônica e sarcástica; por outro lado, Pinheiro Chagas estabeleceu uma crítica, em que as razões permanecem inteligentes e válidas até hoje."

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Fonte:
Jane Adriane Gandra Veloso: A (de)formação da imagem: Pinheiro Chagas refletido pelo monóculo de Eça de Queirós”. (Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós Graduação em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa, do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para obtenção do título de Mestre em Letras. Orientador: Prof. Dr. Paulo Motta Oliveira). São Paulo, 2007.

Nota
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As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
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