Romance e Teatro em Eça de Queirós



“Eça de Queirós faz parte de escasso número de romancistas que tem a oportunidade de contemplar a adaptação teatral de muitas de suas obras. Afora os dois romances que serão analisados, A Tragédia da Rua das Flores e Os Maias, outros que também sofrem adaptação são: O Primo Basílio, O Crime do Padre Amaro, O Mandarim, A Capital!, A Relíquia e o conto “O Suave milagre”. De acordo com Carlos Reis e Maria do Rosário Milheiro (1989), isso se deve ao fato de que a obra queirosiana suscita fascínio que a torna capaz de resistir ao limitado espaço de um palco. Acredita-se, outrossim, que adaptação decorre da potencialidade dramática das caracterizações e dos diálogos queirosianos.

Existe, nos dois romances focalizados, e em muitas outras obras de Eça de Queirós, propensão à construção teatral. Algumas personagens agem como se achassem num palco. Segundo Henriqueta Maria Gonçalves (1998b), a dissimulação das personagens confunde-se com a teatralização ligada estruturalmente ao jogo amoroso, em que os apaixonados dramatizam para si próprios e para os demais. Dessa maneira, no encobrir para mostrar, faz-se conhecer a propensão para a teatralização manifesta nas personagens queirosianas.

O espólio queirosiano, conservado na Biblioteca Nacional de Lisboa, reserva um esboço de adaptação de Os Maias para o teatro, planejado e parcialmente realizado pelo próprio Eça. A dramatização, segundo Ernesto Guerra da Cal (1975b), está concebida para dois atos. Essa faceta queirosiana demonstra a tendência dramática presente em várias cenas das obras desse autor. Porém a experiência dramática fica apenas no esboço de algumas partes do grandioso romance. Segundo Carlos Reis (2000), Os Maias são excessivamente extenso, excessivamente complexo, na verdade, excessivamente romance para caber num palco. Entrementes, o esboço se distingue por estabelecer experiência isolada no trabalho literário do romancista português.

O rascunho, mesmo incompleto, é o projeto de dois atos que possibilita apontamentos valiosos em se tratando da analogia e vinculação entre esse rascunho de dramatização e o romance. Por ter sido deixado inacabado, muitas das cenas patéticas e cruciais do romance não são aí vislumbradas. O incesto, elemento que encaminha a intriga, não é nem mesmo entrevisto quando se chega ao fim do segundo ato.

Se até o segundo ato, como se vê, falta ainda muito para ser desenvolvido, há a previsível probabilidade da grande extensão da peça, caso Eça continuasse o projeto. Aqui se detecta o primeiro problema: a extensão conservada iria de encontro à exigência de economia e centralização conveniente à representação dramática, de outro modo, se houvesse redução das ações, a fim de satisfazer as determinações da contenção dramática, prejudicar-se-ia a tendência crítica e explicativa do panorama histórico-social, assim como das personagens que figuram no romance.

A fidelidade é o termo que melhor define a tentativa de dramatização de Os Maias. Nas cenas dos dois atos sobressaem os episódios dialogados preservados da obra original, denotando, dessa maneira, a subordinada ligação da dramatização ao romance. Dá impressão que Eça não consegue se desobrigar da constituição formal que a obra prima lhe motiva. Com efeito, os atos tracejados por Eça parecem não alcançar liberdade e não vencer a medida da dinâmica narrativa entremostrada em diferentes momentos junto ao esboço. Carlos Reis e Maria do Rosário Milheiro (1989) conjeturam que o plano em questão sugere, por sua incompletude e aparente abandono, o auto-reconhecimento de Eça de Queirós das próprias limitações de teatrólogo:

Não podendo dispor de uma entidade capaz de mediatizar as componentes espaciais e temporais, e de apresentar as personagens em termos carregados de intencionalidade (crítica, apreciativa, caricatural), intimamente consciente da importância e dos significados que desses componentes e dos seus peculiares tratamentos se inferem no romance; carecendo de um espaço dotado da capacidade de insinuação ideológica que o discurso narrativo consente (pela via da polifonia estilístico-ideológica inerente às relações narrador/personagens), Eça de Queirós dificilmente poderia levar a bom termo um projecto artístico como a dramatização planeada. Porque, não o esqueçamos, em Eça confluíam não apenas o dramaturgo embrionário, mas também o escritor preocupado, em elevadíssimo grau, com a plenitude e com a coerência artística das suas obras, assim como o autor desse monumento da ficção narrativa que é o romance Os Maias, horizonte de referência e marco inatingível de toda a subseqüente tentativa de dramatização.
(1989, p. 198)

Ainda em se tratando do aspecto teatral, acredita-se de grande importância mencionar o fato de Eça de Queirós ter escrito ao brasileiro Augusto Fábregas, responsável pela adaptação de O Crime do Padre Amaro para o teatro, que nunca havia pensado que esse livro fosse passível de dramatização, pois o único dos livros que sempre lhe apresentou forma de drama patético, “de fortes caracteres, de situações morais altamente comoventes” (QUEIRÓS, v. 4, 2000, p. 936) fora Os Maias. O romancista, nessa carta, também elogia o brasileiro por ter sabido extrair de O Crime do Padre Amaro movimento e atuação intensos, capazes de atrair a atenção.

Apesar da adaptação do romance O Crime do Padre Amaro para o teatro provocar a admiração do escritor português, sabe-se que a ficção queirosiana está permeada de manifestações autenticamente dramáticas – O Primo Basílio e A Tragédia da Rua das Flores são exemplos – aos quais, segundo João Pedro de Andrade (1945), faltou apenas serem pensados, desde o começo, em termos de teatro para se tornarem dramas legítimos.

Os Maias
e A Tragédia da Rua das Flores apresentam muitos elementos dramáticos. O escritor português utiliza, nessas obras, um alto grau de potencial dramático. Os arrebatamentos de Genoveva, assim como os de Maria Eduarda, são teatrais, pois buscam produzir efeito no leitor. Ambas são apresentadas como deusas de extraordinária beleza, e só depois o leitor tem conhecimento dos defeitos e torpezas. Na cena em que Maria Eduarda revela o passado a Carlos, os diálogos que aí se sucedem são de incrível dramaticidade. As páginas em que Eça de Queirós descreve a luta de Carlos consigo mesmo, a fim de se desprender daquela paixão condenável, são das mais dramáticas de toda a sua obra. Outra cena digna de ser lembrada aqui, por seu teor altamente dramático, é aquela que antecede o suicídio de Genoveva, quando se encontra com o filho na consciência de ter cometido incesto involuntário.

Esses e muitos outros excertos que existem na obra de Eça de Queirós podem ser chamados de momentos dramáticos. A prosa queirosiana é intensa, plena de dramaturgia e vigor, flexível, maleável, encantadora e plena de traços descritivos, traços capazes de criarem realidade e representação.

Por que motivo Eça de Queirós escreveu romance e não drama? Por que utiliza tema e elementos próprios da tragédia grega para caracterizar a sociedade do século XIX? Essas são algumas interrogações que se colocam antes da detecção de elementos trágicos nos romances de Eça de Queirós.

Levando-se em conta a história literária do escritor português, exceção feita ao ensaio de adaptação do romance Os Maias, chegar-se-á à conclusão de que Eça de Queirós se distancia da arte dramática. Na história literária desse escritor oitocentista sobressai, notavelmente, a ficção narrativa.

A preferência do escritor pelo gênero romanesco na sua produção é justificada, primeiro, pela possibilidade de tratamento mais ampliado de espaço e de tempo que as narrativas implicam, depois, pelas intenções críticas que proporcionam. Atente-se para as delongadas caracterizações do passado e precedentes culturais de certas personagens como Pedro da Maia, Maria Monforte, Genoveva, Pedro da Ega, Amélia, Amaro, etc., a fim de assinalar suas motivações; atente-se, também, para a predileção que os realistas naturalistas têm pelo gênero romanesco. Afigura-se dispensado de demonstração, que o modo dramático tolheria a vastidão e intensidade do universo queirosiano e também que as particularidades essenciais que caracterizam o gênero dramático poderiam não abarcar o conjunto de idéias e valores buscados pelo Realismo/naturalismo.

Diferentemente da narrativa, o drama tende à concentração de tempo e espaço, à forma dialogada, à valorização do presente, à eliminação do narrador. O estratagema discursivo do drama é diferente do estratagema da narrativa. São elucidativas as menções de Carlos Reis e Maria do Rosário Milheiro:

Se, por um lado, o drama parece coincidir com a narrativa no destaque que, no seu contexto, é atribuído à ação, por outro lado, outras características deixam transparecer uma estratégia discursiva radicalmente distinta da narrativa, antes ainda de se considerar a problemática da sua representação cênica; referimo-nos, por exemplo, à consabida propensão para a concentração temporal que no drama se regista, à articulação eminentemente dialógica dos seus enunciados e sobretudo (entenda-se: sobretudo em contraste com a narrativa), ao privilégio do presente em detrimento do passado, ao desvanecimento do enquadramento espacial e social da ação e à ausência de um sujeito transcendente aos fatos representados (o narrador da ficção narrativa), o que implica a inexistência de uma voz marcadamente ideológica, capaz de insinuar as ocultas dos eventos e os significados que eles encerram.
(1989, p. 184-185)

As diversidades entre o drama e o romance, apontadas acima, são alguns dos elementos que fazem oposição à escolha do modo dramático pelo escritor realista naturalista.

O Realismo é o grande período do romance como instrumento de investigação da realidade. Convém ressaltar também que o projeto de Eça das “Cenas” como forma de revelar o Portugal atrasado e decadente, posicionando-se, decisivamente, contra tal estado das coisas, revela-se como outro elemento de oposição à preterição do gênero dramático.

Sabe-se que Eça não abre mão da própria presença, mesmo que camuflada, na figura do narrador objetivo, conduzindo a perspectiva do leitor para compactuar da sua visão da sociedade portuguesa em fins do século XIX. Em Eça, o leitor depara-se com o mundo preparado pelo narrador. O narrador, em Eça, conduz a visão do leitor à coisa narrada. Apesar do narrador queirosiano contar, apesar do discurso ser dele, o narrador não aparece dizendo a coisa em seu nome; ele joga tudo para a perspectiva da personagem.

O teatro tira o autor de cena. No teatro, o espectador está diante da cena. Por não ter ninguém manipulando a perspectiva, a interpretação é mais livre do que na narrativa.

Tem-se conhecimento que, no século XX, Brecht deu feição nova à arte dramática ao fazer do drama o expediente de análise tanto social quanto histórico. O drama épico teve de, para isso, consoante Carlos Reis e Maria do Rosário Milheiro (1989), adotar recursos narrativos, como por exemplo, a narrativização de elementos cênicos e a distanciação. A produção literária queirosiana é anterior, pelo menos, um século, a esta nova proposição e concepção do drama. O escritor realista português, em seu tempo, parece entender ser, de fato, o romance o gênero que melhor se adequaria às suas intenções e aos propósitos do realismo e naturalismo.

A forma dramática teve grande influência e valor no conjunto do Romantismo português, entretanto, exceção feita a Almeida Garrett, no contexto português, poucos são os escritores dramáticos que se valem da originalidade e competência. É sabido que a criticidade é um dos aspectos maiores da produção literária queirosiana e, em certa medida, ela é influenciada, de maneira encoberta, pela oposição ao aspecto dramático do romantismo português. É sabido também que, não apenas Eça de Queirós, mas, de maneira geral, os realistas e naturalistas, denunciam o sentimentalismo piegas do ultra-romantismo.

Eça de Queirós assume apreciação crítica em relação à produção teatral romântica. Em As Farpas, na seção de abertura, ao traçar os contornos do debilitado quadro social e cultural português de 1871, a forma literária dramática é apresentada como fenômeno contraproducente. Eça critica a falta de originalidade, a pobreza da montagem dos espetáculos, a ausência de interesse do público, o cunho invariável das atuações, a perda da própria acepção, do significado e do propósito.

Num texto destinado especialmente ao teatro, Eça de Queirós faz apreciação demasiadamente negativa do teatro português. Para o escritor, o teatro nacional carece daquilo que ele próprio denomina “gênio dramático”, pois teima em valer-se dos despropósitos e afetação do sentimento característicos do Romantismo. Ele também considera o retardamento da realização dramática autenticamente portuguesa:

O português não tem gênio dramático, nunca teve, mesmo entre as passadas gerações literárias, hoje clássicas. A nossa literatura de teatro toda se reduz ao Frei Luís de Sousa. De resto, possuímos dois tipos de dramas, que constantemente se reproduzem: o drama sentimental e bem escrito, de belas imagens, ode dialogada, em que uma personagem lança frases soberbamente floridas, o outro retruca em períodos sonoros e melódicos – e a ação torna-se assim um tiroteio de prosas ajanotadas: o drama de efeitos, com o que se chama finais de acto, lances bruscos, um embuçado que aparece, uma mãe que se revela:
-“Ah! Céus! É ele! Matei meu filho! Oh! (QUEIRÓS, v.3, 2000, p.792)

Conforme Carlos Reis e Maria do Rosário Milheiro (1989), as imperfeições, mencionadas por Eça, são encontradas nas personagens de seus romances. A título de exemplificação, tem-se Ernestinho Ledesma (O Primo Basílio) e Artur Corvelo (A Capital!), porque vivem o sonho e a desilusão do jovem escritor romântico. Artur Corvelo é atingido pelos enganos culturais inseparavelmente ligados à reverência do drama sentimental. Ernestinho Ledesma é a imagem do desfalecimento da literatura romântica, especificamente da manifestação dramática.

Apesar de todas as apreciações críticas por parte de Eça de Queirós, é preciso levar em conta que elas não se aplicam à genuína arte dramática, pois também em As Farpas (QUEIRÓS, v.3, 2000, p. 795), no momento em que volta a atenção para o teatro, menciona os benefícios de produção de “um teatro normal”, como desencadeante do desenvolvimento da riqueza cultural e intelectual do país. Assim, constata-se que, não obstante as críticas, o romancista português essencialmente não se desvincula da produção dramática ou reage com apatia em relação à adaptação teatral dos seus romances. O contrário disso foi exposto anteriormente, com referência à própria tentativa de teatralização de Os Maias e à missiva a Augusto Fábregas.

Eça fez, em As Farpas, é verdade, diversas considerações, melhor dizendo, ressalvas, quanto ao gênero dramático português, mas isso não impede de reconhecer, na obra desse romancista, predeterminações dramáticas. As personagens de muitos romances queirosianos, mais aqui, especificamente, de A Tragédia da Rua das Flores e de Os Maias, comunicam pelos movimentos e comportamentos, o que faz, de alguns diálogos, autênticas cenas. De acordo com Mário Sacramento (2002), existem muitas cenas nos romances que facultam o deslocamento para o palco.

Por mais que se constatem virtualidades dramáticas em A Tragédia da Rua das Flores e em Os Maias, tais obras não são peças teatrais, não são dramas. E é desse princípio que se tem de partir. A estruturação das ações, a configuração do tempo, a caracterização das personagens, a perspectivação narrativa distinguem o romance, gênero escolhido por Eça de Queirós para expressar as diretrizes ideológicas que o guiam (REIS e MALHEIRO, 1989).

O romance é o gênero literário que se afirma desde fins da Idade Média, mas além de encontrar-se em etapa de formação e por isso poder abarcar muitos outros gêneros, atinge a mais perfeita e completa expressão na sociedade burguesa. O romance é o grande gênero do século XIX, foi aquele escolhido pelos realistas naturalistas para compor o inquérito da sociedade. Por ser um gênero investigativo, o romance realista supõe, na sua própria forma, a reflexão sobre a reflexão.

O romance é o gênero artístico da sociedade burguesa, porque exprime as oposições, divergências e desacordos da mesma. O indivíduo cindido, como Victor e Carlos, figurantes de uma sociedade que baseia todos os princípios nos aspectos econômicos, é de modo mais completo reproduzido nessa forma literária. Importante mencionar aqui que o conflito entre indivíduo e meio circundante, as denominadas antinomias radicais, serão oportunamente consideradas.

Na sociedade oitocentista, por assim dizer, na sociedade moderna, diferentemente da grega, o indivíduo não vive em equilíbrio nem vislumbra possibilidade de reconciliação com o mundo. Talvez, por isso, Eça de Queirós tenha escolhido o romance para retratar o conflito essencial da sociedade portuguesa de seu tempo, que, apesar de certas peculiaridades específicas, visa ao momento das contradições que o capitalismo provoca no Ocidente.

O romance, segundo Luckács, tem o objetivo de caracterizar a totalidade do mundo. O trágico moderno sobrevive na forma do romance, não mais, como na tragédia grega, para o expurgo dos sentimentos negativos, mas para demonstrar os modos falsos de viver, a hipocrisia, o preconceito social, o padecimento do indivíduo, enfim, os aspectos negativos de uma sociedade. O intuito é o de evidenciar a necessidade de melhorar o mundo, todavia a perspectiva é outra, é moderna, é, mesmo, revolucionária. Tanto o trágico grego quanto o moderno têm a finalidade de alertar o homem para a própria fraqueza. A perenidade da tragédia antiga e a perenidade da tragédia em Eça se devem a essa peculiaridade.

O transcendente do trágico clássico dá lugar no romance moderno à fatalidade social. O romance é o gênero utilizado para expressar esse trágico social – autoridade e miséria que destroem o homem e a cultura – e individual – aflição e aniquilamento humano. O homem, conforme enunciado, se relaciona com o destino num meio condenado pela indiferença, restando a morte e o isolamento. Apenas o romance é capaz de descrever longamente as ações e sentimentos de personagens numa transposição da vida para um plano artístico. Somente ele pode melhor expressar o trágico cristão, onde se sobressai a vontade de personagens, na maior parte extraídas da vida real, que já não agem tão iludidas. O cristianismo concedeu ao homem destaque diferente: notabilidade, especificidade, individualidade. O homem está, no trágico cristão, incorporado numa ação que o levará à circunstância infeliz. O homem trágico, por meio das próprias atitudes, atrai a manifestação da fatalidade.

Os deuses estão mortos. Ao homem, abandonado, resta enfrentar a adversidade e encontrar, nas próprias atitudes, justificativa para a desgraça. Os conflitos, a destruição, a ruína, o pavor são os determinantes do trágico moderno na literatura, são os causadores da idéia trágica representada por Eça através do gênero romanesco. O herói romanesco não mais age de olhos vendados, como o herói grego, mas de olhos descerrados, com conhecimento de que caminha em direção ao próprio aniquilamento.

O romance é, para Lukács (2000), o gênero literário que melhor evidencia o caráter peculiar da sociedade burguesa. O herói moderno, problemático e solitário, sob a dependência da própria fraqueza e debilidade, só pode ser representado, em sua plenitude, nesse gênero, porque os seus conflitos estão relacionados com o ambiente social.

O herói moderno também está susceptível ao destino, mas o mundo agora é governado pelo capital, pelo individualismo que – à maneira dos deuses – também estabelecem, de maneira implacável, a opressão da Moira a todos os seus infratores. A não aceitação do casamento de Pedro com Maria Monforte por Afonso da Maia se deve não à proibição que implique a moralidade, mas ao preconceito social. O herói romanesco é fruto os vínculos próprios do capitalismo, pois vive numa sociedade onde prevalece o capital, o individual, a produção e o mercado. O gênero romance investiga a sociedade decadente, pobre, com seus jogos de classes e conseqüentes fatalidades. O infortúnio que se lança sobre os Maias tem seu princípio neste casamento desigual. De acordo com Suely Flory (1983, p. 158) “um descendente fraco, um homem pusilânime, levado pela paixão, calca sob seus pés todos os indícios do trágico destino que a ligação com a “deusa”, em cujas veias corria sangue negreiro e assassino, traria à sua descendência”.

Intriga notável, verossimilhança, impetuosidade, aniquilamento, sofrimento, conclusão infeliz, serão os elementos encontrados nas duas obras queirosianas cotejadas e são também elencados por Aristóteles na Poética a fim de qualificar a tragédia. O gênero escolhido por Eça é outro, diferente daquele considerado pelo filósofo grego, mas os elementos permanecem. A tragédia, enquanto gênero literário, morreu, mas o trágico se faz presente noutros gêneros literários, no romance, por exemplo, porque ele é o gênero capaz de abranger todos os outros, inclusive o dramático.

No romance, todas as partes, frases, períodos e parágrafos, harmonizam-se. O gênero romanesco permite penetração psicológica, instinto dramático, criação de tipos atuando em função de determinada trama, recorte da vida real e Eça de Queirós apresenta todas essas características, abusando, inclusive, do gênero. O romance admite amplitude, autonomia, independência de movimentos no espaço e no tempo, irrealizáveis, portanto, na tragédia clássica, limitada a breve espaço e curto tempo. A técnica romanesca de composição queirosiana revela perspicaz sensibilidade, destreza dos diálogos, capacidade de captar o cômico, o divertido, o ridículo, a graça, o humor e a ironia.

Quando se pensa na grande e na sublime literatura da Antigüidade, imediatamente, vem à tona a tragédia grega. Por mais que as epopéias e comédias tenham fundamental importância, é a tragédia que discute o homem na sua profundidade e essência. Eça de Queirós, ao recorrer a elementos constitutivos e temáticos da tragédia grega, retoma o filão do trágico em obras de qualidade estética profunda. O trágico dá a Eça o estofo da tradição.

É inegável, em Eça, a vocação de romancista, de criador de caracteres e de ação. Ele é artista, acima de qualquer coisa. É o modernizador do romance português, do romance de caracteres. Os tipos criados por Eça em seus romances reproduzem a vida portuguesa do século XIX, fazendo-os perdurar além do próprio tempo. Conforme Mateus de Albuquerque (1947), Eça realiza o milagre inédito de universalizar Portugal.”

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Fonte:
LUCIANA FERREIRA LEAL: “ELEMENTOS DO TRÁGICO EM EÇA DE QUEIRÓS: A TRAGÉDIA DA RUA DAS FLORES E OS MAIAS”. (Tese apresentada à Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP – Universidade Estadual Paulista para a obtenção do título de Doutor em Letras. Área de Conhecimento: Literatura e vida social Orientador: Dr. Odil José de Oliveira Filho). Assis, 2006.

Nota
:
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As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

Disponível digitalmente no site: Domínio Público

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