Um Machado de Assis historiador



“À procura da concepção de história entrelaçada na literatura e na concepção de literatura de Machado de Assis, deparamo-nos com um outro encontro entre o escritor e os historiadores. Noventa e cinco anos após a homenagem do Instituto Histórico, aparece um livro inteiramente dedicado à presença da história em Machado de Assis. As três páginas de Afonso Celso dão lugar ao volume de trezentas e quarenta e cinco páginas de Sidney Chalhoub. A ênfase na trajetória de vida, na imagem de um homem que se destacou por suas qualidades morais é trocada por uma análise da obra – a vida, a atuação profissional, comparece apenas para referendar a interpretação da obra. Ao invés de um grande homem que escreveu sobre outros grandes homens, é-nos apresentado o literato que interpretou a história da sociedade brasileira oitocentista; desaparece o autor de um “trabalho histórico” em nome do escritor cuja obra constrói-se integralmente sob o signo da representação histórica: “Ao contar suas histórias, Machado de Assis escreveu e reescreveu a história do Brasil do século XIX”; ao Machado de Assis, exemplo de vida, vem substituir o Machado de Assis, historiador.

Em que assenta tal qualificação? Como se apresenta esse contar e recontar, por meio da literatura, a história do Brasil oitocentista? Para Chalhoub, Machado de Assis fez de suas histórias – dos romances, destacadamente – um veículo para desenvolver sua própria interpretação do sentido do processo histórico da segunda metade do Oitocentos brasileiro. O romancista teria uma visão própria do sentido das mudanças políticas e sociais ocorridas entre aproximadamente 1850 e 1871, tendo elaborado seus romances de modo a externá-la. O que se decidiu naqueles anos e está presente na literatura machadiana foi o destino de uma hegemonia política e de seu projeto de dominação – o paternalismo, calcado em uma relação pessoal com os dependentes (livres e escravos) e no pressuposto da inviolabilidade da vontade senhorial. Essa política de domínio, seu funcionamento e a maneira como os dependentes atuavam explorando-lhe a lógica, mas em benefício próprio, estariam presentes em romances tanto da primeira quanto da segunda fases do escritor. De Helena (1876) a Dom Casmurro (1899), sustenta Chalhoub, Machado escreveu a história da crise e da falência desse projeto de domínio. Com narrativas situadas na década de 1850, Helena e Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881) representam o período áureo de vigência da hegemonia senhorial – o chamado “tempo saquarema”, com a elite proprietária certa de exercer o seu poder e de impor o seu domínio de alto a baixo da sociedade escravista. Daí heróis como Estácio e Brás Cubas, titulares desse poder, tão certo de si mesmos. Em Iaiá Garcia (1878), o enredo se desloca para os anos fundamentais de 1866 a 1871, em que se evidenciou a crise do paternalismo. Não é por outra razão que nesse romance os diálogos entre senhores e subalternos, como Valéria e Luís Garcia, tornam-se mais tensos: os antagonismos sociais estão mais evidentes, a classe senhorial conscientizou-se das resistências que os dependentes opõem à efetivação de sua vontade. Não é por outra razão, tampouco, que Brás agoniza e morre entre 1870 e 1871, “anos de intensa movimentação em torno da questão do ‘elemento servil’”; ou que Bentinho dá-se conta do adultério de Capitu em março de 1871, momento da ascensão do gabinete Rio Branco, responsável pela aprovação da Lei do Ventre Livre. Essa lei significou a derrota da classe senhorial. Uma derrota sobre a qual os senhores não deixaram de refletir, fazendo-o sempre segundo os hábitos de pensamento de sua própria classe. Perceberam então a ingenuidade em que se engolfavam, incapazes de notar a dissimulação dos subordinados, que perseguiam seus próprios objetivos enquanto davam a entender que apenas obedeciam. Esta a alegoria política por trás de Dom Casmurro, obra de acusação em que um representante da família abastada demonstra sua incapacidade de reconhecer como legítima a ação autonômica dos subordinados. Ao interpretar retrospectivamente os acontecimentos, apenas consegue vê-la como traição.

Várias questões sobrelevam da argumentação de Chalhoub. Em primeiro lugar, não somente “O Velho Senado” já não é o único texto “histórico” na obra machadiana como tampouco é guindado ao lugar de veículo por excelência de um conteúdo histórico. Mais ainda, não é sequer mencionado em Machado de Assis, historiador. O lastro histórico da literatura desvincula-se da presença de personagens históricas entre os protagonistas. Seu aparecimento ocasional no enredo – como a menção ao gabinete Rio Branco, em Dom Casmurro – é tomado como mais um indício da significação histórica da narrativa, que passa a carregar, ela sim, uma interpretação histórica elaborada pelo escritor. E isto a despeito de as personagens serem inteiramente ficcionais e de as narrativas não terem por pano de fundo nenhum acontecimento histórico em particular: não se passam durante a Guerra dos Mascates ou a Inconfidência Mineira, as Bandeiras ou a Independência. Que se possa, não obstante, enxergar história na literatura deve-se ao fato de esta ser vista como um “testemunho histórico”.

Tal pressuposto metodológico, explicitado alhures, responde em primeiro lugar a um outro questionamento. Enunciado na “Apresentação” de uma obra publicada ao final da década de 1990, é aos desafios impostos à história pelo chamado linguistic turn que ele busca fazer frente. Trata-se, no dizer de Sidney Chalhoub e Leonardo Affonso Pereira, de enfatizar obra, autor e contexto, rejeitando análises focadas na intertextualidade e na morte do autor. Contra o pressuposto de autonomia da literatura, propõe-se historicizar a obra literária, “inseri-la no movimento da sociedade, investigar as suas redes de interlocução social, destrinchar não a sua suposta autonomia em relação à sociedade, mas sim a forma como constrói ou representa a sua relação com a realidade social – algo que faz mesmo ao negar fazê-lo”. Contra a tese de que tudo é texto, defende-se o postulado de um referencial externo ao texto: as interpretações históricas devem conformar-se às fontes e a literatura reveste-se de caráter histórico por poder ser interrogada enquanto fonte, isto é, enquanto evidência de um contexto histórico. Contra uma abordagem essencialista das relações entre história e literatura, trata-se de relacionar autores e obras específicas a contextos históricos determinados. É em função do que dizem sobre o “seu tempo” e o “seu país”, do que expressam aos seus contemporâneos, do que revelam do “sentimento íntimo” de homens e mulheres de uma dada época que autores e obras interessam aos historiadores.

É notória a transformação na maneira de se compreender a presença da história na literatura. Os historiadores do IHGB – para quem Machado de Assis, ao redigir “O Velho Senado”, havia escrito um trabalho histórico – associavam história e conteúdos históricos explícitos. Ou seja, era “histórica” a literatura que havia tomado por tema um objeto da história – grandes homens e seus feitos – elaborando um enredo a partir desses elementos. Historiadores atuais, que concebem a existência de um “Machado de Assis, historiador”, liberaram a literatura de uma tal exigência. Para ser “histórica” ela não precisa eleger uma temática específica. Que tenha personagens reais ou ficcionais, que situe suas narrativas no passado ou no presente, em seu país ou em terras distantes, qualquer obra literária pode funcionar como um “testemunho histórico” – e é esta a razão porque ela é “histórica”. O “testemunho histórico” da literatura é portanto a história que abandona a superfície da obra. É a história que está presente a despeito de não estar presente explicitamente, pois se revela pela significação profunda do enredo e das personagens – significação essa que o historiador vem expor, que ele conhece como ninguém, porque enraizada na realidade concreta da época do escritor. Essa nova compreensão da relação entre história e literatura assenta-se no princípio da alegoria: as personagens – seu pensamento, comportamento e relações pessoais – representam tipos sociais e a narrativa romanesca constitui uma interpretação da sociedade. Assim, a urdidura de Helena (1876) revela-se uma interpretação da sociedade brasileira durante o período de hegemonia da ideologia senhorial: 1850; Estácio, um representante da classe senhorial; e Helena, uma representante do grupo dos dependentes livres.

A emergência de um “Machado de Assis, historiador” atesta, além disso, uma modificação na própria concepção de história dos historiadores. A história como sentido histórico profundo da narrativa, como acessível por meio da significação sócio-histórica das personagens, quaisquer que sejam elas, é indício inequívoco de que já não se concebe a história como campo de ação dos únicos grandes homens. Para que se possa enxergar história em uma literatura que narra a trajetória de vidas quaisquer, é mister que o conceito de história tenha se alterado.

O próprio Sidney Chalhoub evidencia-o ao relatar as circunstâncias de seu reencontro com a obra de Machado de Assis. Uma pesquisa sobre as últimas décadas da escravidão na Corte forneceu-lhe o ensejo de retornar às páginas do escritor, onde, para sua surpresa, encontrou aquilo por que como historiador desde sempre se interessara: o “resto” da sociedade imperial, isto é “escravos, agregados, caixeiros, operários, cortiços, febre amarela, varíola...”. A literatura machadiana mostrou-se recheada de uma exposição da política de domínio própria à sociedade escravista do Brasil da época e de uma reflexão sobre “a experiência social de escravos, dependentes e outros sujeitos que, dizia-se, não estavam no centro” de sua obra.

“Escravos, dependentes e outros sujeitos”. O uso da expressão não é casual. Como historiador do Brasil do século XIX, Chalhoub tem-se dedicado a investigar a ação histórica daqueles que Alfredo do Nascimento chamou “os naufragos do mundo”. Sua primeira análise de um texto machadiano, a crônica de 19 de maio de 1888, fez-se no quadro de um estudo cujo objetivo maior era demonstrar a ação autônomica dos escravos e seu papel fundamental na abolição.Visões da Liberdade toma por protagonistas gente como Bonifácio e Bráulio, Carlos e Ciríaco, Felicidade, Cristina e Fortunata – escravos, analfabetos, criminosos alguns deles, anônimos todos – e sustenta que eles são “exemplos seguidos de sujeitos históricos que conseguiram politizar a rotina e, assim, transformá-la”. Seguindo lógica e racionalidades próprias, baseando-se em experiências e tradições históricas particulares e originais, perseguindo objetivos inteiramente seus, os donos dessas vidas minúsculas impuseram uma tensão insustentável no interior da propriedade “e ajudaram decididamente a cavar a sepultura” da escravidão. A lei de 28 de setembro de 1871, primeira lei abolicionista do Brasil, longe de ter sido um feito do Visconde do Rio Branco – como se costumava repetir no IHGB – “foi de certa forma uma conquista dos escravos”. Ela significou o reconhecimento legal de uma série de direitos costumeiros que ao longo dos anos os cativos haviam conseguido arrancar de seus proprietários “e a aceitação de alguns objetivos das lutas dos negros”. Contribuiu, assim, para a corrosão decidida e irremediável daquele que era um dos pilares da instituição escravista: a autoridade moral dos senhores sobre os escravos. Até então, vigia de maneira inquestionável o princípio da inviolabilidade da vontade senhorial: cada conquista escrava – cultivo de uma roça própria, constituição da família, formação do pecúlio, alforria, etc. – figurava como um privilégio individual concedido pelo senhor, a requerer dedicação e a produzir gratidão. Com a lei de 28 de setembro, várias concessões tornaram-se direitos, que os senhores eram obrigados a reconhecer e impedidos de contrariar.

Segundo Chalhoub, há em Machado de Assis uma perspectiva semelhante. Em Visões da Liberdade, a crônica de maio de 1888 é considerada a interpretação machadiana do processo histórico de extinção da escravidão. A atribuição, longe de ser inédita, dava lugar, porém, a uma análise inovadora. Ao passo que outros intérpretes do texto haviam-no considerado uma prova de que Machado de Assis via a abolição como um não-acontecimento, a permanência da exploração travestida em novas roupas, com o trabalhador sempre cativo da opressão, Chalhoub desenvolve uma tese diametralmente oposta. Defende que, nesse exemplar da série “Bons Dias!” (1888-1889), o escritor oferece uma explicação para as mudanças que redundaram na Lei Áurea. E que ele teria identificado, entre elas, uma transformação na atitude dos próprios escravos, que, a partir de 1870, adotaram posições mais firmes na luta pela liberdade. Em outras palavras, já Machado distinguia os cativos como sujeitos históricos do processo emancipacionista.

Da mesma maneira, os três primeiros capítulos de Machado de Assis, historiador acentuam a imagem de um escritor ciente da ação histórica e política dos pequenos. Como visto, Chalhoub vê em Machado um “intérprete incansável do discurso político possível aos dominados” em seus diálogos com membros da classe dominante. Um escritor que construiu personagens como Helena e Luís Garcia, que demonstram, em suas relações com senhores como Estácio e Valéria, plena consciência de que estes se assumem como os únicos sujeitos dos acontecimentos. Personagens dotados da perspectiva crítica que distingue os dependentes e que lhes permite atuar habilmente no interior da lógica senhorial, mas com o fim de subvertê-la. Sinuosa ou sutilmente – ou, à maneira de Capitu, que superaria grandes distâncias não com um grande e único pulo, mas “aos pulinhos” – alcançam seus próprios objetivos mantendo os senhores presos à crença enganosa de que tudo deriva exclusivamente da vontade deles senhores. Assim, corroem os alicerces da política de domínio paternalista, embora na aparência a estivessem reforçando.

Um adepto da história social encontra em um escritor morto há cem anos uma perspectiva histórica semelhante à sua. Como o historiador de hoje, o romancista do passado percebeu a sofisticada compreensão política dos dependentes e sua ação consciente e racional em prol de seus (deles) objetivos; reconheceu a possibilidade de os subordinados serem sujeitos em uma sociedade que não o admite; demonstrou como os subalternos livres e escravos foram sujeitos na sociedade escravista brasileira. O fenômeno chama a atenção: segundo Chalhoub, há em Machado de Assis uma concepção que não é de maneira alguma habitual entre os historiadores que lhe foram contemporâneos: os dependentes, os escravos, os pobres, os anônimos foram os verdadeiros atores históricos e políticos do processo de dissolução da ordem social própria ao Brasil do Segundo Reinado. Curiosamente, porém, Chalhoub não desenvolve uma reflexão acerca dessa singularidade machadiana. – O que não é o mesmo que não estar atento a ela.

Em seu “capítulo tradicional de história” – “Escravidão e cidadania: a experiência histórica de 1871” – o historiador analisa as representações da escravidão e do escravo construídas por três escritores: Machado de Assis, Joaquim Manoel de Macedo e José de Alencar. Os dois primeiros, favoráveis à emancipação e o terceiro, contrário.

Machado comparece com “Mariana”, conto de 1871 que conta a trágica história da personagem-título, escrava criada como filha da casa pela família de Coutinho. Como tal, Mariana tivera uma educação bastante semelhante à das filhas de sua senhora – aprendera bordado e francês – e era tratada como pessoa da família, com a exceção de que não podia comer à mesa com os demais nem comparecer à sala quando houvesse visitas. Ocorre que ela acaba apaixonando-se pelo senhor moço, Coutinho, e, ciente da impossibilidade de concretizar o seu amor, foge, atraindo sobre si duras acusações de ingratidão. Encontrada por seu amado e instada por ele, Mariana retorna a casa, mas foge novamente, incapaz de suportar a idéia do casamento próximo de Coutinho. Este a reencontra às portas do suicídio, que termina por se concretizar.

De Joaquim Manoel de Macedo é analisado “Lucinda – a mucama”, terceiro romance de Vítimas-algozes. Quadros da escravidão, de 1869. Trata-se da história de Cândida, filha de um honrado negociante e agricultor do interior do Rio de Janeiro, e das influências nefastas exercidas sobre ela por Lucinda, mucama que ganhara de presente em seu aniversário de onze anos e destinada a substituir Joana, mulher pobre, livre e virtuosa que cuidara de Cândida até então, mas que partira em função de um novo casamento. Lucinda é construída como uma personagem devassa, traçoeira, falsa e ambiciosa que manipula sua senhorinha Cândida e promove o seu defloramento. Tal é, segundo, Macedo, a conseqüência inevitável da escravidão: a coisificação moral dos escravos que, filhos da opressão social, são incapazes de possuir sentimentos puros e desinteressados, presas que são dos vícios mais ferozes e bestiais. Causam, assim, grandes males aos senhores e à família senhorial, exposta ao convívio cotidiano e íntimo com seres depravados.

Chalhoub contrapõe Machado e Macedo, demonstrando como um objetivo comum – condenar a escravidão – efetua-se segundo estratégias distintas, reveladoras de concepções políticas igualmente díspares. Em sua escolha por abordar os males que os escravos causam a seus senhores, Macedo elabora uma descrição dos cativos “tão impiedosamente desfavorável que se torna difícil pensar na possibilidade de que essas pessoas, uma vez libertas, possam usufruir de direitos de cidadania e participar da vida política”. A violência da escravidão desumanizava os cativos, impedia-os de adquirir cultura e de aderir às regras de comportamento e aos valores morais, donde a irrisão dos laços familiares, a sexualidade bestializada e o ódio feroz contra os senhores. Seres tais que não só não eram como não deveriam ser sujeitos políticos.

Com uma perspectiva completamente oposta, José de Alencar endossava, contudo, a avaliação de Macedo. Deputado conservador, o escritor José de Alencar buscou com O tronco do ipê inspirar nostalgia por um mundo supostamente perdido: o mundo idílico da grande e próspera propriedade rural escravista. Os escravos que o habitam são muito distintos de Lucinda: longe de serem inimigos dos seus senhores, estão sempre velando por eles, ajudando-os, cultivando sentimentos de gratidão e respeito. Alencar fazia assim da escravidão “a chave de todo um modo de vida” cuja continuidade não podia ser comprometida pela emancipação. E anunciava sua oposição nos debates parlamentares que se seguiriam: a emancipação pela via legal destruiria aquele mundo de relações harmoniosas e geraria um verdadeiro caos social, pois significava não somente promover o ódio racial como lançar no seio da sociedade seres despreparados para o exercício da liberdade. A única emancipação aceitável era a que partisse de uma iniciativa individual e exclusiva do senhor em relação a um seu escravo julgado digno de a receber, capaz de reconhecer os sentimentos de gratidão que ela lhe impunha. Pois, como demonstraria em Til, romance de finais de 1871, homens livres pobres destituídos de laços de dependência e gratidão “percorre[m] o campo como bestas-feras”.

Abolicionistas e escravocratas encontravam-se em sua visão comum de uma necessária tutela sobre esses seres de instintos animalescos e paixões bestiais. Uma visão que, demonstra Chalhoub, não está em Machado de Assis, ele que escolheu o caminho contrário ao de Macedo: retratar os males que os senhores causam aos escravos, e que esculpiu sua Mariana como o oposto de Lucinda. Ainda que dilacerada pelo cativeiro, ela é “portadora de cultura, capaz de atos de dignidade e autonomia”. O amor que nutre por Coutinho é puro e sincero e ela tem plena consciência dos vetos que sua condição de escrava lhe impõem, deixando-lhe como única alternativa o suicídio. Mariana apresenta-se como sujeito apesar da escravidão.

Contudo, não basta apontar a diferença. Falta explicá-la. E, ao fazê-lo, Chalhoub abre mão de uma perspectiva que se detenha na singularidade que seu estudo aponta: a de uma outra concepção de história em Machado de Assis. O que separa o autor de “Mariana” do de “Lucinda – a mucama”, ambos favoráveis à emancipação, é simplesmente a conjuntura política. Macedo escreveu seus “quadros da escravidão” em 1869, quando o país era governado por um gabinete conservador, obstinado em barrar qualquer lei abolicionista. Seu romance, verdadeira peça de propaganda, desenhada para ganhar corações e mentes de escravocratas, exprime “a disposição de lutar contra aquilo que se percebia como o abandono dos projetos de emancipação que vinham sendo discutidos havia três ou quatro anos”. Machado, por sua vez, criou a história de Mariana em janeiro de 1871, quando um gabinete francamente abolicionista havia ascendido ao poder e todo o país estava na expectativa da abertura dos trabalhos legislativos. Seu conto, ao fechar com senhores espantosamente céleres em esquecer o sofrimento causado aos escravos, transmitia, argumenta Chalhoub, a mensagem de que era inútil tentar mudar a mentalidade senhorial. Para que houvesse alguma modificação nas relações escravistas, era indispensável a intervenção do Estado.

Não somente a singularidade não é examinada: ela dissolve-se no contexto. A explicação não sublinha a distinção antes evidenciada entre as concepções políticas derivadas das duas histórias, preferindo mencionar seu posicionamento no debate imediato acerca de uma primeira lei abolicionista no Brasil. Além disso, seguindo-se rigorosamente o raciocínio proposto, é de se supor que outro escritor que, em janeiro de 1871, elaborasse uma representação literária do mundo que a escravidão criou, o fizesse nos mesmos termos de Machado de Assis: sugerindo a necessidade de interferência estatal no domínio privado das relações escravistas. A não ser que se tratasse de um literato escravista – nesse caso, sua representação seria conforme à de José de Alencar, cujos romances são igualmente tomados como testemunhos do momento político em que foram escritos.

Ao lado da referência ao contexto, o próprio percurso explicativo anula qualquer desvio potencial da concepção de história, porque depende, em primeiro lugar, de uma normalidade da literatura machadiana. Seja conservador ou liberal, escreva sob uma conjuntura pró ou anti- abolicionista, o fato é que qualquer escritor do século XIX concebe a literatura como arena de luta política, como veículo para a expressão de uma visão de sociedade. Como escritor, Machado de Assis faz o que qualquer escritor faz. Sua diferença, se não é a do momento histórico, é a da experiência pessoal. Daí a investigação do seu exercício funcional no Ministério da Agricultura, iniciado em 1873. Se Machado figurou em seus livros a ideologia senhorial e o comportamento que ela impunha aos dependentes, bem como a crise daquela pela ação destes, é porque vivenciou de perto a experiência histórica que se associou a tal processo: como funcionário da Seção de Agricultura do Ministério, esteve diretamente envolvido na aplicação da lei de 1871, testemunhando as resistências e fraudes dos proprietários e laborando em favor da liberdade – como provam os despachos que deu. A ruptura operada com as Memórias Póstumas de Brás Cubas, publicadas em folhetim na Revista Brasileira ao longo de 1880 e em livro em 1881, explica-se, por sua vez, por uma conjunção entre experiência pessoal e momento político. Machado elaborava o romance enquanto estavam em curso os debates parlamentares sobre a reforma eleitoral, proposta pelo gabinete do liberal Visconde de Sinimbu. Aprovada em 1881, a nova lei suprimiu a eleição indireta e proibiu o voto dos analfabetos, o que conduziu a uma redução drástica do já minúsculo percentual de eleitores no Brasil. Ao “‘estado de espírito’ político” do escritor deve-se o fato de Brás abrir suas memórias com um prólogo “Ao leitor” no qual anuncia dar pouca importância aos leitores, certamente poucos, que seu livro teria. Porque Brás, sendo membro da elite proprietária, agia em literatura como em política. “Barrados os cidadãos da política, restava imaginar uma literatura da qual os leitores estavam excluídos”.

Ao aparar as arestas de uma possível distinção do escritor Machado de Assis em relação a outros escritores de sua época, ao reduzir o desvio de uma literatura – o desvio de uma concepção de história – a uma peculiar trajetória individual, Chalhoub não fez mais que demonstrar uma afirmação constante na primeira nota ao primeiro capítulo do livro: “Ao conceber a literatura como modo de ler a história, Machado apenas compartilhava visão bastante comum à época”. Desde o início, abdica-se de insistir em uma novidade na relação história-literatura em Machado de Assis. Pelo contrário, trata-se de comprovar seu pertencimento a sua época. É este pertencimento, aliás, o que autoriza a interpretação do historiador. O lugar da afirmação supracitada assume, por isso, um caráter significativo. Ela está ali, no início, como para responder de antemão às objeções que se possa fazer a uma leitura histórica da obra de Machado de Assis. Qualquer que seja ela, qualquer que seja a minha – parece dizer-nos Sidney Chalhoub –, trata-se de uma leitura pertinente. Mais do que isso, de uma leitura requerida pela concepção de literatura da época do autor de Helena, quando era comum conceber a literatura como modo de ler a história.

Neste sentido, merece atenção o fato de, a despeito dessa afirmação inicial, Chalhoub ainda julgar necessário ancorar sua leitura no próprio escritor. Uma análise sócio-histórica da obra de Machado não somente é autorizada ou requerida pela concepção de literatura vigente no século XIX, ela é exigida pela própria compreensão machadiana das relações entre literatura e sociedade. Ao depreender uma interpretação da história do Brasil dos romances e contos de Machado, Chalhoub não estava apenas explorando uma disponibilidade do texto literário, mas respondendo à intenção mesma do escritor. Foi ele quem reivindicou para a literatura o âmbito da realidade, ao proclamar, em 1878: “Voltemos os olhos para a realidade, mas excluamos o Realismo...”. Retomando esse trecho da crítica de Machado a O primo Basílio, de Eça de Queirós, Chalhoub confere-lhe um sentido preciso:

Ou seja, a literatura busca a realidade, interpreta e enuncia verdades sobre a sociedade, sem que para isso deva ser a transparência ou o espelho da “matéria” social que representa e sobre a qual interfere. A Machado de Assis, como John Gledson já sugeriu, interessava desvendar o sentido do processo histórico referido, buscar as suas causas mais profundas, não necessariamente evidentes na observação da superfície dos acontecimentos. A representação literária desses sentidos mais cruciais da história exigia uma narrativa mais sinuosa, cheia de mediações e nuances; na experiência do leitor, assim como na do dependente, a verdade não se lhe apresentava tal qual, o sentido dos acontecimentos não era evidente – distanciamento crítico e observação perseverante tornavam-se requisitos básicos.

Realidade vira sociedade e, em seguida, sentido do processo histórico, sem que saibamos em que são ancoradas tais equivalências. Seja como for, o que está em jogo nessa afirmação de que o impulso para uma leitura histórica parte do próprio Machado, o que aí se evidencia, é a integração da análise de Sidney Chalhoub a uma tradição da crítica machadiana. É sua filiação a ela o que impede Chalhoub de realmente visualizar a singularidade da concepção de história existente na literatura machadiana. O historiador mesmo o diz: “é verdade que não veria História nenhuma nas histórias de Machado de Assis sem a experiência de ler outros intérpretes dele. [...]. Refiro-me, principalmente, a John Gledson e a Roberto Schwarz”.227 Há uma história que só se torna visível a partir do contato com certa crítica e suas interpretações sobre a relação entre literatura e sociedade brasileira em Machado de Assis. Mas, como se verá, essa visibilidade se alcança sob o preço de se apagar uma perturbação da concepção de literatura em Machado. E o que assim também se apaga é a singularidade de uma concepção de história. A fim de compreendê-lo, faz-se necessário entender o que está em questão na emergência da noção moderna de literatura e as relações que ela entretém com a política e a história."

---
Fonte:
RAQUEL MACHADO GONÇALVES CAMPOS: "ENTRE ILUSTRES E ANÔNIMOS: A CONCEPÇÃO DE HISTÓRIA EM MACHADO DE ASSIS". (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Faculdade de História da Universidade Federal de Goiás, como requisito para a obtenção do título de Mestre em História. Área de concentração: Culturas, Fronteiras e Identidades. Linha de Pesquisa: História, Memória e Imaginários Sociais. Orientador: PROF. DR. NOÉ FREIRE SANDES). Goiânia – Goiás, 2009.

Nota
:
A imagem (Exposição comemorativa do sexagésimo aniversário do falecimento de Joaquim Maria Machado de Assis, 1968: Biblioteca Nacional Digital do Brasil) inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

Disponível digitalmente no site: Domínio Público

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Excetuando ofensas pessoais ou apologias ao racismo, use esse espaço à vontade. Aqui não há censura!!!