A visão de Túndulo por Eça de Queirós



A visão de Túndulo por Eça de Queirós: a história de um manuscrito inédito de Eça de Queirós

Em 2000, à esteira das comemorações do centenário de morte de Eça de Queirós, Miguel Real publica o romance A visão de Túndulo por Eça de Queirós. O livro estrutura-se em cinco capítulos, assinados por diferentes autores. Os autores são Miguel Real, Eça de Queirós e Angel Juncal Laprida. A Miguel Real é atribuída a autoria do primeiro e o último capítulos, a Eça de Queirós, o segundo e a Angel Juncal Laprida, o terceiro e o quarto. No texto, os três autores são figuras ficcionais, pois, transformados em personagens do romance, constituem elementos estruturais da narrativa. O romance é a história de um livro (A visão de Túndulo), que, de manuscrito inédito de Eça de Queirós, encontrado em Buenos Aires, na Argentina, irá servir de reflexão sobre o ato da escrita e sobre a adoção por Eça de uma inusitada veia temática: ao consagrado Eça realista, associa-se um escritor afastado desse mesmo realismo e que reescreve textos medievalescos e assim retoma certo satanismo de viés baudelairiano, presente na primeira fase de sua produção literária, mais especialmente nos seus textos reunidos nas Prosas Bárbaras, publicados postumamente em livro em 1903. Sobre a base hipotextual do suposto manuscrito atribuído, na ficção de Miguel Real, a Eça de Queirós, comentou Maria de Fátima Marinho:

O título da obra apela inequivocamente para um texto medieval homónimo de que foi publicada uma versão por F.M. Esteves Pereira, em 1895, na Revista Lusitana e uma outra, em 1903-1904, por José Joaquim Nunes, na mesma revista. Se o texto medieval existe, o de Eça é completamente fantasioso e só remotamente convoca o hipotexto a que tão explicitamente se refere.

O capítulo inicial, intitulado
A descoberta, traz a assinatura de um Miguel Real ficcionalizado, visto que não se trata do autor empírico do romance, mas de uma personagem com importante atuação no desenvolvimento da narrativa. O capítulo irrompe com duas epígrafes: uma de autoria de A. Tocquevil e e a outra de José Saramago. As citações alertam para o perigo do autoritarismo que ronda uma humanidade convertida em massa de manobra. Às epígrafes, segue uma fotografia que, segundo se subscreve, trata-se de um retrato de 1931 do grupo fundador da revista modernista portenha Sur, destacando-se ao centro J.L. Borges (p. 9). E o texto prossegue com a informação de que, também em 1931, houve a inauguração da mansão labiríntica e fantástica do escritor argentino Angel Laprida. Nessa residência, seria encontrado anos mais tarde, sob posse de sua filha Dona Mignon Alberta Juncal Laprida Durañona, o manuscrito inédito do conto de Eça de Queirós A visão de Túndalo. Tal qual o Ulisses, de James Joyce, a narração inicia-se num dezesseis de junho, mas de 1997. Pergunta-se: será que, à semelhança de Leopold Bloom, o protagonista irá viver uma aventura digna de uma Odisséia? Sim, a esse "aventureiro" português, será revelada a existência de um manuscrito inédito de Eça de Queirós; e a ele caberia a epopéia da recuperação e apresentação desse achado literário a um mundo perplexo.

No primeiro capítulo, a narração é feita por um narrador extra e homodiegético que se esconde sob a assinatura do autor empírico, que, por sua vez, se oculta sob o disfarce de um pseudônimo. O eu apresentado, conduz à pergunta: quem é esse eu que conta sua história? Algumas linhas à frente, ele se dá a conhecer: “eu, Miguel Real, português, amador de romances, curioso da literatura, aluno do Mestrado de Estudos Portugueses da Universidade Aberta de Lisboa e professor de filosofia de Sintra” (p. 17).

Poderíamos ser levados a crer, pelos dados biográficos citados, que estaríamos diante do próprio autor empírico do romance, que, de igual modo, se chama Miguel Real. Entretanto, estamos imerso no terreno da ficção, cujo estatuto é regido pela imaginação e pela liberdade de criação, portanto o eu que se apresenta sob o nome de Miguel Real constitui um outro diferenciado do autor empírico; esse eu vem a ser apenas a marca de uma estratégia narrativa propositadamente armada para disfarçar a ficcionalização da assinatura do autor. A respeito dessa estratégia narrativa construída por Miguel Real, Maria de Fátima Marinho teceu a seguinte observação: “Assumindo-se o autor empírico como narrador extra e homodiegético e colocando-se em Buenos Aires num Congresso, encena o ambiente propício para a fabulosa descoberta”.

Ao narrador, compete descobrir um texto inédito de Eça de Queirós, por isso ele é descrito sob estreita ligação com o célebre escritor realista português. O protagonista é delineado no limiar da ação romanesca enquanto um senhor embaixador da obra de Eça de Queirós, na capital da Argentina. À personagem Concépcion, o narrador revela: “Sim, eu o conhecia-o bem, tanto quanto se pode conhecer alguém de quem se leu todos os livros, todas as cartas e, até, os bilhetes postais” (p. 12).

Assim, por se tratar de um iniciado, de alguém que cumpriu um ritual de iniciação, ele está enfim habilitado a comungar de uma abençoada revelação, anunciada pela boca de um "anjo" concebido especialmente para revelar-lhe a boa notícia. Diz-lhe Concépcion: “Miguelito, hay un manuscrito inédito de Eça de Queirós en Buenos Aires” (p. 14).

No entanto, para possuir esse objeto precioso, uma dádiva dos deuses a ser concedida a uma pessoa única, uma bênção para quem chegou ao patamar elevado de especialista na obra queirosiana, é necessário obedecer a certo ditame ritualístico, sem o qual, não se pode merecer tal galardão. E o nosso protagonista submete-se ao que for preciso a fim de ter em suas mãos o manuscrito de Eça de Queirós. Com esse fito, ele desloca-se ao bairro de Palermo Viejo, Buenos Aires, para, em casa da filha de Angel Juncal Laprida, uma mansão labiríntica e fantástica que Angel mandou construir sob inspiração e aconselhamento do amigo Jorge Luís Borges, receber das mãos de uma criada índia “um pequeno e velhíssimo embrulho de papel pardo atado com fitilhos de nastro vermelho” (p. 17).

Para prender o leitor numa rede de expectativas típicas da narrativa policial, o autor vale-se de protocolos discursivos que irão prepará-lo para a grande revelação, visto que “a descoberta do manuscrito é antecedida por elementos próprios para sugerir o suspense, desde o retardamento do relato até à descrição do próprio embrulho que Eça teria entregue a Laprida”.

Ante a sacralidade daquela relíquia, resta-lhe entrar em êxtase místico. E é o que lhe acomete: “Eu, saltei do sofá e, involuntariamente, vi-me a respirar ofegantemente, os lábios sedentos, senti o coração a pulsar, os dedos trementes e os olhos inquietos” (p. 17). Em estado de beatitude desencadeada pela visão estonteante de um objeto que se mantinha além de todas suas expectativas, o narrador participa ao leitor o maravilhamento de uma experiência mística deveras gratificante:

garanto-lhe, caro leitor, ser instantaneamente possuído por um sentimento próximo do que os santos designam por beatitude: realização plena, serenidade absoluta, ausência de perturbação corporal, silêncio interior, plena visão do tempo
(p. 18).

Passado o deslumbramento de uma reação de caráter orgasmático, o descobridor do manuscrito de Eça de Queirós, sai em busca dos sinais comprobatórios da autenticidade do texto. A princípio, estipula a datação do texto; texto esse que precisa estar devidamente situado dentro do conjunto da obra do autor português: “A letra correcta, finamente desenhada, levemente alteada, era o cursivo do Eça de meia-idade, dos quarenta, quarenta e cinco anos” (p. 19). Seguem, enfim, os pormenores descritivos que, ao mencionar seus elementos característicos, dão ao texto toda sua especificidade:

Eram exatamente cinquenta páginas de papel almaço, escritas espaçadamente, a letra fina alteada, emendadas, reemendadas e, possivelmente, dadas como definitivas. [...] Era um conto, um entre os inúmeros contos que Eça escrevera, mas, estranhamente, nunca por este mencionado
(p. 19-20).

Chama-se a validação dos estudiosos da obra queirosiana, tais como: Ernesto Guerra da Cal, Carlos Reis, Guilherme de Castilho ou Campos Matos, para, a partir de uma consulta aos livros por eles dedicados à obra de Eça de Queirós, chegar à conclusão de que nada consta na obra desses teóricos querosianistas que possa esclarecer a respeito de um manuscrito intitulado
A visão de Túndulo, que fora encontrado pelo protagonista em Buenos Aires.

Como se trata de um texto apócrifo, que não é conhecido dos teóricos especializados na obra de Eça de Queirós nem é mencionado pelo autor oitocentista em nenhum de seus escritos, o protagonista, enredado numa trama quase policialesca, tenta reconstituir a história do texto a partir dos vestígios deixados desde sua produção por Eça até o paradeiro final daquele manuscrito na casa de Dona Mignon Laprida, na distante Buenos Aires. Na busca da autenticidade, o investigador recorre a uma espécie de "bíblia" dos estudos queirosianos, sobretudo, no tocante ao espólio de Eça de Queirós, que é o livro de Carlos Reis e Maria do Rosário Milheiro, intitulado
A construção da narrativa queirosiana. Porém, nada encontra que possa confirmar a produção do texto A visão de Túndulo por Eça de Queirós. Sem base documental, o narrador imerge no terreno movediço da especulação, onde se instala a zorra entre a certeza e a dúvida: “Logo, ou o texto é do próprio Eça (e dentro de mim tudo se inclinava para que o fosse) ou quem o falsificou tinha conhecimento seguro da própria evolução literária de Eça de Queirós” (p. 23).

Para a reconstrução da história desse manuscrito de Eça de Queirós, o protagonista percebe que tem de partir do depoimento de Dona Mignon. Dessa personagem, instituída narradora intradiegética, deve proceder o relato das peripécias que resultaram na entrega do inédito de Eça a Laprida. Mas, ela tergiversa e fala de seu pai Angel Laprida. Porém, outras são as questões que interessam ao especulador nessa aventura literária e, para resolvê-las, deve insistir na busca das respostas para as perguntas que o inquietam:

talvez as circunstâncias por que o pai - presumia-se o pai - se tinha apoderado de
A VISÃO DE TÚNDULO, como possuíra ele este manuscrito, porquê em Buenos Aires - estas eram as questões que nós ansiávamos ver respondidas, e depressa, meu Deus!, depressa (p. 31). (Destaque do autor)

E as peças do quebra-cabeça daquele imbróglio literário começam a juntar-se: em Paris, Angel Laprida veio a conhecer Paulo Prado, sobrinho de Eduardo Prado, amigo de Eça de Queirós. Em seguida, Angel é incorporado ao grupo de intelectuais que freqüenta a casa de Neuilly, onde reside o escritor e cônsul de Portugal. Mas, por Angel ser um cidadão argentino fugido à justiça, Eça deve manter sigilo sobre a existência daquele jovem estrangeiro:

Eduardo Prado pedira ao amigo para acolher Angel naqueles serões recreativos sob segredo, como se em casa nenhum
porteño alguma vez estivesse. Eça cumprira e nenhuma referência em carta fora feita às permanentes estadias de Angel em sua casa (p. 35-36). (Destaque do autor)

Assim, como num enredo policial, as peças se encaixam, e a narrativa ganha certa coerência. E a história do manuscrito provavelmente escrito por Eça de Queirós continua. Num dos serões em casa do Eça, após uma sessão espírita, em que fora invocado o recém falecido Antero de Quental, o autor de
Os Maias, sob impacto dessa visão, escreve o texto A visão de Túndulo que retoma, de certo modo, o tom fantástico da fase romântica dos primeiros textos por ele escritos e que foram publicados em Prosas bárbaras. O texto é entregue a Angel Laprida:

Entregou o embrulho a Angel e disse-lhe para ler, quando pudesse. Contava a história de um homem que também tivera visões, há 800 anos, em plena Idade Média. Todos queriam ler, mas Angel, de embrulho debaixo do braço, disse que era só para ele. Agradeceu e retirou-se, de passo arrastante. Eça nunca mais o viu
(p. 42-43).

O imaginado Angel Laprida, escritor argentino que fundou junto com Jorge Luís Borges, na década de 1930, a revista
Sur, é considerado iniciador do conto fantástico em seu País. Pelos dados biográficos apresentados, ele deve ter nascido por volta de 1875, visto que se afirma que ele morrera em 1963 com 88 anos (p. 30). Estabelecida uma linha de tempo para Laprida, ele deve ter conhecido Eça de Queirós em Paris, quando era muito jovem, pois Eça faleceu em 1900. Assim, cruzando os dados biográficos de Laprida propostos na ficção com a história de vida de Eça de Queirós, deparamo-nos com a técnica subvertora da metaficção pós-moderna, visto que põe um jovem de cerca de vinte e poucos anos a transitar pela casa do escritor português, a conviver com intelectuais do nível de Eça de Queirós e Eduardo Prado, e receber das mãos de Eça um manuscrito inédito apenas para seu deleite particular. A metaficção de Miguel Real, ao reorientar dados da referencialidade, proporciona ao conhecimento histórico um tom mais maleável e divertido pela leitura irônica que fizera de fatos e de personalidades.

Para publicação do texto inédito de Eça de Queirós, a filha de Angel Laprida exige que se publiquem dois contos fantásticos de seu pai que tempos estavam engavetados. Essa é a cláusula contratual para liberação do manuscrito queirosiano, pois os contos de Laprida devem destarte permanecer associados ao ineditismo de
A visão de Túndulo. E assim se fez: abriu-se espaço no romance para inclusão dos dois contos de Laprida. O primeiro intitulado Porquê o ser e não o nada é um texto filosófico que trata da morte do filósofo alemão Leibniz (1646-1716); o segundo intitulado Diálogo entre um cego, um surdo e um mudo é um conto fantástico inspirado em A visão de Túndulo, de um Eça de Queirós ficcionalizado por Miguel Real.

No cerne da narrativa, Eça de Queirós é posto a reescrever um texto medieval do século XII conhecido como
A visão de Túndulo; nele se descrevem os tormentos dos condenados ao Inferno. Temos, assim, um Eça que volta à sua temática inicial, da época em que ele produzia os primeiros textos sob égide de um certo romantismo de gosto satânico e medieval. Contado por um narrador homodiegético, a quem logo é possível identificar pela apresentação de referências peculiares a dados biográficos de Eça de Queirós:

mas eu como todos os bacharéis abespinhei-me, nos Preparatórios para Coimbra, de cabeça curvada e língua pendente ao canto da boca, no meu grego e no meu latim, praticando as declinações, ou, sob o compasso da chibata do padre Osório
(p. 56).

Eça de Queirós, instituído narrador de histórias fantásticas, volta-se para a Idade Média para contar a história rocambolesca de Túndulo. O protagonista era o quinto filho dos senhores de Riba-Côa Rescesvindes Lara e Eleanor. Com a morte de sua mãe, ele é dado por seu pai a Chynthia, que, por sua vez, repassa- o a um casal de camponeses que não tinha filhos. Com os camponeses Bernarda e Hermigues, ele permanece até a morte deles, quando lhe é revelado que eles não são seus pais, mas que sua mãe é Chynthia, uma moura muito rica, dona de muitas terras. Túndulo vai morar com ela. Num litígio pela posse das terras que opõe Rescesvindes e Chynthia, ele sai em defesa daquela que ele considerava sua mãe e mata, sem o saber, seu pai e seus quatro irmãos. Uma doença fatal leva Chynthia ao leito de morte. Nele, ela confessa a Túndulo que não é sua mãe e revela-lhe que seu pai é Rescesvindes, a quem matara juntamente com os quatro irmãos. Diante da notícia fatídica, Túndulo abandona tudo e segue para a Serra da Estrela, onde abraça a vida de ermitão. Na solidão de quem deixou tudo para trás, escreve um texto aterrorizador, onde descreve as torturas impostas aos infelizes condenados às penas infernais. Esse texto sucede à narração da vida de Túndulo, assinada pelo escritor-personagem Eça de Queirós.

Numa espécie de
pastiche, numa escrita ao estilo de Eça de Queirós, A visão de Túndulo é um texto que, no aspecto formal, lembra a forma de escrever típica do escritor português. No entanto, afasta-se dele na temática de gosto duvidoso, de retomada de manuscritos medievais que primavam pelo horripilante e pelo repulsivo. Porventura, nem o Eça inicial sentir-se-ia inclinado a produzir tal texto, nem sequer o Eça da última fase, à altura da qual se atribui a elaboração do manuscrito medievalizante. O último Eça derivou por experiências literárias distintas da cartilha realista, chegando mesmo a escrever textos ao gosto medieval como as lendas de santos, porém, mesmo nesses textos, Eça nunca abdicou de certo compromisso da literatura com uma função social89. Um texto medieval pelo medieval da lavra de Eça de Queirós só se justifica enquanto obra de metaficção historiográfica pós-moderna, onde se admite a inversão do já conhecido e consagrado em prol do inteiramente fantasioso. Enfim, o romance pós-moderno de Miguel Real criou o Eça enquanto personagem que deveria atuar de forma a produzir um manuscrito a ser encontrado quase cem anos mais tarde em Buenos Aires. Eça é assim um elemento estrutural dentro de uma narrativa “detetivesca”, cujo núcleo vem a ser a descoberta de um texto inédito por ele produzido e que se encontrava perdido nos labirintos de uma mansão fantasmagórica de Buenos Aires.

No capítulo final, cujo título é
Quando Eça escreveu A visão de Túndulo, a partir de uma fotografia de 1884, em que Eça de Queirós aparece ao lado de Oliveira Martins, Antero de Quental, Ramalho Ortigão e Guerra Junqueiro, no que ficou conhecido como o grupo dos Vencidos da Vida, o narrador heterodiegético procede a uma reflexão sobre o que se convencionou chamar de “o último Eça”, ou seja, o Eça que se segue à publicação de Os Maias, em 1888, um Eça já descrente da ortodoxia realista e um tanto pessimista em relação à vida: “Pouco a pouco, do fundo indistinto a negro, florescia, a sépia, como por milagre, cinco rostos, cinco bustos, cinco homens, cuja história, de todos e de cada um, simboliza o rosto de Portugal no final do século XIX” (p. 143).

Tal fase existencial do escritor oitocentista vem à tona na obra romanesca de Miguel Real, pois foi nela que se pôs o Eça a escrever o manuscrito
A visão de Túndulo, uma obra alucinante porque procedente de um espírito entrecortado pelas atribulações. A princípio, Eça vai questionar-se sobre a personalidade intrigante de Antero de Quental, e poemas dele são apresentados para corroborar o pensamento reflexivo que se faz a respeito do célebre sonetista português. Em seguida, vai refletir sobre a literatura produzida pelo historiador Oliveira Martins. E, após esses questionamentos regados pelas mãos corrosivas da desilusão, vai chegar ao seguinte balanço: “Eça transportava consigo [...] um rotundo ódio a Portugal, o Portugal que asfixiara Antero, que inutilizara a acção de Oliveira Martins e que estava esgotando de fracasso toda a geração de 70” (p. 155).

E, após a amargura desse balanço, Eça se pergunta: “O que lhe faltava?” (p. 156). Para ele, seria necessário atacar o “Portugal beateiro”. Restava-lhe, então, escrever
A relíquia, portanto: “a este Portugal, cravá-lo-ia de Jesus, vivo e morto, em imagem e em relíquia, banhado a interesse e hipocrisia. Mãos à obra” (p. 156). Temos um Eça perfeccionista, preso a seu gabinete de trabalho, a cortar, a emendar, a burilar o texto: “Eça não estava contente, ainda não estava contente: ia intercalando frases, desenvolvendo diálogos, cortando falas, anotando esclarecimentos, substituindo adjectivos, apurando um advérbio” (p. 158). Enfim, estamos diante de um escritor que sabe imprimir um toque de perfeição à obra que vai construindo. Numa ótica mais apressada, tudo parecia correr bem nessa altura da vida de Eça de Queirós:

Tudo estava bem. Dª Emília aguardava-o de braços abertos, a alguma riqueza e a fidalguia dos Resendes cobrir-lhe-iam o futuro, a carreira continuava, inglesa e sóbria, os romances iam saindo, as dúvidas de meia-idade instalavam-se e eram ultrapassadas como esta agora, que a escrita incompleta e um pouco imbecil de A Relíquia resolvera. Muito bem
(p. 161-162).

Entretanto, Eça de Queirós não iria despedir-se da vida às mil maravilhas. A saúde não ia bem, visto que apareciam as primeiras crises da doença que o vitimaria logo mais. Eça lutava contra os incômodos de uma doença longa e fatal. Na tentativa de manter-se lúcido e obedecer à determinação de escrever, é interrompido constantemente pela manifestação do mal que o assola. Ele vomita. Suas entranhas devolvem uma negra excrescência, imagem metafórica de um texto por fim escrito e cujas páginas estão impregnadas do que mais nauseabundo e sórdido fora capaz de produzir uma literatura
noire. A esse conto, escrito “depois de ter experimentado uma semimorte, num estado de excitação e devaneio”, Eça intitulou A visão de Túndulo. O texto está concluído, e o romance chega ao seu fim.

A história da produção de um texto foi contada. O romance de Miguel Real, num recurso típico da metaficção, foi escrito para esclarecer como se escreve. O autor faz literatura a partir da reciclagem de uma literatura que deixou de ser feita por Eça de Queirós.O narrador traça a história de um texto. Para dar um toque de veracidade, ele remete a dados factuais e a personalidades do meio literário como Eça de Queirós e tantos outros contemporâneos a ele. Mas, nessa trama urdida por um narrador que quer vender a ficção por verdade, impera uma imaginação transgressora. Sob as asas dela, um manuscrito nunca escrito por Eça transforma-se em mais um texto inédito do autor; personagens inteiramente fictícios como Angel Laprida transitam junto a figuras referenciais e canônicas do mundo literário como Jorge Luís Borges ou Eça de Queirós; contos do imaginado Angel Laprida recheiam uma obra que pretende abrigar uma multiplicidade de textos, que se apresentam interpolados por diferentes estilos e por distintas procedências autorais. Temos, assim, um livro que conta a história de um texto, mas que é também um texto de muitas histórias.

As personagens Túndalo e Laprida, apesar de pertencerem a relatos distintos, estão enfeixadas num mesmo conjunto narrativo, do qual se pode extrair certa aproximação. O escritor argentino, foragido da justiça de seu país, por ter cometido o assassínio de uma jovem que o havia seduzido, refugia-se na Paris dos fins do século XIX. Na capital francesa, Laprida, ao participar de uma sessão espírita, na qual Eça também se fizera presente, tem visões. No texto medieval, Túndulo, de igual modo, tem sua visão, de caráter expiatório, devido à vida desregrada que levava e ao crime de parricídio e fratricídio que praticara, embora atenuado pelo fato de que ele desconhecia que as vítimas eram seus familiares.

Entretanto, tanto Laprida quanto Túndulo conseguem safar-se da punição. Túndulo renuncia a seus bens e passa a viver como eremita, realizando assim uma espécie de ascese após uma lição de despojamento das posses terrenas. Laprida exila-se em Paris até o arquivamento do processo criminal em que estava implicado. Assim, pode voltar a seu país e freqüentar o agitado círculo intelectual da Buenos Aires da primeira metade do século XX. Ambos, ao arrepio da lei, refazem suas vidas em seguida a um incidente que se quer superado. Em Laprida, pode-se encontrar, em estado latente, um Túndulo. Foi preciso apenas um escritor para tecer essa história. E o cronista a quem Miguel Real elegeu para tal proeza literária foi Eça de Queirós. Um Eça de Queirós que oferta o ineditismo de um Túndulo à ambição de um Laprida."

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Fonte:
FRANCISCO JOSÉ SAMPAIO MELO: “SOBRE O ROMANCE LUSÓFONO, A PERMANÊNCIA CRIATIVA DE EÇA DE QUEIRÓS: RELAÇÕES TRANSLITERÁRIAS ENTRE EÇA DE QUEIRÓS E CINCO ROMANCISTAS CONTEMPORÂNEOS”. (Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras, da Faculdade de Letras, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, como requisito final para obtenção do grau de Doutor em Letras, na área de concentração de Teoria da Literatura. Orientadora: Profª. Dr. Maria Luíza Ritzel Remédios (PPGL/PUCRS) Co-Orientadora: Profª. Dr. Maria do Rosário da Cunha Duarte (Universidade Aberta de Portugal/ Delegação de Coimbra). Porto Alegre, 2008.

Nota
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As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Disponível digitalmente no site: Domínio Público

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