A angústia de "Angústia"



“Há uma outra questão que nos sentimos obrigados a averiguar: a relação dos autores com suas obras. Evidentemente não pretendemos justificar a vida de um ou de outro com suas respectivas produções literárias, mas achamos interessante mostrar determinados elementos que colaboram para a compreensão das obras analisadas.

Num primeiro momento, cabe-nos retomar as questões teóricas que nos deram suporte para este trabalho: o conceito de fontes e influências versus o conceito de intertextualidade. Já mencionamos que nossa escolha se baseou, fundamentalmente, em questões de nomenclatura e suas conseqüentes relações de “poder”. Não desejando privilegiar um em detrimento de outro, optamos pela intertextualidade. No entanto, mencionamos que havia a possibilidade de se “comprovar” a influência de Dostoiévski sobre Graciliano Ramos (especialmente ao que se refere à constituição do caráter psicológico das personagens, sua “alma”) e ainda que Graciliano considerava toda a sua obra, e em especial, Angústia, medíocre e indigna de elogios. Modesto, não admitia “semelhança com Dostoievski nem com outros gigantes” (Candido, 1992, pp.8-9) e julgava Angústia um mau livro. Uma das justificativas para isso está no fato de não ter tido tempo para fazer os cortes “necessários” para que a obra perdesse os excessos que a caracterizam como a mais subjetiva de suas obras. Outro motivo, no entanto, se sobressai: a questão autobiográfica.

Angústia,
a priori, não pode ser considerada uma obra autobiográfica. Para que assim fosse, deveria, segundo Guimarães (1988, p.33), “apresentar-se como um discurso que é assumido pelo narrador fictício que se identifica com a pessoa real,” incluindo a questão do nome, que deve ser o mesmo. No entanto, podemos encontrar, como veremos a seguir, elementos que comprovam um caráter “autobiográfico” em sua construção, como os elementos que Graciliano empresta a Luís da Silva.

Segundo a carta que Graciliano Ramos escreveu para Antonio Candido (1992, pp.8-9), podemos ler que ele considerava Angústia um livro ruim, um livro mal escrito.

Naturalmente seria indispensável recompor tudo, suprimir reminiscências, cortar pelo menos a quarta parte da narrativa. A cadeia impediu-me essa operação. A 3 de março de 1936 dei o manuscrito à datilógrafa e no mesmo dia fui preso. Nos longos meses de viagens obrigatórias supus que a polícia me houvesse abafado esse material perigoso. Isso não aconteceu e o romance foi publicado em agosto. Achava-me então na sala da capela. Não se conferiu a cópia com o original. Imagine. E a revisão preencheu as lacunas metendo horrores na história. Só muito mais tarde os vi. Um assunto bom sacrificado, foi o que me pareceu.

Sem querer contrariar a opinião de tão nobre representante da literatura brasileira, Graciliano Ramos, e mesmo Antonio Candido (1992, pp.33-34), que também o julga um mau livro:

Dos livros de Graciliano Ramos, Angústia é provavelmente o mais lido e citado, pois a maioria da crítica e dos leitores o considera sua obra-prima. Obra-prima não será, mas é sem dúvida o mais ambicioso e espetacular de quantos escreveu. Romance excessivo, contrasta com a discrição, o despojamento dos outros, e talvez por isso mesmo seja mais apreciado, apesar de suas partes gordurosas e corruptíveis (ausentes de São Bernardo ou Vidas Secas) que o tornam mais facilmente transitório. Não sendo o melhor, engastam-se todavia em seu tecido nem sempre firme, entre defeitos de conjunto, as páginas e trechos mais fortes.

Se a “origem” de Crime e Castigo está, segundo Arban (1989, p.128), na obra de Max Stirner, pois nela estão “as idéias básicas de Crime e Castigo, e o pensamento – talvez mesmo a linguagem – de Rodion Raskolnikov”; a “origem” de Angústia está no próprio Graciliano Ramos, pois, conforme Candido (1992, p.41): “poder-se-ia dizer que Luís é um personagem criado com premissas autobiográficas; e Angústia, autobiografia potencial, a partir de seu eu recôndito.” Isso não exclui a questão de Dostoiévski ter-se influenciado por Gógol, como já foi mencionado por Bakhtin, ou de Graciliano ter-se influenciado por Dostoiévski. Tampouco pretendemos chegar a extremos, como ocorre com Nelly Coelho (1978, p.66), que “mistura” Graciliano Ramos a suas personagens ao analisá-lo segundo Luís da Silva:

Damo-nos conta repentinamente que Graciliano não acreditava na única força que pode ajudar o homem a romper a Solidão e integrá-lo na comunhão com o próximo. Graciliano não devia acreditar na possibilidade de o Amor existir. Daí a solidão, daí a luta egoística que mantêm todas as suas personagens para afirmarem-se como “pessoas humanas” e terminarem interiormente fracassadas, pois não há vitória para o Homem, se ela não vem ligada ao Outro.

Nem queremos, em direção oposta, acreditar nas palavras de Silva (1959, p.23), que diz: “Graciliano não vive a vida de seus personagens. Pensa somente. Elabora e traça seus movimentos, arma e desarma situações, não sente o que acontece às 'vidas secas' do seu mundo literário. Possui a faculdade de se isentar, de não confundir a criação com o criador tanto quanto possível.” Cremos sim nas palavras de Graciliano (apud Senna, 1978, p.55), que se confessa autobiográfico na medida em que se identifica com suas personagens: “...Nunca pude sair de mim mesmo. Só posso escrever o que sou. E se as personagens se comportam de modos diferentes, é porque não sou um só. Em determinadas condições, procederia como esta ou aquela das minhas personagens. Se fosse analfabeto, por exemplo, seria tal qual Fabiano...” Então, se fosse um solitário e um egoísta, certamente seria Luís da Silva, mas este não era o caso de Graciliano Ramos.

Por isso, concordamos com Candido (1992, p.43), quando afirma que:

Assim parece que Angústia contém muito de Graciliano Ramos, tanto no plano consciente (pormenores biográficos) quanto no inconsciente (tendências profundas, frustrações), representando a sua projeção pessoal até aí mais completa no plano da arte. Ele não é Luís da Silva, está claro; mas Luís da Silva é um pouco o resultado do muito que, nele, foi pisado e reprimido.

Isso porque Graciliano empresta a Luís da Silva o seu olhar crítico, sua vocação literária e até seu passado, pois “muitas das pessoas aparecidas na primeira parte de Infância já eram nossos conhecidos de Angústia”. (Candido, 1992, p.50) Talvez essa exposição, que não sofreu os devidos cortes para eliminar tal parentesco, seja o verdadeiro motivo de tamanha punição à Angústia. Por outro lado, nenhuma de suas obras mereceu tantos comentários de Graciliano Ramos quanto Angústia, que figura em suas Memórias do Cárcere; em suas Cartas e transborda em Infância. Como foi publicada durante sua prisão, mereceu também umas páginas de Clara Ramos, filha do escritor, em seu Cadeia, no qual há um capítulo dedicado à publicação de Angústia.

Em Memórias do Cárcere, por exemplo, em meio à narração de sua temporada na cadeia, Graciliano faz inúmeras alusões ao romance “ordinário” que pretendiam publicar:

Porque foi que um dos meus livros saiu tão ruim, pior que os outros?, pergunta o crítico honesto. E alinha explicações inaceitáveis. Nada disso: acho que é ruim porque está mal escrito. Está mal escrito porque não foi emendado, não se cortou pelo menos a terça parte dele
. (p.6, V.1)
Não me arriscaria a trazer para o cubículo, por intermédio de minha mulher, o romance falho. Embora ele valesse pouco, era-me desagradável perdê-lo. O original e a outra cópia recomendada existiriam? Afinal o romance valia pouco. Ser-me-ia talvez possível, com dificuldade, fazer outro menos ruim. Ali a personagem central estava parada, revolvendo casos bestas, inúteis: um sujeito a aporrinhar-se porque uma fêmea safada lhe fugia das garras, outro a encher dornas, uma criatura cansada a lavar garrafas. Onde me haviam aparecido aquelas duas figuras, um homem triste a encher dornas, uma mulher a sacolejar-se em ritmo de ganzá? (p.100, v.2)
A cópia da história nebulosa e medonha chegara do Nordeste, fora enviada à tipografia. Os críticos iriam arrasar-me. Ou não arrasariam; o mais certo era não dizerem nada
. (p.124, v.2)

Já em Cartas (1981, p.137), podemos ler: “Em seguida retornarei o trabalho interrompido cinco meses. Julgo que continuarei Angústia, que a Rachel acha excelente, aquela bandida. Chegou a convencer-me de que eu devia continuar a história abandonada. Escrevi ontem duas folhas, tenho prontas. Vamos ver se é possível concluir agora essa porcaria.”

Por outro lado, é curioso notar que a crítica severa não ocorre só com Angústia, embora com ela seja mais acentuada, mas com todas as obras do escritor:

Com um estremecimento de repugnância, vi Sérgio embrenhado na leitura do meu primeiro romance.
— Pelo amor de Deus não leia isso. É uma porcaria.
Ingênuo, tentei explicar-me, em grande embaraço. A publicação daquilo fora conseqüência de uma leviandade. Escrita dez anos antes, a miserável história passara às mãos do editor Schmidt e emperrara. Já revistas as provas, tinham surgido obstáculos, demora, cartas, desavenças e a entrega dos originais a amigos meus do Rio. Em 1935 Jorge Amado me visitara em Alagoas, dissera que Schmidt queria editar o livro; mas não me convinha o negócio: julgava-me então capaz de fazer obra menos ruim, meses atrás concluíra uma novela talvez aceitável. Jorge se conformara com a recusa. Deixando-me, apossara-se dos malditos papéis e dera-os ao livreiro. Essa justificativa de nada valia e era impossível oferecê-la a todos os leitores.

Por isso, podemos concluir: não é Angústia que desagrada seu autor, mas toda a sua produção literária, que sempre pode ser melhor, ou, em suas palavras, menos ruim. No entanto, a origem desse rigor e dessa autocrítica está em Infância, quando Graciliano mostra, em forma de literatura, como o menino solitário compreendeu o mundo em que vivia: repleto de injustiças (como o famoso caso de Um Cinturão), repreensões e críticas – características que carregou consigo por toda a vida.

Segundo Guimarães (1988, pp.183-184): “É em Angústia também que se torna mais perceptível a visão e a síntese dos elementos que compõem o espaço autobiográfico de GR. se encontram os quatro pontos centralizadores e que particularizam cada uma das facetas da personagem principal, ou completados por personagens co-protagonistas (...).” É por isso, efetivamente, que Graciliano tem uma visão tão pessimista dessa obra. É como se a exposição a que ela o sujeita fosse demais para poder ser suportada e isso a tornasse merecedora de todas as críticas possíveis.

Então se Angústia pode ter, ao mesmo tempo, “parentesco” com Graciliano Ramos e com os heróis dostoievskianos, podemos inferir que a leitura de Dostoiévski foi incorporada ao “eu” de Graciliano de tal modo que é impossível dissociá-los, mesmo que não se tenha uma influência “ao da letra”, isto é, que ela tenha sido bem “digerida”. Acontece que entre Graciliano e Dostoiévski há um contato que transcende as obras aqui analisadas. Entre eles, há em comum a visão do ser humano, que pode ser observada em diferentes obras, sem que uma remeta a outra diretamente, pois são os indivíduos que se assemelham em sua condição de desarranjo com o mundo interior e exterior.

É esse mesmo desarranjo das personagens de Dostoiévski e Graciliano Ramos que podemos notar neles próprios. Não se quer dizer com isso que o talento criador não existe e que suas criações são como diários, cópias fiéis de suas vidas, pelo contrário. É a preocupação com o ser humano que os move e os aproxima, mas, como Dostoiévski e Graciliano são seres distintos, apresentam diferenças que os tornam únicos.

A experiência de vida de Dostoiévski possibilitou que ele percebesse, usando mais uma vez as palavras de Mello Neto, “a teia tênue” que une os “gritos de galo” de sua civilização, que vive em constante dicotomia entre o bem e o mal, o céu e o inferno. Soube como poucos investigar o ser humano por dentro, percebendo suas fraquezas e limitações. Dostoiévski, aparentemente, não empresta nada de seu para Raskólnikof, mas, olhando mais de perto, encontramos em Raskólnikof, como em outras personagens, a essência de seu criador: a salvação cristã, a possibilidade de ressuscitar como Lázaro. Isso não significa que ele matou alguém ou casou-se com uma ex-prostituta, como Raskólnikof. Significa que, como disse Graciliano Ramos, é impossível sair completamente de si para escrever. Isso corrobora para invalidar a idéia de “cópia” fiel que um autor influenciado apresentaria, afinal “ninguém é igual a ninguém”.

Por outro lado, a exposição explícita desses fragmentos “autobiográficos” pode gerar constrangimentos, que são resolvidos de diferentes maneiras: uns negam a sua existência, creditando à literatura apenas o caráter ficcional; outros, como Graciliano, condenam sua própria obra, julgando-a medíocre. Angústia, portanto, seria a angústia de Graciliano Ramos por conter essa exposição explícita de sua vida, de seus sentimentos em relação a si e aos outros. Afinal é impossível negar os traços em comum entre Luís da Silva e seu criador, especialmente em relação ao caráter crítico e severo consigo mesmo. Graciliano evidencia, em diferentes momentos, o descontentamento com sua criação, pois, para ele, a crítica alheia sempre teve um peso muito grande e, em suas palavras (Ramos, 1992, p.185): “Ainda hoje, se fingem tolerar-me um romance, observo-lhe cuidadoso as mangas, as costuras, e vejo-o como ele é realmente: chinfrim e cor de macaco”. Desse modo, compreende-se bem por que Angústia mereceu tamanha punição e sua publicação gerou-lhe tanta angústia. No entanto, sabe-se que Graciliano era severo não só com Angústia, mas com toda a sua obra: “Não vale nada; a rigor, até, já desapareceu...” (Ramos apud Senna, 1978, p.59) Isso não é sintoma de falsa modéstia, mas um indício da personalidade de Graciliano Ramos."

---
Fonte:
Cristiane Guimarães Arteaga: “A alma russa de um nordestino: Graciliano Ramos leitor de Dostoievski”. (Dissertação apresentada junto ao Programa de pós-graduação em Letras da UFRGS - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Literatura Comparada. Orientadora: Profa. Dra. Gilda Neves da S. Bittencourt).Porto Alegre, 2005.

Nota
:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

Disponível digitalmente no site: Domínio Público

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Excetuando ofensas pessoais ou apologias ao racismo, use esse espaço à vontade. Aqui não há censura!!!