Caetés: novidade para o sem novidades



“Seria uma felicidade para mim, de certo, a morte de Adrião”. Esse desejo da morte do outro abre o capítulo XXIV de Cahetés, de Graciliano Ramos, publicado no número 9 do semanário alagoano, a 6 de junho de 1931. Aparecia como “página do romance que Schmidt Editor lançará brevemente no sul, escolhida especialmente para Novidade”. O livro foi escrito entre 1925 e 1928 e reescrito até 1930. Anunciado embora para breve, saiu apenas no final de 1933, quando o romancista já havia terminado S.Bernardo, que viria a público em 1934. A recepção crítica primeira de Caetés, conforme relata Antonio Candido, coube a Santa Rosa, Valdemar Cavalcanti e Aurélio Buarque, para o Boletim de Ariel. Esses meninos impossíveis exercitaram-se como críticos com o Velho Graça.

Por que Graciliano escolheu o capítulo 24 de Caetés para figurar no semanário? O leitor de hoje reconhece que esse capítulo concentra questões centrais do romance. Dele apreendem-se os dois caminhos de ascensão do protagonista João Valério: amante de Luísa, esposa do patrão (Adrião Teixeira), queria ocupar o lugar deste também na firma comercial e desejava ser autor de um romance histórico sobre os caetés, nativos de sua região (Palmeira dos Índios).

A composição desses elementos no capítulo, por dotá-lo de certa autonomia, era capaz de atrair o público da revista. Constituía novidade a construção irônica por meio da qual o escritor, repetindo o “nada de novo sob o sol” do Eclesiastes, desvendava criticamente as limitações de João Valério, arrivista leviano, e do seu ambiente, fincado na conservação de desigualdades sociais. Se no Eclesiastes se lê que tudo é vão, sendo iguais os homens porquanto mortais, de saída o leitor da Novidade ficaria intrigado com um narrador que diferenciava algumas mortes como mais importantes. Ansioso pelo desaparecimento do enfermiço Adrião, lamentava a imperícia do médico: este não impedira a morte da jovem e bela filha do prefeito, por m deixava viverem seres “inúteis”, como Adrião e a mulher do sapateiro, pobre e tísica. Desse contraste de caracteres, ressalta o interesse egoísta como motor do protagonista: desejava apoderar-se do lugar do patrão para obter melhor posição financeira. Exatamente no capítulo 24 vem esta síntese da leviandade afetiva, intelectual e moral do protagonista, que permite aproximá-lo do aspecto negativo da “cordialidade” brasileira conforme analisada por Sérgio Buarque de Holanda:

Em todo o caso nunca ousei descobrir a mim mesmo o fundo do meu coração. Não chegaria a pedir aos santos, se acreditasse nos santos, que abreviassem os padecimentos do Teixeira. Tergiversava. As minhas idéias flutuavam, como flutuam sempre.
(Caetés, capítulo 24).

Nesse sentido, recorde-se uma imagem recorrente em Caetés: a Bíblia, em especial o Eclesiastes, era o cofre de João Valério. Tal imagem sinaliza expressivamente que, para ele, segundo a lógica comercial vigente e seu desejo de ascensão, a prioridade era o dinheiro, fator a diferenciar as pessoas.

Note-se que o Eclesiastes é um texto bíblico de interpretação especialmente contraditória. Nele lateja um dilema em relação à fé, ao afirmar-se que tudo é vão, já que a semelhança entre homens e brutos, entre sábios e estultos, é caminharem todos para a morte. No capítulo 24 de Caetés também ecoa esse questionamento do Eclesiastes quanto ao sentido da sabedoria. Pretenso escritor, João Valério pondera que, para compor o romance sobre os caetés, precisaria estudar história. No entanto, observa não ter paciência para viver curvado sobre os livros e logo descarta sua proximidade intelectual com o médico Liberato e com o tabelião Miranda. Mais do que isso, desfaz da necessidade de um tabelião em Palmeira dos Índios ser “tão instruído”. De fato, em seu percurso, João Val rio prefere à prática de escritor a lógica comercial de Adrião, que incluía arranjos e maroteiras, e ascende socialmente. Nada de novo: movido por uma ambígua ambição ambiente, ele reitera em sua trajetória o círculo fechado de sua cidade, em termos intelectuais, sociais e econômicos. Após o suicídio do patrão, descoberto o caso com Luísa, Valério ocupa o lugar dele na firma, tendo abandonado a mulher e também o projeto de escritor.

Importa observar aqui uma marca da composição do romance: a caracterização das personagens se faz por meio de muitas comparações, das quais se depreende a ironia do autor. Sendo assim, elas ganham singularidade e, a um tempo, tece-se a representação crítica da realidade. A partir da caracterização do pseudo-escritor e arrivista leviano, constrói-se a crítica ao ambiente social e intelectual restrito, tendo por substrato a tensão própria do Eclesiastes, entre sabedoria e brutalidade.

Se o “nada de novo sob o sol” representado pela trajetória de João Valério atende consciência realista do escritor, a construção irônica do romance alerta para o perigo da indistinção de valores provocado pelas generalizações. No último capítulo, o narrador-protagonista rememora as marcas de leviandade de seu percurso e se reconhece um caeté “com uma tênue camada de verniz por fora”. Por um lado, confirma-se o “nada de novo”, o homem como um selvagem, movido pelo egoísmo para vencer os demais. Ao mesmo tempo, a ironia que reponta desse final, recaindo sobre a falta de consistência intelectual, afetiva e ética do guarda-livros arrivista, prova a diferenciação entre o humano e o bruto.

Essa inconsistência evidencia-se ante a morte do patrão. Na expressão lapidar de Graciliano, o personagem, “incapaz de sofrer muito tempo” (capítulo 30), teve “explosões súbitas de dor teatral, logo substituídas por indiferença completa...” (capítulo 31). Tal leviandade interesseira, de quem tomou Luísa por amante para abandoná-la após a morte de Adrião, sintetiza-se no período que fecha o romance: “Tenho passado a vida a criar deuses que morrem logo, ídolos que depois derrubo uma estrela no céu, algumas mulheres na terra...” (capítulo 31). Significativamente, ao ironizar esse comportamento pautado em bajulação e rasteiras, o escritor tem em mira também práticas políticas como as do bacharel e deputado Evaristo Barroca. Com espírito crítico, verificado também na Novidade, contra um meio afeito à retórica e ao personalismo político em detrimento de uma formação cultural e autonomia reflexiva, sobressai a ironia ao despreparo intelectual de João Valério:

Não ninguém mais crédulo do que eu. E esta exaltação, quase veneração, com que ouço falar em artistas que não conheço, filósofos que não sei se existiram!
(capítulo 31).

Chamando a consciência histórica do leitor, a crítica ao ambiente marcado por falta de instrução e subserviência à cultura estrangeira revela, nas entrelinhas, os males provenientes da origem colonial do país e da manutenção da ordem dominante. Nesta, há os usurpadores e retóricos que vencem, porém às custas de muitos miseráveis, como os índios remanescentes. Por isso, Graciliano combate generalizações: João Valério por fim se diz um caeté; contudo, ele venceu com sua preguiça e inconstância, estereótipos atribuídos aos índios que, ao contrário, foram derrotados no passado por resistirem ao trabalho escravo.

Repare-se, finalmente, como o contexto histórico de Caetés é melhor compreendido ao se conhecer a Novidade. Preocupações do semanário, a conservação da ordem social iníqua, a mendicância, a falta de instrução e o personalismo político são os problemas sociais a que Graciliano deu forma no romance. Não lhe falta nem a referência, embora periférica, a uma multidão de pessoas pobres que, adoradoras de um cajueiro com dois galhos formando uma cruz, eram exploradas por espertalhões. A expressão “lampionismo semi-civilizado”, de Valdemar Cavalcanti, define bem o ambiente de Caetés. Nele despontam: o farmacêutico Neves e o tabelião Miranda, que tesouravam a vida alheia, em especial o adultério de Luísa; Manuel Tavares, o assassino que prestava serviços ao político Barroca; o bacharel Castro, que, por ser parente de Barroca, ocupava o cargo de promotor público para facilitar-lhe as falcatruas e era presidente da junta escolar sem jamais ter visitado uma escola.

Exemplar do “lampionismo semi-civilizado” a cena do capítulo 11 em que o tabelião Miranda, com a concordância velada de Valério, se mostra favorável à intervenção da polícia contra os mendigos. Miranda fala em eutanásia, „boa morte
para os indigentes, que considera “gente sem préstimo”. Enquanto isso, o jornalista Pinheiro e o guarda-livros pretenso escritor ignoravam o significado da palavra eutanásia. Num livro que remete, desde o título, aos índios dizimados, já se vê a ironia criada por Graciliano, voltada contra a conservação da miséria e da ignorância, contra a barbárie envernizada de civilização.

Dessa forma, depreendem-se de Caetés não só eixos temáticos, como também movimentos composicionais da formação da obra de Graciliano Ramos. A força irônica da comparação entre personagens, em especial entre o protagonista e os caetés, comprova a necessidade ética de atentar-se para as semelhanças e diferenças entre os seres, combatendo estereótipos. Como resultado, firma-se para o escritor o propósito de representação crítica da realidade social, do ambiente em que o poder se mantém por meio de maroteiras. E, a um tempo, do embate entre caracteres e da representação das desigualdades sociais, em busca de uma forma artística mais depurada para combater estereótipos, cria-se para o romancista a necessidade de expressar os impasses subjetivos aí envolvidos em sua tragicidade, conforme se veria a partir de S. Bernardo.

É relevante considerar o Eclesiastes – pensando-se em especial na vanidade de tudo e na tensão entre ser homem e ser bicho – também para compreender os dramas de Paulo Honório, Luís da Silva e Fabiano, os quais serão o centro de ensaios analítico-interpretativos neste capítulo. Em S.Bernardo, Paulo Honório afirma que realizou atos bons que lhe deram prejuízo e cometeu crimes lucrativos. Sobretudo, recorde-se o terrível “para quê?” do proprietário ante a morte da professora e tardiamente reconhecida como sua amada Madalena. “Para quê?” também pergunta o vaqueiro e retirante Fabiano, de Vidas secas, diante de sua realidade seca, desejoso e descrente ante a instrução de Seu Tomás da Bolandeira. Igualmente, em Angústia, o funcionário público e intelectual frustrado Luís da Silva anseia pelos sentidos, pois ter matado Julião Tavares não eliminou as injustiças do mundo nem sua dor."

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Fonte:
Ieda Lebensztayn: “Graciliano Ramos e a Novidade: o astrônomo do inferno e os meninos impossíveis”. (Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Literatura Brasileira, do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para a obtenção do título de Doutora em Letras. Orientador: Prof. Dr. Alcides Celso Oliveira Villaça). São Paulo, 2009.

Nota
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