Graciliano: “ilhas esboçando-se no universo vazio”



Acordei, reuni pedaços de pessoas e de coisas, pedaços de mim mesmo que boiavam no passado confuso, articulei tudo, criei o meu pequeno mundo incongruente. Às vezes as peças se descolocavam - e surgiam estranhas mudanças. Graciliano Ramos

“O título original do manuscrito - “Impressões de infância” - já anunciava a forte correspondência entre o caráter fluido, intermitente e fugidio das lembranças e a clara fragmentação do texto memorialista de Graciliano Ramos. Ao longo da narrativa, esta reciprocidade semântica e sintática é reiterada mediante um processo de organização metafórica dominado pelos signos da fugacidade, da imprecisão e da incompletude, exemplarmente explicitado nos “pedaços de pessoas e de coisas, pedaços de mim mesmo que boiavam no passado confuso”. Este veio interpretativo configura a compreensão de que a vida é um devir interminável e cabe à escrita de memórias a tarefa paradoxal de, sendo processo, mimetizar este deslizamento enquanto procura fixá-lo no texto. Tanto que, logo na abertura do primeiro segmento da narrativa, para construir uma confirmação de sua mais antiga lembrança de infância, Graciliano escreveu: “A primeira coisa que guardei na memória foi um vaso de louça vidrada, cheio de pitombas, escondido atrás de uma porta. Ignoro quando o vi, e se parte do caso remoto não desaguasse noutro posterior, julgá- lo- ia sonho.” Aí, a proximidade entre o desaguar de um caso em outro com a idéia do sonho cria uma rede de sentidos que reforça a idéia de que a lembrança é devir e indeterminação - que, para ganhar contornos definidos e existência comprovada, deve confluir para outras, num processo de “associação e derivação” - e o valor reinventivo da tarefa memorialista.

Porém, para representar fielmente este terreno movediço, refeito pela escrita como “pequeno mundo incongruente” habitado por “figuras indistintas”, o memorialista mostra a permeabilidade da reminiscência sempre refratada pela imaginação e pelo esquecimento. Para traduzir bem a descontinuidade das lembranças, ele as representa como picos visíveis de um recortado relevo submarino. Estes pontos de referência na geografia afetiva da infância fazem parte de uma matéria bem maior - o vivido - que se encontra quase totalmente submersa:

Datam desse tempo as minhas mais antigas recordações do ambiente onde me desenvolvi como um pequeno animal. Até então algumas pessoas, ou fragmentos de pessoas, tinham-se manifestado, mas para bem dizer vivia fora do espaço. Começaram pouco a pouco a localizar-se, o que me transtornou. Apareceram lugares imprecisos, e entre eles não havia continuidade. Pontos nebulosos, ilhas esboçando-se no universo vazio
. (p. 12)

Neste excerto, a memória é vista como espacialidade móvel e precária, cujos pontos visíveis não deixam esquecer um substrato que as reúne em outro plano - o fundo do mar - onde “pessoas, ou fragmentos de pessoas” paulatinamente começavam a ser situados, constituindo acidentes num estranho território feito de “lugares interruptos”, descontínuos e desconhecidos, onde tudo se esfuma como “pontos nebulosos”, “ilhas esboçando-se no universo vazio”.

Metaforizar o relato de memórias como um “pequeno mundo incongruente”, construído na linguagem poética, evidencia o processo narrativo como elo frágil entre a matéria biográfica, situada no passado, e o texto que se engendra no presente da enunciação, por isto revelando-se, como definiu Luís Costa Lima, como “sistema de tensão entre a transparência referencial e a pesquisa estética”.

Desta forma, Graciliano rompe a convenção romanesca realista que inspirava os relatos autobiográficos convencionais. Nestas, a narração era subordinada a um princípio ordenador que - para eliminar inconsistências, compensar o esquecimento, resolver contradições e acolher o acaso e o impensado - fazia uso de estratégias discursivas tomadas de empréstimo à prosa romanesca construída em torno de uma lógica narrativa sujeita a padrões de verossimilhança. Em Infância, Graciliano escande a matéria referencial e demonstra o valor de construto da narrativa autobiográfica, ao justapor tanto as ruínas do vivido - as fugidias imagens do passado - e os alicerces da escrita – a memória, encenada na dinâmica de lembrança, esquecimento e imaginação. Para isto, mantém as cesuras que evidenciam a impossível correspondência especular entre a vida e o texto: cicatrizes deixadas pelos cortes na sucessividade narrativa. Estas marcas da descontinuidade se mostram sob três formas: duas bastante evidentes - o espaço em branco da página que separa o fim de um segmento do início de outro, e a titulação dos segmentos -, e por fim, mais sutil - o exercício metalingüístico, que suspende a ação narrada, destruindo a ilusão da continuidade entre a história vivida e o texto que narra esta história.

As cesuras podem ser compreendidas sob três perspectivas igualmente válidas. Assim, mimetizando o gesto rememorativo, elas dramatizam o intermitente afloramento na consciência do sujeito rememorante de cenas esparsas, desconexas, incompletas e aleatórias. Já no nível da história narrada, o corte na linearidade do enunciado destaca as imagens luminosas da lembrança contra o fundo escuro do esquecimento, deste modo configurando esteticamente as lacunas e descontinuidades da memória atravessada pelo fluir do tempo e truncada pelos interditos. Por fim, no processo de escrita da história de vida, as cesuras materializam a recusa em disfarçar disjunções e incongruências entre verdade biográfica e ilusão ficcional, verdade ficcional e ilusão biográfica, evidenciando as hesitações do narrador que, enfrentando o esquecimento, se nega a preencher vazios, disfarçar ocultamentos e consertar inexatidões mediante estratégias de complementação lógico-discursiva.

No início do terceiro segmento de Infância, Graciliano suspende a narração para comentar o processo criador, alerta para o fato de que sua prática de romancista interfere na reconstituição de suas memórias:

Desse antigo verão que me alterou a vida restam ligeiros traços apenas. E deles nem posso afirmar que efetivamente me recorde. O hábito me leva a criar um ambiente, imaginar fatos a que atribuo realidade. Sem dúvida, as árvores se despojaram e enegreceram, o açude estancou, as porteiras dos currais se abriram, inúteis. É sempre assim. Contudo, ignoro se as plantas murchas e negras foram vistas nessa época ou em secas posteriores, e guardo na memória um açude cheio, coberto de aves brancas e de flores. /.../ Certas coisas existem por derivação e associação; repetem-se, impõem-se – e, em letra de forma, tomam consistência, ganham raízes. Dificilmente pintaríamos um verão nordestino em que os ramos não estivessem pretos e as cacimbas vazias. Reunimos elementos considerados indispensáveis, jogamos com eles, e se desprezamos alguns, o quadro parece incompleto
. (p. 26-27)

Na digressão metalingüística, o autor explicita o teor de artefato da lembrança; por isso, não só resiste ao apelo da invenção romanesca (habitual na atividade narradora, principalmente de um ficcionista) como desdenha de estratégias historiográficas que certifiquem o relato (usuais na narrativa autobiográfica canônica). Apelar à imaginação criadora reduz o teor referencial do texto; mas, por outro lado, empregar meios de certificação histórica prejudica o esforço confessional da memória voluntária. Assim, as cesuras problematizam as fronteiras entre fidelidade factual e liberdade ficcional. Então, o texto dá forma àquilo que Philippe Lejeune chamou “paradoxo da autobiografia literária”: son essentiel double jeu, est de prétendre être à la fois um discours véridique et une ouvre d’art.

As cesuras funcionam como articulação de elementos narrativos para destacar um conjunto de aspectos complexos e complementares. No âmbito da organização do relato, para melhor adequar o assunto à técnica narrativa, compor o relato em segmentos relativamente autônomos mimetiza a descontinuidade da memória. Sua formalização literária ganha realce no destaque metafórico dado às antigas lembranças: “rasgões num tecido negro”, por onde passam “figuras indecisas”. Então, a estrutura episódica do relato encena a consciência do narrador sobre a impossibilidade de resgatar sua própria história, perdida como totalidade, mas encontrada, como intensidade, nos recônditos da memória.

Considerando a perspectiva do narrador sobre o material biográfico, a ordenação dos fatos segundo uma lógica narrativa que dilui a causalidade também mimetiza a percepção infantil, truncada pelo medo paralisante e limitada pelo manuseio desajeitado da linguagem. O enfraquecimento dos nexos de sentido indicia a dificuldade experimentada pela criança em compreender as atitudes arbitrárias dos adultos, desenhando o ambiente de incomunicabilidade em que vive. Incomunicabilidade e arbítrio são representados em casa e na escola, em cenas que mostram o processo de aquisição da escrita como um sofrimento sem sentido: sem razão e sem objetivo. Se os métodos pedagógicos do pai incluíam gritos e palmatória, os professores impunham a “toada única”, cantilena estéril, soletração vazia de significado. Para culminar, sentenças enigmáticas ocupavam as últimas páginas da cartilha: “A preguiça é a chave da pobreza. Fala pouco e bem: ter-te-ão por alguém.” (p. 114)

Ao acolher a perspectiva infantil, o narrador dialoga com seu passado, de modo a interpretar fatos pretéritos incompreensíveis para um menino. No resgate efetuado pela memória voluntária, à luz de experiências acumuladas, mediadas pelo hiato perceptivo, afetivo e intelectual existente entre o vivido e o recordado, tais situações tornam-se, enfim, significativas:

Via-o [o pai] arrogante, submisso, agitado, apreensivo - um despotismo que às vezes se encolhia, lacrimoso. A impotência e as lágrimas não nos comoviam. Hoje acho naturais as violências que o cegavam. Se ele estivesse embaixo, livre de ambições, ou em cima, na prosperidade, eu e o moleque José teríamos vivido em sossego. Mas no meio, receando cair, avançando a custo, perseguido pelo verão, arruinado pela epizootia, indeciso, obediente ao chefe político, à justiça e ao fisco, precisava desabafar, soltar a zanga concentrada. Aperreava o credor e afligia-se temendo calotes. Venerava o credor e, pontual no pagamento, economizava com avareza. Só não economizava pancadas e repreensões. Éramos repreendidos e batidos
. (p. 30. Grifo meu.)

A organização em blocos com pouca evidência da argamassa que os une também pode ser considerada além dos limites do texto. Se o olhar retrospectivo sobre a existência já pressupõe lapsos, elipses e ocultamentos, e a intenção seleciona os fatos, o conhecimento das condições materiais da existência do autobiógrafo durante a escrita lança novas luzes sobre o modo de produção estético, redimensionando a leitura. Sabe-se que, premido por dificuldades financeiras, Graciliano Ramos escreve u e publicou breves histórias que relatavam fatos de meninice, num procedimento análogo à escrita e publicação de Vidas secas. O cronista Rubem Braga morou algum tempo na mesma pensão que Graciliano, e esclareceu:

Cada capítulo deste pequeno livro [Vidas secas] dispõe de uma certa autonomia, e é capaz de viver por si mesmo./.../ Graciliano não fez assim por recreação literária. Fez por necessidade financeira. Ia escrevendo e vendendo o romance a prestação. Vendeu vários contos. Alguns capítulos fez de maneira a poder rachar no meio. Foi colocando tudo a varejo no nosso pobre mercado literário. Depois vendeu tudo por atacado, com o nome de romance.”

Considerar este fato põe sob outro ângulo as relações entre o escritor, o processo escritural, a obra e seus leitores, pois transforma elementos contextuais em aspectos textuais. O conhecimento deste dado biográfico acrescenta outras possibilidades para tratar a organização lacunar da história e o inacabamento inerente ao texto. Porém, esta fragmentação do texto de Infância também pode ser considerada um fractal da obra de Graciliano, identificada por Alfredo Bosi como a formalização literária do “ponto mais alto da tensão entre o escritor e a sociedade que o formou”:

Escrevendo sob o signo dialético do conflito, Graciliano não compôs um ciclo, um todo fechado sobre um ou outro pólo da existência (eu/mundo), mas uma série de romances cuja descontinuidade é sintoma de um espírito pronto à indagação, à fratura, ao problema. O que explica a linguagem díspar de Caetés, Angústia, Vidas secas, momentos diversos que só terão em comum o dissídio entre a consciência do homem e o labirinto de coisas em que se perdeu. E explica, em outro plano, o trânsito da ficção ao nítido corte biográfico de Infância e Memórias do cárcere."

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Fonte:
DEISE DANTAS LIMA: “ARTES DA MEMÓRIA: ficcionalização da matéria biográfica e representações do intelectual, em Graciliano Ramos e Guimarães Rosa". (Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal Fluminense como requisito para a obtenção do grau de Doutor em Literatura Comparada). Niterói, 2006.

Nota
:
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O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

Disponível digitalmente no site: Domínio Público

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