Machado de Assis por seus contemporâneos: Euclides da Cunha


EUCLIDES DA CUNHA (1866-1909)
Euclides da Cunha nasceu nasceu em Cantagalo, Rio de janeiro, no dia 20 de janeiro de 1866, e faleceu na cidade do Rio de Janeiro em 15 de agosto de 1909. Foi jornalista, engenheiro, professor, ensaísta, historiador, sociólogo e poeta, autor da famosa obra “Os Sertões”, escrita por ocasião da Guerra de Canudos, no fim do século XIX. O site daAcademia Brasileira de Letras,em sua Biografia, discorre sobre a questão: “Quando irrompeu o movimento de Canudos, São Paulo colaborou com o país na repressão do conflito, mandando para o teatro da luta o Batalhão Paulista. Euclides foi encarregado pelo jornal Estado de S. Paulo para acompanhar como observador de guerra o movimento rebelde chefiado por Antônio Conselheiro no arraial de Canudos, em pleno sertão baiano. Estava ele no teatro de operações de 1o a 5 de outubro de 1897 e ali assistiu aos últimos dias da luta do Exército com os fanáticos de Antonio Conselheiro. Em Salvador, havia procedido a um profundo estudo prévio da situação no que respeita aos aspectos geográfico, botânico e zoológico da região, bem como aos antecedentes sociológicos do conflito. Documentou-se de modo exaustivo e exato, formando sobre o caso um juízo imparcial e objetivo. Enviou então para o jornal as suas reportagens, que iriam transformar-se no seu grande livro, Os sertões.”


Machado de Assis aos 25 anos

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A última visita

Na noite em que faleceu Machado de Assis, quem penetrasse na vivenda do poeta, em Laranjeiras, não acreditaria que estivesse tão próximo o triste desenlace da sua enfermidade. Na sala de jantar, para onde dava o quarto do querido mestre, um grupo de senhoras ontem meninas que ele carregava nos braços carinhosos, hoje nobilíssimas mães de famílias comentavam-lhe os lances encantadores da vida e reliam-lhe antigos versos, ainda inéditos, avaramente guardados nos álbuns caprichosos. As vozes eram discretas, as mágoas apenas rebrilhavam nos olhos marejados de lágrimas, e a palidez completa no recinto onde a saudade glorificava uma existência, além da morte.

No salão de visitas viam-se alguns discípulos dedicados, também aparentemente tranqüilos.

E compreendia-se desde logo a antilogia de corações tão ao parecer tranqüilos na iminência de uma catástrofe. Era o contágio da própria serenidade incompatível e emocionante em que ia a pouco e pouco extinguindo-se o extraordinário escritor. Realmente, na fase aguda de sua moléstia, Machado de Assis, se por acaso traía com um gemido e uma contração mais viva o sofrimento, Apressava-se em pedir desculpas aos que o assistiam, na ânsia e no apuro gentilíssimo de quem corrige um descuido ou involuntário deslize. Timbravam em sua primeira e última dissimualação: a dissimulação da própria agonia, para não nos magoar com o reflexo de sua dor. A sua infinita delicadeza de pensar, de sentir, e de agir, que no trato vulgar dos homens se exteriorizava em timidez embaraçadora e recatado retraimento, transfigurava-se em fortaleza tranqüila e soberana.

E gentilissimamente bom durante a vida, ele se tornava gentilmente heróico na morte...

Desapontamento. Mas aquela placidez augusta despertava na sala principal, onde se reuniam Coelho Neto, Graça Aranha, Mário de Alencar, José Veríssimo, Raimundo Correia e Rodrigo Octavio, comentários divergentes. Resumia-os um amargo desapontamento. De um modo geral, não se compreendia que uma vida que tanto viveu as outras vidas, assimilando-as através de análises sutilíssimas, para no-las transfigurar e ampliar, aformoseadas em sínteses radiosas –, que uma vida de tal porte desaparecesse no meio de tamanha indiferença, num círculo limitadíssimo de corações amigos. Um escritor da estatura de Machado de Assis só devera extinguir-se dentro de uma grande e nobilitadora comoção nacional.

Era pelo menos desanimador tanto descaso – a cidade inteira, sem a vibração de um abalo, derivando imperturbavelmente na normalidade de uma existência complexa – quando faltavam poucos minutos para que se cerrassem 40 anos de literatura gloriosa...

Neste momento, precisamente ao anunciar-se esse juízo desalentado, ouviram-se umas tímidas pancadas na porta principal da entrada.

Abriram-na. Apareceu um desconhecido: um adolescente, de 16 ou 18 anos, no máximo. Perguntaram-lhe o nome. Declarou ser desnecessário dize-lo: ninguém ali o conhecia; não conhecia por sua vez ninguém; não conhecia o próprio dono da casa, a não ser pela leitura de seus Livros, que o encantavam. Por isso, ao ler nos jornais da tarde que o escritor se achava em estado gravíssimo, tivera o pensamento de visita-lo. Relutara contra essa idéia, não tendo quem o apresentasse: mas não lograva vencê-la. Que o desculpassem, portanto. Se lhe não era dado ver o enfermo, dessem-lhe ao menos notícias certas de seu estado.

E o anônimo juvenil – vindo da noite – foi conduzido ao quarto do doente. Chegou. Não disse uma palavra. Ajoelhou-se. Tomou a mão do mestre, beijou-a num belo gesto de carinho filial. Aconchegou-o depois por algum tempo ao peito. Levantou-se e, sem dizer palavra, saiu.

A porta, José Veríssimo perguntou-lhe o nome. Disse-lho.

Mas deve ficar anônimo. Qualquer que seja o destino desta criança, ela nunca mais subirá tanto na vida. Naquele momento o seu coração bateu sozinho pela alma de uma nacionalidade. Naquele meio segundo – no meio segundo em que ele estreitou o peito moribundo de Machado de Assis, aquele menino foi o maior homem de sua terra.

Ele saiu – e houve na sala, há pouco invadida de desalentos, uma transfiguração.

No fastígio de certos estados morais concretizam-se às vezes as maiores idealizações.

Pelos nossos olhos passara a impressão visual da Posteridade...

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Fonte:
Publicado no Jornal do Commercio em 30 de setembro de 1908 (também a imagem) estão
disponível digitalmente no site da Biblioteca Nacional Digital do Brasil

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