Machado de Assis por seus contemporâneos: Araripe Júnior



ARARIPE JÚNIOR (1848-1911)
Araripe Júnior nasceu na cidade de Fortaleza, no Estado do ceará, no ano de 27 de junho de 1848, e faleceu na capital do Rio de Janeiro, em 29 de outubro de 1911. Foi um conhecido crítico literário. Segundo consta em sua Biografia publicada no site da Academia Brasileira de Letras: “Não é o ficcionista, mas o crítico literário que constitui a importância de Araripe Júnior na literatura brasileira. Dotado de grande sensibilidade para o fato estético e de grande acuidade para a análise; dono de vasta cultura geral e literária, aplicou-se a estudar a literatura brasileira na obra de seus autores representativos: José de Alencar, Gregório de Matos, Tomás Antônio Gonzaga, Raul Pompéia, Aluísio Azevedo, e outros. Assim, deixou vasta obra crítica, formando com Sílvio Romero e José Veríssimo a trindade crítica da época positivista e naturalista. Sua obra crítica, dispersa pelos periódicos, desde os tempos do Ceará, só em parte foi publicada em livro, durante sua vida. No último livro, Ibsen e o espírito da tragédia (1911), sem abandonar a preocupação nacionalista, alçou-se a um plano de universalidade, buscando a razão de ser da tragédia humana, através da obra dos grandes trágicos, da Grécia ao século XIX. Como crítico, era um conselheiro amável e cheio de compreensão, sobretudo pelos estreantes.”



Escultura de Machado de Assis

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Sobre Machado de Assis, de Sílvio Romero

O último trabalho de tomo, dado aos prelos por Sílvio Romero, foi um estudo sobre Machado de Assis.

Um fenômeno curioso é o que se nota nesse estudo. Sílvio Romero, a cada instante, declara que mudou de temperamento, amainou as velas e acha-se predisposto a uma grande complacência. Machado de Assis não lhe parece ser o homem impossível que ele atacava em 1872 e 1880. Tem qualidades e representa um bom esforço literário. Todas estas declarações, porém, são ilusórias; e o crítico, que, segundo me parece, não quis concentrar o seu espírito na obra, já bastante extensa, do autor de Brás Cubas, faz ressurgir suas antigas antipatias, recorrendo ao seu processo predileto de esbordoar os outros com essa clava de Hércules chamada Tobias Barreto.

Com justa razão, geralmente se achou extravagante que o crítico escolhesse o falecido lente de criminologia do Recife para confrontar com o nosso, pode-se dizer, único humorista. Se ainda o fizesse para mostrar o contraste dessas duas naturezas, vá; mas não se deu isto: o autor da História da Literatura Brasileira pretendeu, antes de tudo, mostrar que Tobias era um humorista valente e incomparável, diante das deliqüescências de Machado de Assis.

Não sei se deva dizer que o que ali se expende, a respeito do autor de Dias e Noites, causou a impressão de um corpo estranho metido à força numa garrafa de azeite. O livro, na sua maior parte, repete o que Sílvio Romero já disse vinte vezes sobre o talento indisputável do grande sergipano; apenas acrescenta algumas novas considerações relativas ao seu temperamento alegre. Tobias, porém, podia ser tudo, menos um humorista; e nem ao crítico apadrinham as opiniões de Schérer e Taine, quando definem esse gênero de literatura.

Que pode haver de comum entre esse excentricismo ou humorismo anglosaxônio e a alegria ruidosa de Tobias? Conheci o ilustre morto nos seus melhores tempos; e posso garantir, pelo que observei e tenho lido desse autor, que nunca, sobre a Terra, pisou homem de alma menos tristonha. Tobias era um boêmio incorrigível, genial, talvez, para cujo temperamento maligno nada havia superior, em deleite, ao exercício do espírito de tropa. Nas questões mais intricadas e sérias, raro era que ele não desse largas ao seu gênio e, de súbito, não irrompesse em verdadeiras molecagens para fazer encavacar os seus antagonistas. Ainda tenho presente uma dessas troças. Examinavam um estudante em direito eclesiástico, e Tobias, no impedimento de um dos catedráticos, fazia parte da mesa-examinadora. Perguntara o lente da cadeira, ao examinando, o que era cardeal. "Cardeal", disse o rapaz, "é uma dignidade da igreja que fica metida entre o Papa e o bispo". Como era natural, o examinador irritou-se com a resposta e começou a invectivar a ignorância do estudante. Tobias ouvira tudo isto sorrindo e puxando um bigode hirsuto. De súbito, brilharam-lhe os olhos! Dirigiu-se, então, ao colega, e, interrompendo-o: "Perdão; agora, eu..." E virou-se para o argüido: "Diga, Sr. estudante, que o seu professor não lhe quer revelar a verdade verdadeira. Respondeu bem. Cardeal é uma espécie de intruso na igreja, que lambe os pés do Papa, enquanto não lhe chega a vez de ser lambido, e que olha de esguelha para o bispo, cuja autoridade não exerce, por ser eunuco, nem respeita, por ser safado. E há outras coisas mais que essa dignidade acumula; mas que só no compêndio de Bocácio o senhor terá ocasião de aprender, logo que se liberte desse direito espoliástico."

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Fonte:
Fragmento de “Sílvio Romero Polemista”. In: ARARIPE JÚNIOR, Tristão de Alencar. Araripe Júnior: teoria, crítica e história. Seleção e apresentação de Alfredo Bosi. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos; São Paulo: Edusp, 1978, (também a imagem), estão
disponível digitalmente no site da Biblioteca Nacional Digital do Brasil

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