O grotesco na narrativa de “Angústia”

“Desde o século XV e XVI, o grotesco aparece nas artes, literatura, arquitetura e pintura, segundo W. Kayser, esta estranha configuração é o “solo nutritivo de todas as tendências anticlássicas na arte decorativa do maneirismo”, até a “arte atual (que) evidencia uma afinidade com o grotesco, como jamais, talvez, teve qualquer outra época”.

As pinturas de Bosch e Brueghel, dos séculos XV e XVI, já apresentavam elementos do grotesco, assim como as telas de Francisco Goya. De acordo com o crítico, o conceito de grotesco arrastou-se através dos livros de Estética como subclasse do cômico, até que se encontra em um escrito do dramaturgo Dürrenmatt a seguinte definição:

Nosso mundo levou simultaneamente ao grotesco e à bomba atômica, do mesmo modo como são igualmente grotescos os quadros apocalípticos de Hieronymus Bosch. Mas o grotesco é apenas uma expressão sensível, um paradoxo sensível, ou seja, a figura de uma não-figura, o rosto de um mundo sem rosto. E tal como nosso pensamento parece não poder mais prescindir do paradoxo, o mesmo ocorre com a arte e com o nosso mundo, que só existe porque existe a bomba, isto é, pelo medo que se tem dela (...)

As primeiras manifestações do grotesco no século XVI foram principalmente ornamentais; em fins do século XIX, depois de passar pelo Sturm und Drang, percebe-se o surgimento de obras que já prenunciam o grotesco do século XX, com uma freqüência muito maior, tanto na literatura como na pintura e essas ocorrências datam de alguns anos anteriores à Primeira Guerra Mundial. Esta manifestação do grotesco, nas obras, desprende-se do satírico, e traz o sobrenatural, “é o olhar através do inatural e dos disfarces para a verdadeira natureza do homem, a sua arquiforma”.

Em Angústia, há uma revelação do animalesco na criatura humana, o que avoluma o efeito de estranhamento. As personagens estão constantemente associadas a ratos – Julião, Marina e também a casa de Luis está tomada por esses roedores que perturbam constantemente. Há, também, como se viu anteriormente, canos que se transformam em cobras. Em várias situações, as lembranças de Luis descrevem ao leitor imagens deformadas, tudo está em seu próprio pensamento, são deformações que lhe trazem insegurança, pois a personagem se vê alheia à própria existência; todas as passagens com essas imagens grotescas levam ao estranhamento diante de uma narrativa tão incomum e, conseqüentemente, é possível observar um homem cindido entre sua imaginação, a realidade e suas memórias. O mundo em que está só lhe causa sofrimentos e privações de toda sorte, há muitos momentos em que a realidade exterior de Luis se desvanece, em decorrência de sua introspecção.

Essas imagens grotescas que se encontram em Angústia não estão ligadas à tragicomédia como em tantas obras dramáticas, pois buscam revelar a face mais noturna da personagem, seus ódios, configurando a imagem de um homem perdido em meio a um mundo sinistro, e também dividido em relação a que atitude tomar diante da própria existência. Dificilmente um Luis da Silva chegaria a tirar sorrisos de qualquer público, sua figura humana é nula, mostra-se uma pessoa oprimida e em constante crise, sua figura é tão soturna que caberia aqui a questão levantada pela personagem da peça de Büchner, Danton: “Que é que, em nós, mente, mata, assassina?, em Angústia, é esse lado noturno da alma de Luis que vem revelar a tendência dessa literatura de horror, do início do século XX, que tem, como Luis que enforca Julião, o desejo de “abalar as categorias vigentes na imagem burguesa do mundo".

Como manifestação do grotesco em Angústia, têm-se imagens incomuns como o balaio de ossos que o estudante de medicina, Dagoberto, trazia para a pensão e colocava sobre a cama de Luis, a imagem dos ratos associada a tudo, a cobra que enforca o avô Trajano, a demência do velho. A cena do assassinato de Julião leva o leitor a um estado de agonia pela violência do ato e o desespero de Luis para içar o cadáver, o hábito esdrúxulo de Vitória contar e enterrar suas moedas no quintal, a leitura sem propósito das chegadas dos navios ao porto da cidade, os canos aparentes de sua casa que se transformam em cobras, o “olho de vidro de Padre Inácio (estava) parado, suspenso no ar, fora do corpo” (A. p. 232), “os caibros (que) engrossavam, torciam-se, alvacentos e repugnantes como cobras descascadas”, “os caibros faziam voltas, as telhas se equilibravam por milagre” (A. p.232), “rostos medonhos arreganhavam os dentes e piscavam os olhos” (A. p.234), (o cego bilheteiro) “avançando (para mim), ameaçando (-me) com uma tira de papel, que engrossava e queria morder (-me)” (A. p.234), ainda, “um ventre enorme crescia na parede, uma criatura mal vestida passava arrastando a filha pequena, um brilho de ódio no olho único” (A. p.236).

A ausência de parágrafos nas últimas páginas de Angústia reflete também o estado de desorientação da personagem, é uma alucinação contínua, não há um eixo central, se não o da lembrança em que os mortos do passado se aproximam da personagem em seu delírio. Esta sensação de estranhamento é a expressão do grotesco, mostrando a demolição interior da personagem. uma reprodução deformada de todo o ambiente e em alguns momentos também de pessoas como a já mencionada mulher grávida com quem Luis se choca em uma esquina da cidade, ou mesmo a imagem de Julião Tavares transformando-se ou deformando-se no meio da rua, e no artigo que está na máquina de escrever. Em relação à vida de Luis, caberia a frase de Goethe: “Vista da altura da razão, toda a vida parece uma doença maligna e o mundo um manicômio".

A imagem do indivíduo mal composto também está presente na obra de Graciliano Ramos, em um capítulo de Infância, intitulado “Um intervalo”. O menino avalia as observações feitas pelas moças da casa de seu Nuno, elas lhe fazem elogios ao paletó cor de macaco que trajava. Os defeitos do paletó, ou seja, os aspectos exteriores passam a incorporar características da personagem e até dos romances escritos pelo próprio autor

Examinavam-no sérias, achavam o pano e os aviamentos de qualidade superior, o feitio admirável. Envaideci-me: nunca havia reparado em tais vantagens. Mas os gabos se prolongaram, trouxeram-me desconfiança. Percebi afinal que elas zombavam, e não me susceptibilizei.[...] Guardei a lição, conservei longos anos esse paletó. Conformado, avaliei o forro, as dobras e os pespontos das minhas ações cor de macaco. Paciência, tinham de ser assim. Ainda hoje, se fingem tolerar-me um romance, observo-lhe cuidadoso as mangas, as costuras, e vejo-o como ele é realmente: chinfrim e cor de macaco
. (Infância, pp. 211, 212).

Se Hugo Friedrich, ao referir-se ao humour noir de Gómez de la Serna, afirma que

O humor despedaça a realidade, inventando as coisas mais inverossímeis, reunindo à força tempos e objetos separados, alheando tudo o que existe, rasga o céu e mostra ‘o mar imenso do vazio’; é a expressão da discrepância entre o homem e o mundo, é o rei do inexistente".

Certamente, há em Angústia elementos na narrativa que destroem a realidade do protagonista e mostram a tonalidade afetiva de seu espírito. A revolta contra a sociedade burguesa que também está evidente na obra comprova ainda mais a crise de valores a que o homem está sujeito em um ambiente urbano.”

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Fonte:
Silvia Dafferner “ANGÚSTIA E A PROXIMIDADE COM ESTÉTICAS VANGUARDISTAS: ANÁLISE DAS IMAGENS, DO NARRADOR E SEU CONFLITO”. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Literatura Comparada do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para a obtenção do título de Mestre em Letras. Orientador: Profa. Dra. Andrea Saad Hossne). São Paulo, 2008.

Nota
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Disponível digitalmente no site: Domínio Público

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