O homem subterrâneo: Graciliano Ramos



Trataremos “o homem subterrâneo” na direção que nos coloca frente à fortuna crítica do romance, trazendo para a superfície um autor e uma obra – Vidas Secas que desafiam o plano de superfície com que são comumente analisados: um autor engajado no modelo de romance regional dos anos 30 e um livro-denúncia da força determinante do meio sobre o homem.

À medida que nos aprofundamos nesse romance, verificamos que o homem subterrâneo é aquele que supera a crítica de que em Vidas Secas “homem e animal convivem ali sem qualquer barreira que os separem” (MOURÃO, 1969, p. 127; grifos nossos). Da mesma forma, esse homem subterrâneo não está associado ao inconsciente, porque Graciliano Ramos não deseja “que seu romance seja um simples campo de aplicação de análise psicológica” (CÂMARA, 1978, p. 278).

Apesar disso, Martins considerou cada capítulo de
Vidas Secas um estudo psicológico:

Há o estudo de Fabiano, de Sinha Vitória, o dos meninos, o de Baleia, o do soldado amarelo. A paisagem comparece predominantemente no primeiro e último capítulos, porque ‘Cadeia’, ‘Inverno’, ‘Festa’ e ‘o mundo coberto de penas’, são ainda estudos psicológicos.
(MARTINS, 1978, p.41- 42).

Embora haja leituras de
Vidas Secas que enveredaram pelo psicologismo, por entenderem a introspecção como um método psicológico; a interiorização nesta obra é um princípio para representar o discurso interior de Fabiano. Nele se esboça o ponto de vista da personagem, revelando as reações sucedidas de acordo com os acontecimentos. Graciliano, portanto, expressa a atividade mental do sertanejo, por meio da introspecção que se orienta para compreender o signo interior e convertê-lo em signo exterior.

Desse modo, tem-se acesso aos pensamentos do outro, um discurso não verbalizado, mas cheio de evasivas, ressalvas, réplicas, no qual se registra a sua percepção sobre a realidade e sobre si mesmo. Por esse motivo,
Vidas Secas é mais que um romance regionalista com tendência à crítica social, porque o autor preferiu representar as reações interiores do caboclo ao invés de desenvolver tese social.

Em conseqüência da postura subversiva do escritor, alguns críticos da esquerda decepcionaram-se, pois o romance de Graciliano escapava dos moldes do romance proletário. A propósito disso, afirma Guimarães:

O romance proletário é uma espécie de necessidade histórica por ser a forma que quadra bem a um capitalismo decadente e tem que ter os seguintes elementos: valorização da massa, rebeldia, descrição veraz da vida proletária
(apud BUENO, 2006, p.164).

Jorge Amado, em artigo sobre
Os Corumbas de Amando Fontes, reitera esses mesmos pontos, somando a eles: a ausência de enredo e o fim do herói.

Diante do ambiente ideológico da época, Aderbal Jurema, em 1934, expressou claramente sua decepção a respeito de
Caetés, entretanto, nota-se que sua critica pode ser estendida aos outros romances de Graciliano Ramos:

Eu julgava encontrar no romance de Graciliano Ramos, aquele silencioso companheiro de banco do Café Central de Maceió, o desenvolvimento de uma tese social. Daquele homem que falava muito pouco, dando a impressão de que seu cérebro pesava, media e contava as letras das frases que ia pronunciar, não podia esperar um livro somente humano, introspectivo, mas completamente alheio à desigualdade de classes na sociedade e fora de órbita da literatura revolucionária do momento.
(JUREMA apud BUENO, 2006, p. 231).

Para o crítico acostumado à estética regionalista dominante,
Caetés e São Bernardo deveriam evidenciar o movimento de massa, o caráter documental sobre a vida dos humildes e o espírito de revolta. Talvez essa percepção tenha levado Bueno a afirmar que a obra de Graciliano Ramos está engajada socialmente, embora acabe privilegiando sempre o indivíduo:

Arquitetada pela fusão de preocupação social com a manifesta visão de que o romance não pode abrir mão da introspecção, isso o coloca em posição central na história do romance de 30, indicando de forma clara o caminho que os melhores livros do período vão acabar, de um modo ou de outro, seguindo. [...]
É dessa maneira que Graciliano se coloca, desde sua estréia, como o mais importante romancista da década, ao mergulhar nos problemas sociais e psicológicos sem fazer média com a crítica de seus próprios amigos nem abdicar de uma posição política que sempre estivera muito clara e mais clara ficaria com sua prisão em 1936. (BUENO, 2006, p.243)

Sendo assim, é impossível enquadrar a obra de Graciliano Ramos em moldes ou esquemas preconcebidos, devido à própria diversidade estética e temática de seus romances. Bosi interpreta essa produção variada como uma recusa à regra:

Graciliano não compôs um ciclo, um todo fechado sobre um ou outro pólo da existência (eu/mundo), mas uma série de romances cuja descontinuidade é sintoma de um espírito pronto à indagação, á fratura, ao problema
. (BOSI, apud SÜSSEKIND, 1984, 170).

Por outro lado, é inegável seu vínculo com a tradição regionalista e a preocupação com o social, motivadoras do discurso narrativo, conforme afirma o escritor:

Para sermos completamente humanos, necessitamos estudar as coisas nacionais, e estudá-las de baixo para cima. Não podemos tratar convenientemente das relações sociais e políticas, se esquecemos a estrutura econômica de uma região que desejamos apresentar em livro.
(RAMOS, 1962, p. 261).

Nesse sentido, no caso de
Vidas Secas, repete-se o tema do drama da seca intrínseco ao sertanejo, tão abordado na literatura, mas sempre válido e importante socialmente. Contudo, para o autor, o sertanejo e a miséria devem ser abordados com verossimilhança, pois se encontra a novidade da literatura: no modo como se presentifica essas relações. Para Graciliano, então, “a grandeza da arte não vem diretamente dos tipos e situações representadas, mas sim da forma que eles ganham dentro da obra” (BUENO, 2006, p. 236).

Por isso, o autor considerou sua obra inédita em muitos aspectos, conforme é possível notar na carta enviada ao jornalista José Condé:

Fiz o livrinho, sem paisagens, sem diálogos. E sem amor. Nisso, pelo menos, ele deve ter alguma originalidade
. Ausência de tabaréus bem-falantes, queimadas, cheias e poentes vermelhos, namoro de caboclos. A minha gente, quase muda, vive numa casa velha de fazenda. As pessoas adultas, preocupadas com o estômago, não têm tempo de abraçar-se. Até a cachorro é uma criatura decente, porque na vizinhança não existem galãs caninos. (RAMOS,C., 1979, p. 129; grifos nossos).

Vidas Secas
é um “livrinho” com muitas negativas, pois desejava uma narrativa que se assemelhasse à realidade de suas personagens e, para isso, eliminou tudo que não era essencial, reduzindo a linguagem ao mínimo de recursos. Entende-se, agora, porque Graciliano Ramos combateu a linguagem artificial, que se caracteriza pela ênfase ao acessório: justamente porque desnatura o fato e mente.

Desse modo, Graciliano Ramos manifesta-se negativamente com relação a certos estratos da literatura tradicional, da Academia e de seguidores do cânone:

Há uma literatura antipática e insincera que só usa expressões corretas, só se ocupa de coisas agradáveis, não se molha em dias de inverno e por isso ignora que pessoas que não podem comprar capas de borracha. Quando a chuva aparece, essa literatura fica em casa, bem aquecida, com as portas fechadas. E se é obrigada a sair, embrulha-se, enrola o pescoço e levanta os olhos, para não ver a lama nos sapatos. Acha que tudo está direito, que o Brasil é um mundo que somos felizes. Está claro que ela não sabe em que consiste essa felicidade, mas contenta-se com afirmações e ufana-se o país. Foi ela que, em horas de amargura, receitou o sorriso como excelente rémedio para a crise. Meteu a caneta em poetas da Academia e compôs hinos patrióticos: brigou com estrangeiros que disseram cobras e lagartos desta região abençoada; inspirou estadistas discursos cheios de inflamações , e antigamente redigiu odes bastante ordinárias [...] Essa literatura é exercida por cidadãos gordos, banqueiros, acionistas, comerciantes, proprietários, indivíduos que não acham que os outros tenham motivo para estar descontentes
. (RAMOS, 1962, p. 94).

Nota-se que a grande preocupação de Graciliano Ramos foi contrapor-se à produção literária de caráter conservador, vinculada à Academia, que optou pela estética fixada em modelos estáveis, descomprometida com as questões sociais devido à manifestação de um nacionalismo ufanista, tendência à exaltação lírica da pátria ou da paisagem, como se o Brasil fosse um Eldorado ou paraíso terrestre. Por esse motivo, segue em direção contrária juntamente com Jorge Amado e outros:

Os escritores atuais foram estudar o subúrbio, a fábrica, o engenho, a prisão da roça, o colégio do professor cambembe. Para isso resignaram-se a abandonar o asfalto, o café, viram de perto muita porcaria, tiveram a coragem de falar errado, como toda gente, sem dicionário, sem gramática, sem manual de retórica. Ouviram gritos, pragas, palavrões, e meteram tudo nos livros que escreveram. Podiam ter mudado os gritos em suspiros, as pragas em orações. Podiam, mas acharam melhor pôr os pontos nos
ii. O Sr. Jorge Amado é um desses escritores inimigos da convenção e da metáfora, desabusados, observadores atentos.(RAMOS, 1962, p.95).

A proposta para reabilitar o romance brasileiro estaria, portanto, embasada no conhecimento do escritor acerca do objeto a ser ficcionalizado, além do abandono dos recursos exibicionistas e do rebuscamento da linguagem. Tanto que Graciliano Ramos elogiou a obra
Porão de Newton Freitas, por ser uma narrativa de linguagem simples e sem exagero:

Essa história que Newton Freitas está publicando em jornal e certamente vai publicar em volume poderia ser um dramalhão reforçado, com muita metáfora e muito adjetivo comprido. O assunto daria para isso. E até julgo que pouca gente no Brasil resistiria à tentação de pregar ali uns enfeites vistosos, que agradariam com certeza leitores bisonhos, mas estragaria a narrativa.
Não aconteceu semelhante desastre. (Ramos, 1962, p. 99).

Para Bulhões (1999, p. 160), Graciliano Ramos adere a uma das questões fundamentais proposta pelo Modernismo de 1922, ao romper com a tradição acadêmica, ao criticar as formas beletristas da linguagem, ao inserir na expressão escrita os recursos da oralidade. Essa "poética da escassez e da negatividade" foi uma manifestação de repúdio "do estilo empolado e exibicionista” (Idem, p. 156), conservado por alguns autores como Coelho Neto e Humberto de Campos.

Essa nova “estrutura composicional” pode ser percebida na crônica
Justificação de voto, na qual relata os seus critérios para selecionar os contos do concurso promovido pelo semanário D. Casmurro:

Comoveu-me a valentia do sertanejo que em noite de festa, canta, dança, entra em barulho, quebra as forças da morena vestida de chita, depois se casa com ela, é enganado e mata dois meliantes. Essa tragédia foi contada muitas vezes [...] Contemplei vários poentes ensangüentados, é claro, como todos poentes que se respeitem, e reli as duas descrições úteis a românticos e realistas: a queimada e a enchente. A água e o fogo ainda são elementos no interior, pelo menos em literatura. Admirei periodos muito bem compostos, embalei-me com ritmo binário e com o ritmo ternário. Vi de perto sequazes de Coelho Neto, de Humberto de Campos [...] Afastei isso tudo. E como era necessário escolher treze contos, separei casos simples e humanos, alguns bem idiotas, mas sem francês, sem inglês, sobretudo sem a ponta de faca da honra cabocla, mentirosa e besta sem ritmos, infalíveis, o binário e o ternáro, sem enchente e queimada, sem tapeações do modernismo.
(Ramos, 1962, p. 151; grifos nossos).

Além disso, Graciliano refere-se ainda às formas diferentes de valorar o objeto estético, porque os outros quatro jurados também escolheram treze contos cada um e não houve coincidência de voto. Desse modo, havia sessenta e cinco histórias dignas de premiação. Para desempatar nomearam o crítico Almir de Andrade, que premiou as histórias selecionadas por Graciliano Ramos.
Coração de D. Iaiá, de José Carlos Borges, classificou-se em primeiro lugar. No entanto, alegaram que "ao trabalho escolhido faltavam coisas indispensáveis: a cadência, o adjetivo grudado ao substantivo e o advérbio engatado ao adjetivo" (RAMOS, 1962, p. 152). Graciliano justifica seu voto, expondo o seu critério para valorar o objeto artístico e a sua concepção literária:

O Sr. José Carlos Borges não pratica os erros voluntários de certos cidadãos que tentaram forjar uma língua capenga e falsa. Exprime-se direito, sem penduricalhos, e isto a sua prosa uma aparência de naturalidade que engana o leitor desprevinido. Não percebemos o artifício, temos a impressão de que que aquilo é espontâneo, foi arranjado sem nenhum esforço. [...]
Certamente houve paciência e demora na composição. [...] Conhece perfeitamente a sua personagem [D. Iaiá], mas não se confunde em nenhuma passagem com ela. A redação [das cartas] não é da velha, mas parece-nos que é. A correspondência tem [...] uma verossimilhança obtida às custas de repetições oportunas e dum vocabulário pequeno, presumivelmente o que adotam as senhoras de escassos recursos intelectuais e muita devoção. (RAMOS, 1962, p. 153-154; grifos nossos).

Diante desses apontamentos, percebe-se que a prosa, para o escritor, deve representar artisticamente a diversidade social de linguagens e constituir-se a partir da combinação de estilos: "a redação não é da velha, mas parece-nos que é". Somente assim, é possível reconhecer a personagem pelo seu discurso, já que o vocabulário pequeno estaria de acordo com a idade da senhora e com o seu nível cultural. Essa reflexão revela, ainda, que a preocupação de Graciliano não se restringe à escrita, mas ocorre também com relação ao discurso oral da personagem.

Tal postura colabora para a construção de um romance que prima pelo vocábulo preciso e decisivo e pela redução da eloqüência do discurso. Esse novo enfoque dado pela forma sucinta de narração, pela propositada economia descritiva, foi a maneira de Graciliano Ramos opor-se "ao pitoresco, ao descritivismo e ao gosto hiperbólico presentes na tradição do romance da seca, desde o naturalismo do século XIX até o regionalismo de 1930" (MIRANDA, 2004, p. 43).

Em conseqüência dessa subversão, Graciliano Ramos alcança a originalidade almejada, porque o que poderia ser um romance de paisagens, mais um a explorar o tema do drama social causado pela seca no Nordeste, segue em direção oposta à maioria dos textos literários, que no período desempenhavam a função de desvendar socialmente o Brasil. Ao falar da terra, da seca, centraliza seu romance no homem que sofre ora com a perseguição do espaço físico, ora com a exploração e submissão ao espaço social, como observa Álvaro Lins:

le [Graciliano Ramos] exprime o ambiente com fidelidade, mas somente em função de seus personagens. A ambiência é um incidente; o personagem que é a vida romanesca. A paisagem exterior torna-se uma projeção do homem.
( LINS,
in RAMOS, 2004, p. 130).

É nesse sentido que se pode afirmar que, em Vidas Secas, o regional tem caráter funcional: os acontecimentos exteriores decorrentes da posição geográfica, das características climáticas e sócio-culturais são temas relevantes, porque afetam diretamente a vida do sertanejo e servem de motivação para a personagem esboçar sua percepção sobre a realidade circundantes. O autor bem mais interessado em investigar a reação do meio na complexa consciência existente debaixo da superficial aparência daquele ser "bronco", busca o signo interior para compreender a atividade mental da personagem e exprimi-lo aproximando-se ao máximo possível do estado de expressão exterior, para expor como discurso e em discurso sua consciência:

O que me interessa é o homem
, e o homem daquela região aspérrima. Julgo que é a primeira vez que esse sertanejo aparece em literatura. Os romancistas do Nordeste têm pintado geralmente o homem do brejo. É o sertanejo que aparece na obra de José Américo e José Lins. Procurei auscultar a alma do ser rude e quase primitivo que mora na zona mais recuada do sertão, observar a reação desse espírito bronco ante o mundo exterior, isto é, a hostilidade do meio físico e da injustiça humana. Por pouco que o selvagem pense e os meus personagens são quase selvagens o que ele pensa merece anotação. Foi essa pesquisa psicológica que procurei fazer, pesquisa que os escritores regionalistas não fazem mesmo porque comumente não conhecem o sertão, não são familiares do ambiente que descrevem (RAMOS apud Clara Ramos, 1979, p.125; grifos nossos).

Dessa forma, retomando a idéia do "livrinho" de negativas,
Vidas Secas quebra outra convenção, não só porque a obra não se sujeitou a reafirmar a imagem estereotipada do sertanejo, a pregar a conservação da tradição nem a descrever paisagens exóticas; mas, principalmente, porque sua literatura ultrapassou os limites do regionalismo saudosista. Mesmo representando a relação homem-terra-sociedade, que é uma adversidade secular, Graciliano empurrou suas personagens para uma abertura ausente na maioria dos romances da época.

Ao cumprir sua ‘missão’ estritamente literária, executada alheia à política mas solidária com o pensamento revolucionário de então, afastou-se daqueles que através da literatura foram tragados [...] obrigados a dizer o 'possível', o ‘vantajoso’, o ‘necessário’, calando a linguagem inconviniente de seus personagens. Graciliano, ao contrário, ao conferir dimensão simbólica universal ao drama do homem nordestino, como em Vidas Secas ou S. Bernardo, mostra que é possível pensar o país sem mutilá-lo.
(DÓRIA, 1993, p.34).

Graciliano Ramos recorre, portanto, às peculiaridades do regional sobretudo como meio para atingir o universal, uma vez que "no ‘regional’, a Graciliano, interessa apenas o que é comum a toda sociedade brasileira, o que é ‘universal’" (COUTINHO,
in BRAYNER, 1978, p. 73). Dessa maneira, Graciliano se alimenta dos assuntos que sua região oferece, não para destacar especificidades do Nordeste, mas porque o local fornece-lhe o material que revela o homem de seu tempo e do seu país. E quanto mais o autor percebe a importância do local, mais universal será sua obra:

Ser de sua região para ser de seu país, ser de seu povo para ser da humanidade, ser ao mesmo tempo do seu povo, da humanidade, do seu tempo, para ser de todos e de todas as épocas
. (CASTELLO, 2004, p.106).

Para Caccese, Fabiano representa o drama do homem moderno: a desumanização, a solidão, a incomunicabilidade com seu semelhante:

Não é o homem quem nos interessa nessa luta heróica contra o meio avassalador? Fabiano não representará, além dos compromissos com o Nordeste brasileiro, o homem de todos os tempos, espoliado por seus semelhantes?
(CACCESE, 1978, p. 163).

Segundo o crítico Adolfo Casais Monteiro, essa seria a divergência básica entre Graciliano Ramos e o escritor regionalista, que faz da região o centro do mundo, que de tanto querer dar relevo às particularidades locais descaracteriza o romance, tornando-o tese sociológica, documentário e não uma representação estética da realidade:

Ora, em Graciliano o Nordeste não é o umbigo do mundo; o umbigo do mundo é para ele a infinita miséria dos homens. E nós sentimos o Nordeste através desta miséria, como através da particular miséria dos seus heróis sentimos a dos homens de qualquer parte da Terra
. (MONTEIRO, 1987, p. 272).

Aliás, Monteiro (1987, p. 271) considerou Graciliano um “anti-regionalista por excelência”, já que para o crítico o regionalismo como tendência literária representa saudosismo, manifestação de apego ao passado. Em outras palavras, conserva-se costumes de outrora para criticar o presente e a vida no campo é idílica como oposição à vida citadina que se afastou da tradição.

Enquanto que para Tristão de Ataíde, "o verdadeiro regionalismo não precisa sacrificar o humano" (ATAÍDE
apud, CASTELLO, 2004, p. 99), nem ter como predominância a terra sobre o homem, a nação sobre o continente, a aldeia sobre a nação.

Por outros motivos, os críticos inspirados no movimento regionalista do Recife, liderados por Gilberto Freyre, também não consideram Graciliano Ramos um romancista regionalista em virtude de submeterem o regionalismo a uma formulação sociológica, ou por associarem-no à tradição, à lenda, aos mitos, às paisagens brasileiras, à cor local, numa tentativa de reabilitar valores e tradições do Nordeste.

uma outra tendência da crítica que deixa de lado os aspectos regionalistas para se ater aos elementos da narrativa, em especial, à personagem. Neste caso, o protagonista Fabiano inicialmente é considerado cópia de Casimiro Lopes, de
São Bernardo, porque tanto um quanto outro, para alguns críticos, não compreenderiam nada: A visão do universo rural nordestino que se delineia em S. Bernardo também conduziria Graciliano Ramos à concepção de Vidas Secas, embremos, a propósito, a criação de Fabiano, sem dúvida projeção do Casimiro Lopes de S. Bernardo: Boa alma Casimiro Lopes. Nunca vi ninguém mais simples. [...] Não compreende nada, exprime-se mal e é crédulo como um selvagem. (CASTELLO, 2003, p.311; grifos nossos).

Já outros críticos defendem a tese de que a rusticidade de Fabiano o impediria de demonstrar qualquer consciência, reação ou transformação. É o caso de Alfredo Bosi ao dizer que “Graciliano olha atentamente para o homem explorado, simpatiza com ele, mas não parece entender na sua fala e nos seus devaneios algo mais do que a voz da inconsciência” (BOSI, 2003, p. 24). Ou ainda de Rubem Braga para quem: “Fabiano também não sabe pensar. É um primitivo. A façanha do livro está nesse retrato interior de um primitivo. Como pensa esse homem que não sabe pensar!” (BRAGA, 2001, p. 128).

Observa-se que essa crítica acredita na interioridade provinda de "psicologias complexas". Para ela, o indivíduo de vida rudimentar não tem capacidade de auto-análise ou nele essa capacidade não se coloca bem. Entretanto, essas concepções começam a ruir, à medida que o próprio discurso crítico não dá conta de abarcar a complexidade da obra e, como resultado, começa a se contradizer.

Isso pode ser verificado, por exemplo, na fala do estudioso Rolando Morel Pinto, ao declarar que as reações psicológicas de Fabiano estão acima do seu nível mental: “às vezes o autor chega a esquecer as limitações psicológicas de Fabiano” (PINTO, 1962, p. 159). Ou ainda, quando Álvaro Lins considerou um defeito “o excesso de introspecção em personagens tão primários e rústicos” (LINS,
in RAMOS, 2004, p. 152).

Para Candido, as personagens de
São Bernardo e Angústia, Paulo Honório e Luís da Silva, “pensam, logo existem”, enquanto que Fabiano “existe, simplesmente. O seu mundo interior é amorfo e nebuloso, como o dos filhos e da cachorra Baleia” (CANDIDO, 1992, p.45-46).

Há um erro grave quando alguns críticos defendem a idéia de que existe ausência de interioridade e de consciência no homem rudimentar, afinal, “nenhum ser humano, rigorosamente, é destituído de vida interior” (CÂMARAS, 1978, p. 286). A vida subumana do sertanejo não o destitui de interioridade, nem o faz possuir uma “psique vegetativa”:

Eles não falam muito [...] se entendem numa linguagem surda. Mas interiormente a vida mental é profunda e dilatada, remoente. [...] a solidão pode embrutecer o homem em face de outro homem, nunca esmagará as cargas emocionais recalcadas no profundo interior.
(CÂMARA, 1978, p.291-292).

Para as leituras mais contemporâneas da obra, aquilo que os críticos vêem como defeito ou inverossimilhança é o maior mérito do romance: “representar o homem rústico como um ser pensante e ver seu pensamento não como falho de sentido, mas, ao contrário, como bastante significativo - ainda que fragmentário e contraditório” (MARINHO, 2000, p. 80).

O autor conseguiu resolver o problema da representação por meio do discurso indireto livre que permite à voz narrativa a distância para evitar a identificação com a personagem. Em segundo lugar, essa tipologia discursiva dá voz ao pensamento da personagem, o que lhe garante sua autonomia e cria a ilusão "de que não há narrador ali, apenas o pensamento quase em estado bruto da personagem" (BUENO, 2006, p. 274).

Contudo, se para Bueno a opção pela narração em terceira pessoa foi "um gesto de abandono de qualquer tentativa de falar de dentro. Enfatizando o que há de cuidado em afastar a identificação fácil entre narrador e personagens proletários" (BUENO, 2006, p. 274); para Miranda, esse narrador não está totalmente impassível
, pois Graciliano Ramos optou por uma situação narrativa que se caracteriza "pelo movimento de aproximação e distanciamento da substância sensível da realidade retratada, como forma de solidarizar-se [com as personagens] e, ao mesmo tempo, sustentar uma posição crítica rigorosa" (MIRANDA, 2004, p. 41).

Essa linha de abordagem sobre o trabalho discursivo em Vidas Secas, especialmente o ensaio de Marinho (2000), que aborda o uso do discurso indireto livre como estratégia chave para a construção dialógica do livro, na esteira de Bakhtin, serão pontos basilares para esta dissertação. Estabelecer como foco a personagem Fabiano será, portanto, uma nova forma de explorar os níveis de construção dialogal que o livro oferece. Assim, nos deteremos nas relações entre Fabiano e as outras vozes sociais do romance e, principalmente, entre Fabiano e o narrador, refletindo sobre as consequências dessa arquitetura romanesca plurilíngue, na concepção bakhtiniana."

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Fonte:
Simone Aparecida Lino da Silva: “Fabiano: uma personagem dialógica”. (Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia São Paulo Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Literatura e Crítica Literária sob a orientação do Profa. Dra. Maria Rosa Duarte de Oliveira). São Paulo, 2008.

Nota
:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

Disponível digitalmente no site: Domínio Público

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