O “lugar de origem” mítico-religioso em Grande Sertão



ENCRUZILHADAS DA EPOPÉIA: O “LUGAR DE ORIGEM” MÍTICO-RELIGIOSO EM GRANDE SERTÃO: VEREDAS, DE GUIMARÃES ROSA

Que a minha língua era ponteira como a faca que trazia à cinta – murmuravam as bocas do mundo mal consideradas. Cantigas, ó Rosa! (...) Algumas vezes, também, arremediava-me a consertar os atafais do macho se o Demo queria que estoirassem. Quando, por grande acaso, se apartava desta pacífica missão, é que a minha vida corria perigo e trazer eu a peito defendê-la, pois se Deus ma deu – tantas vezes o tenho dito – a Deus tenho obrigação de a restituir, mas só quando ele for servido e mais ninguém.
Aquilino Ribeiro. In: O Malhadinhas.

“Antes de o mundo se chamar mundo, seu nome foi caos, que segundo os egípcios representava uma espécie de oceano original, anterior à criação divina. Paradoxalmente, de acordo com tal visão, esse vazio totalizava-se como um anunciador das mutações que já ocorriam e reverberava a força e a renovação do que estaria por vir, de modo a constituir-se numa ação. No livro de Gênesis, é bastante clara a idéia da origem dos céus e da terra vinculada ao espírito de Deus, que no momento da criação “pairava por sobre as águas”. Mas a esperança da concretização do paraíso sofreria uma espécie de revés, isso por culpa da figura do Diabo, representado nas Escrituras como um ser maligno, vil e rastejante. Em meio a esse entrave, o homem, ainda na qualidade de criação divina, divide-se ao meio e, feito um Épico narrador, abre este novo mundo se perguntando para onde seguir...

Nos escombros dessa dicotomia divina, ao homem tudo passou a ser narrado a partir de uma idéia doutrinadora, já que os elementos Bem e Mal desde sempre caminharam juntos perfazendo-se na construção de um ideário mítico-religioso que se solidificou na figura de um Deus uno, e, acima de tudo, justo. Como muito bem observou Epicteto, o que perturba o pensamento humano não são os fatos, mas o juízo que deles construímos. Na ordem de tais construções ideológicas, uma inferência acerca do Mal pode muito bem se personificar, ancorada numa idéia ora de concretude, ora de abstração; um julgamento, portanto, pode vir a tornar-se aquilo que consideramos como tal. Logo, a vida é aquilo que ponderamos como vida, o homem como homem, o Épico como Épico etc. E na continuidade das idéias por mim até agora levantadas uma indagação persiste: até que ponto é coerente elegermos, a partir de meras idiossincrasias, um “conceito” como totalmente certo, real e rigoroso?

E digo pouco mais, porque é entre um ir e vir que se constrói, a partir dos mais diversos saberes, a trilha de uma possível interpretação, evitando, desse modo, o chamado reducionismo. Não há um caminho que possa conduzir a um entendimento, mas a vários. Eis que numa concepção dialógica, o discurso Épico acabaria por revelar ao homem a sua história a partir de si mesmo e em confluência com toda a Civilização. Nessa multiplicidade, interpretações acabariam por elucidar não somente um conceito apenas, mas inúmeros, tornando-os por sinal ricos num processo de plurissignificação; qual uma das possíveis formas de (re)leitura do mundo, instala-se o mecanismo da narração. Com efeito, uma obra literária é mais do que um simples jogo de palavras.

Posto isto, se Homero foi o criador contumaz de uma dicção que reverteu na palavra a gênese da epopéia humana, o mesmo pode ser garantido a respeito de alguns de seus seguidores. Porém, não se deve obliterar o fato de que inúmeros escritores do século XX também vislumbraram o Épico em suas obras como um canal conscientizador, haja vista a elaboração de mecanismos textuais se efetivar na linha decisiva para a ficção atingir seu efeito criativo-criador. Nesse ínterim, o escritor passa a descortinar um novo enigma, voltado que está (em momentos vários e atuais) para uma realidade social. A epopéia tem os pés fincados na figura do homem que se relaciona intrinsecamente com a sociedade, a ponto de não apenas pensá-la, mas transformá-la. A realidade social (ou pessoal) fornece o tema e a palavra torna-se um instrumento instituidor de uma linguagem crítica ao poder instituído.

Desse modo, valendo-me tão-somente da necessidade de se criar deuses, algo que remonta aos primórdios da humanidade, posso inferir que o homem, quase sempre ao procurar religar-se ao transcendente com o auxílio de uma determinada crença, busca nada mais que atingir o auto-conhecimento. E dentre todas as vertentes que possam vir a guiá-lo, o Cristianismo é uma das principais colunas que sustentam o Ocidente. Em escala temporal, a relação cristandade-cultura ocidental fortaleceu-se a partir de um sentido ideológico, conjugando-se na esfera basilar de nossa formação independente do credo que cada um professe. Miguel de Unamuno (1991, p. 91), em sua obra
A agonia do Cristianismo, com muita propriedade ressalta que “(...) se o Cristianismo desaparecer, a civilização ocidental tende a desaparecer juntamente com ele”. E a Literatura, feito possível resposta do homem aos questionamentos surgidos a partir de tais derivações, guarda uma profunda confluência para com a Teologia.

Concordo que a figura de Deus recorrentemente despertou um misto de curiosidade e fascínio; muitos fizeram uma leitura ao mesmo tempo filosófica e literária do Criador em detrimento de uma visão religiosa apenas. Com base no legado de filósofos como Nietzche e de escritores como Dante, categoricamente posso afirmar que além de uma face deveras monástica, existiria também um Deus cujo rosto se divide entre a Filosofia e a Literatura. Ambos, por sinal, com forte conotação crítica, pois que tanto para pensadores, quanto literatos, o ponto de partida é o homem. Por outras palavras: a Bíblia, na possível categoria de um espelhamento epopéico, narra a inconstante relação do homem com as ocorrências (divinas ou não) em que a natureza inteira (Deus?), no seu caráter atemorizante ou piedoso confronta o homem com o desejo vil terreno ou uma aspiração sublime. E o homem peleja para emergir desse mundo de sombras e sustentar-se quem sabe pela fé. E o faz no desacerto. Na mitologia, aos poderes divinos opõe uma força que afronta; cito a rebeldia de Ulisses, herói civilizador que ultraja os deuses e inicia um ciclo demasiado humano de vivência.

Num outro exemplo inquiridor,
O Evangelho segundo Jesus Cristo, de José Saramago, pode ser considerado um dos livros mais polêmicos dos últimos tempos quando a matéria é religião. A recorrência Épica de um pathos sagrado como tema em algumas de suas obras vem a questionar o caráter do que é divino, perfazendo, para tanto, uma espécie de paralelo entre um Deus que não conhecemos e a figura errante do homem, segundo o referido autor “sufocado pelo polegar desse mesmo Deus”. De fato se pode, a partir de uma leitura dos textos sagrados e no âmbito da visão de um escritor ateu, avaliar os principais acontecimentos que compõem o imaginário cristão dos últimos dois mil anos; acabaríamos por averiguar o quanto a figura de Deus estrutura e incita sua obra, em especial no tocante ao Evangelho Segundo Jesus Cristo.

Na linha de uma análise dialógica, mais interessante seria identificar os elementos que possam nos levar ao encontro de um outro tomo dessa mesma questão divinizada e divinizante: na busca pelo divino, acabaríamos por encontrar o Diabo na medida em que tal “Evangelho” é
in nomine hominis. Ora bem, torna-se evidente um ardil relacional criado pelo autor e representativo da figura de um Deus cruel (divinizada) em contraposição às frágeis criaturas humanas (divinizantes). O caráter crítico é incontestável. Neste caso a palavra adquire um tom acentuado de verossimilhança e consagra-se como instrumento de indagação constante a favor de uma verdade antropocêntrica. E a temática da fé, antes de qualquer delimitação, deve ser entendida a partir de um olhar ficcional. A ótica primeira, sendo a da ficção, é justamente a que transforma um contexto Épico em epifania para o leitor atento. E essa constante procura pela fé adquire um viés investigativo também, ao passo que constato pela crítica exposta verdadeiras posições filosóficas e ideológicas acerca de questões como o patriarcalismo, a eterna culpa que passa de pai para filho, a agonia do destino trágico de Jesus, o maniqueísmo e a misoginia divina e, dentre outras indagações, o caráter talvez pouco sombrio da figura do Diabo.

Nesse sentido, o que pode vir a ocorrer é uma desmistificação, uma busca pelo oposto de Deus e daquele que é, por lógica conseqüência, o seu duplo, destituído de qualquer anátema; contrariando o discurso tautológico que norteia o Cristianismo, Saramago, por exemplo, ao criar sua alegoria do Diabo, estabelece para o leitor uma definidora distância (necessária, por sinal), que vai da sincera crítica até a cultura em que ele se insere, o que acaba por permitir uma ampliação de sua visão de mundo ao mesmo tempo em que reintegra seus pensamentos passados e presentes. Essa clara condição é, com bastante lucidez, explicitada em seu texto:

Não faltará já por aí quem esteja protestando que semelhantes miudezas exegéticas em nada contribuem para a inteligência de uma história afinal arquiconhecida, mas ao narrador deste evangelho não parece que seja a mesma coisa, tanto no que toca ao passado como que ao futuro há-de tocar, ser-se anunciado por um anjo do céu ou por um anjo do inferno, as diferenças não são apenas de forma, são de essência, substância e conteúdo, é verdade que quem fez uns anjos fez os outros, mas depois emendou a mão.

Tal essencialidade demiúrgica no tocante ao Diabo despertou-me uma espécie de ímpeto escrutinador, uma razão para se examinar com preocupação detalhada um “conceito” tão difícil de ser elucidado em se tratando do maligno. É nesse ponto que a palavra, ancorada em narrativas Épicas, constrói-se idéia por meio de uma visão relativa da histórica. Por conseguinte, conclui-se que não há melhor maneira de se averiguar as questões mítico-religiosas senão a partir de múltiplos ângulos de visão. Mas chegados aqui, o que entendemos por Diabo advém de qualquer coisa que seja considerada na sociedade como um Mal, a partir das tradições e percepções dessa personificação.

Outras demandas relativas à religiosidade do ser humano podem muito bem ser apuradas a partir de uma (re)leitura do romance
Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. Por uma epopéica estrutura de construção, o leitor mergulha em questões existenciais que reverberam místicas idéias sobre o cosmos e o homem feito partícula deste, sendo que o texto rosiano flui num ritmo de prosa veloz, mesclando de modo quase que inesgotável cenas, sons, imagens, neologismos e personagens que sugerem a existência a partir de uma “terceira margem” que, a exemplo de Riobaldo, suscitaria um grau metafísico de transcendência por sob a carapaça de sofrimentos chamada Vida, bem como a eterna busca do homem pelo reconhecimento de si e do mundo que o cerca. Na esteira de tal discussão, Benedito Nunes (1969, p. 144), no artigo O amor na obra de Guimarães Rosa, salienta que “(...) o problema da existência do demônio e da natureza do Mal, atinge extrema complexidade”; a partir dessa e das anteriores prerrogativas, venho agora a indagar sobre a importância do personagem Riobaldo e seu enfrentamento do Mal, já que este na qualidade de força destrutiva interage tanto na superfície quanto no interior das pessoas. É válido de se conjecturar que, em se tratando do sertão metonímia do mundo, tal mistério adquire uma força questionadora por meio da dialética de Rosa para com o seu público; segue desse modo transformando-se página a página num esforço para a compreensão da existência tanto de Riobaldo quanto de si próprio, visto que, ao criar um personagem:

(...) o autor sempre acrescenta a ele, no plano psicológico, a sua incógnita pessoal, graças à qual procura revelar (...) a interpretação deste mistério; interpretação que elabora com a sua capacidade de clarividência
e com a onisciência do criador, soberanamente exercida.

E essa “clarividência” tornou-se notória em Guimarães Rosa. Ao buscar alguns fundamentos acerca das raízes e reverberações de seu estilo na Literatura, pude identificar na exegese do sertão rosiano exemplos universais de que o homem reiteraria, ao longo de sua história cultural e por intermédio de um sem número de idiossincrasias (cito os credos ideológicos e mítico-religiosos), uma reverberação Épica por meio da palavra e que se comprova, ao longo de diferentes épocas, em fatos de cunho intercambiável. Rosa compreende o haver de explorá-las sempre e com ares de experimento reinventado, neologizando-a feito matéria-palavra; seus processos de polivalência vocabular foram (re)criados num tenaz esforço em prol do jogo Épico que lhe é peculiar. Nesse ínterim, nota-se a familiaridade do autor com os experimentalistas da tradição internacional, como Joyce, por meio dessa convergência de processos; o escritor das veredas integra-se, via experimentalismo, à reinvenção do Épico a partir de sua inusitada explosão verbal, seja no palavrório do jagunço Riobaldo ou no discurso condensado de seu interlocutor. Só assim, aliás, compreendemos que seus blocos de prosa geram uma síntese da cultura humana e requerem um nível exigente de leitores. Mas é precisamente nessa convergência instaurada que se concentra o melhor de sua prosa poética.

Tais pontos de convergência, que denomino “fabularia universal” acabam, logicamente, sofrendo certas modificações em toda e qualquer (re)criação narrativa, seja pela experiência individual, seja pelo ambiente social em que cada escritor se vê inserido. No caso da sintaxe rosiana, segundo Mary L. Daniel:

O princípio elíptico se combina com a liberal filosofia de pontuação de Guimarães Rosa para produzir um dos distintivos do seu estilo – uma “sintaxe telegráfica”. É esta faceta da sua prosa mais do que outra qualquer que faz dele um autor difícil de leitura e desalenta os leitores que não tenham paciência nem a habilidade de encher as lacunas que ele deixa de propósito.

Caracterizada pela construção sintática qual “redundância elíptica”, ratificando-se a partir de um viés filosófico, Riobaldo, na condição peculiar de jagunço letrado, tenta compreender as diversas percepções do Mal enfrentadas no decurso de sua travessia. Já o Diabo, num processo de alegorização, revigora-se nas interrogações suscitadas pela idéia de que o mítico pode vir a combinar, por meio de um acordo, a força dicotômica da natureza numa única vertente que possa levar à luz ou à sombra e estabelecendo, quem sabe, uma espécie de ordem em meio à tamanha desordem. As trocas de chefia dos bandos e as violentas pelejas entre a jagunçada em Grande Sertão: Veredas ilustrariam tal constatação. Surge a possibilidade do pacto... Como afirma Willi Bolle:

Com efeito, é a questão do pacto que fundamenta toda a narração. Atormentado pela culpa, Riobaldo quer saber se de fato ele firmou um pacto com o Diabo, sendo que ele não tem certeza de que o Cujo existe. (...) gostaria de que o doutor da cidade o reconfortasse na idéia de que o Diabo não existe. Ao estabelecer esse diálogo entre o universo arcaico e “atrasado” das crenças do povo sertanejo e a mentalidade esclarecida dos habitantes das grandes cidades, Guimarães Rosa estimula em seus leitores a curiosidade de decifrar o(s) significado(s) do pacto. Sendo o pacto com o Diabo, em termos da história cultural, uma forma mítica popular de codificar questões do poder e da lei, o romance nos transporta para os domínios da história mítica.

Ocorre aí a transmissão da idéia de que o jagunço, ao viver num meio hostil, gradualmente tornar-se-ia também hostil, haja vista a violência no sertão ser uma verdade ameaçadora. No âmago desse Mal, no centro de si mesmo, o sertanejo, ao seu modo, percebe e crê na existência do Diabo. E como já se afirmou, Riobaldo enfrentaria o Mal por meio de suas indagações. O que desperta no jagunço tal comportamento, em parte relaciona-se ao “conceito” de Diabo em seu sentido religioso trazido ao Brasil pelos cristãos europeus, à época do descobrimento, fato que, de lá para cá, acabou por sofrer transmutações. No sertão Épico, local onde crença e superstição entrelaçam-se num mosaico que une a tradição judaico-cristã, a filosofia, e o aspecto mágico, a motivação para o pacto com o Diabo resiste num tom de relativização das verdades estabelecidas. Nessa “chave explicativa”, não se esquivando de uma questão por diversas vezes elencada em estudos anteriores, a concepção metafísica da obra (re)cria um sertão entoado por inúmeras realidades subjetivas: “O sertão é do tamanho do mundo” (por isso mesmo, um infinito misterioso de misteriosas possibilidades). Podemos então compreender um pouco da Épica sertaneja intuída por Rosa na medida em que tudo perpassa à condição metafísica. Inclusive o Diabo. Logo, no universo ficcional de
Grande Sertão: Veredas, se o pacto se concretiza (ou não), tal acontecimento se efetiva dependendo da visão de mundo de cada um:

O senhor não vê? O que não é Deus, é estado do demônio. Deus existe mesmo quando não há. Mas o demônio não precisa de existir para haver – a gente sabendo que ele não existe, aí é que ele toma conta de tudo. O inferno é um sem-fim que nem não se pode ver.

Se “tudo é e não é”, como nos mostra Riobaldo, podemos afirmar que no sertão rosiano a alegoria do Diabo não possui uma só denominação. Ganha corpo um sem-número de designações populares para o “Arrenegado”: Canho, Coisa Ruim, Coxo, Cramulhão, Crespo... Na verdade, o que se pode notar é que o Diabo nunca adquire uma forma definida, o que mais uma vez denota um questionamento sobre a natureza do Mal. Partindo desse princípio, sua existência é colocada em xeque: a crença ingênua no existir de uma entidade que personifique em carne e osso a essência do maléfico acaba por incitar ainda mais a dialética da narrativa, ao passo que Riobaldo provoca incessantemente reflexões em seu interlocutor; todavia, tais cogitações apenas servem para ampliar o caráter polêmico do assunto, bem como relacioná-lo ainda mais com a metafísica, principalmente no que se refere à aproximação feita pelo autor entre o Diabo e o homem. Essa similaridade passa a nortear as inquietudes de Riobaldo no que se refere às dicotomias da existência. A “estória” de Aleixo (bem como a de Pedro Pindó) sinaliza esse revezamento de papéis ao qual o homem sempre se insere mostrando a que veio, ou seja, revestindo-se com as mais diversas máscaras de uma saga mitológica, ora do Bem, ora do Mal:

Grande Sertão: Veredas é texto em que a representação do histórico está clivada, obliquamente dissimulada, na saga mitológica: na estória cíclica, na repetição de uma temporalidade e movimentação formais específicas da região que a narrativa efetua, introduz-se a história, linearização fictícia que transforma e corrói o tempo do mito.

Na figura de Hermógenes, Riobaldo começa a perceber essa fina linha tênue, separadora do Bem e do Mal. Dividido entre o amor e o ódio, parte para as Veredas Mortas a fim de selar o pacto com o Diabo percebendo que somente desse modo poderá vencer Hermógenes e compreender o porquê da neblina que se instaura à sua volta e em seus pensamentos, mistério que o levará, antes do confronto com Hermógenes, para a concretização do pacto; este ocorre simbolizado por um ritual místico segundo reza a tradição folclórica acerca do sobrenatural. Posteriormente ao evento, o que se segue é uma constatação: o Diabo não existe, visto que não apareceu em forma nenhuma; mas Riobaldo acredita que o trato tenha sido realmente selado, pois deste dia em diante perde a capacidade de sonhar e o próprio medo (insegurança?) que, por vezes, o assolava na alma. E “O diabo na rua, no meio do redemunho”, existiria ou não? Neste momento decisivo de ação Épica, tal interrogativa revigora-se. A partir do conflito existencial estabelecido pelo protagonista, a questão, ao que se conclui, não admite uma única resposta:

Então, não sei se vendi? Digo ao senhor: meu medo é esse. Todos não vendem? Digo ao senhor: o diabo não existe, não há, e a ele eu vendi a alma... Meu medo é esse. A quem vendi? Meu medo é este, meu senhor: então a alma, gente vende, só, é sem nenhum comprador....

Concomitante a esse fato, percebe-se a efetivação da idéia de que os opostos Deus e Diabo coabitam a dinâmica do homem. Nesse grau de ambivalência, surge desde o início da narrativa o personagem Diadorim, que também representa a questão de princípios antagônicos (voltados para a sexualidade homem/mulher) conviverem num mesmo ser; essa androginia de opostos – Reinaldo/Maria Deodorina – curiosamente estimula a integração mental e a força do personagem, cuja sedução
“(...) emanava de seu ambíguo modo de ser” (NUNES, 1969, p. 145). Essa aproximação que procuro estabelecer entre a alegoria do Diabo e o homem adquire, com o personagem Diadorim, uma significância ainda maior. Riobaldo (em virtude de seu apreço pelo amigo e respeito à sua vingança pela morte do pai), num misto de amizade e amor, resolve lutar contra o bando de Hermógenes e Ricardão, sendo o primeiro encarado pelo protagonista como a própria encarnação do Mal.

Nesse emaranhado de relações em que a evocação Épica rosiana se enraíza percebo que a alegoria do Diabo se aproxima por demais do próprio Riobaldo. Mesmo na qualidade de jagunço letrado, este possui a consciência de sua incompletude; ao que me parece, é isso que também o faz se encaminhar para uma espécie de questionamento sobre um “lugar de origem” metafísico, na tentativa de transpor os limites da sua ainda “falta-de-ser”, em que um mundo surpreendente, fabuloso e mítico pode se descortinar a partir do alargamento destes horizontes. E o Diabo, fecundo na possibilidade do pacto, o auxiliaria a quedar os parâmetros de sua inferioridade. Ao vender sua alma, transcenderia o seu próprio “Eu”. Por seu turno, Kathrin Rosenfield comenta:

É este estado que leva Riobaldo ao pacto: a intuição do mais absoluto e radical despojamento da transcendência e de uma existência nos limbos do ser pleno, voltado para a vida e os valores humanos. Esta falta-de-ser estará completamente representada na cena do pacto: a encruzilhada que procura Riobaldo é um brejal, confusão magmática de dois riachos, local amórfico no qual ele permanece gelado, paralisado, em estado de larva humana desmunido dos atributos de qualidade humana – sem vontade clara e bem articulada (...).

Chamou-me a atenção toda essa ambigüidade formatada por Rosa, em que a palavra, no seu nascedouro, personificada no discurso de Riobaldo para com o seu interlocutor, aproxima-nos ainda mais de um caráter Épico apreendido em seu narrar, como se fosse possível também o ouvir em sua redenção. Através da pluralidade de seu linguajar se atinge a idéia de pluralidade existencial que sua palavra concebe em meio a todo esse drama ontológico; surgiu-me, assim, uma outra possível justificativa para o Diabo: a de que a idéia do pacto conteria em si mesma, sua própria força.

Segundo acreditam os cristãos, o maléfico se rejubilaria na destruição da verdade, algo que o homem certamente assimilaria por meio da palavra. Já a escrita rosiana, em seu caráter criativo e criador, proporciona a inversão dessa idéia ao passo que tanto o Bem quanto o Mal, tanto Deus quanto o Diabo, participam do processo de construção de cada ser humano. O Mal, o Demo, aquele que “vige dentro do homem”, possuiria uma divina “licença para campear”, pois que o Bem, na figura de Deus, coexiste com o Mal nos interiores do Ser:
“Deus existe, sim, devagarinho, depressa. Ele existe – mas quase só por intermédio da ação das pessoas: de bons e maus. Coisas imensas no mundo. (...) Deus é um gatilho?”. (ROSA, 2001, p. 359). Riobaldo salienta que “Deus é definitivamente; o demo é o contrário Dele”, o que me fez concluir que, agregado a um misticismo sertanejo, o personagem enfatiza o caráter dicotômico de tais alegorias. Em Grande Sertão: Veredas, o Diabo é o “homem humano”, e Deus, como sendo o seu duplo, igualmente participa da travessia de cada um, por vezes de modo duvidoso, por vezes feito “gatilho”, incitando seus filhos de modo traiçoeiro. O Diabo é o Homem. Deus é o homem? A resposta perpetua-se simples e essencial e é na travessia que o homem Riobaldo se conheceu em si mesmo, encontrando-se e se encontrando em suas reminiscências, visto o caráter de infinito e de sagrado em que a Épica metafísica se constitui. E em termos de reflexão, procurei na (re)leitura rosiana do sertão relacionar tudo aquilo que sempre acreditei (ou não?!...) a uma conotação de apelo para com uma vida destituída de dogmas a partir da idéia de intervenção do próprio homem ao passo que instrumento real de sua própria evolução. A face humana de Deus – ao mesmo tempo “cruel, misericordiosa, dupla” – é refletida no aspecto humano do Evangelho segundo Jesus Cristo de Saramago na igual proporção em que se faz notar no percurso da travessia de Riobaldo e em sua busca por si mesmo. Ao que nos parece, divinizando o Diabo em seu romance, Saramago nos aproxima dele; numa possível perspectiva dialógica, Rosa, ao questionar a validade do pacto, indaga: “(...) o demo então era eu mesmo?”.

Reafirmo agora, em tempos de conclusão deste capítulo, que a entrega do leitor atento às referidas obras até aqui comentadas mais uma vez adquire um caráter epifânico. É por meio dessa dialógica e bem estruturada aglutinação de fatos e ficções que a Literatura e a Vida se complementam, uma se referindo à que falta na outra, e ambas, como objeto artístico puro, contribuindo para o nosso contínuo crescimento. E um possível significado que se pode depreender de uma alegoria criada acerca do Diabo transitaria, em uma tessitura narrativa, feito sombra irrefletida de Deus, um paradigma do Bem às avessas do Criador, pois que nos assombros da epopéia humana a idéia do Mal sempre se confirmou por meio de um princípio em que o Bem, sendo o seu duplo, seria incontestável. E o seu oposto? Por onde rasteja sendo que, a bem da verdade, possuiria inúmeras faces? Na verdade, o Novo Testamento prega diversos “conceitos” para o Diabo (anjo e expulso dos céus, chefe supremo de um exército maléfico e destruidor...). Mas acima de qualquer definição mítico-religiosa, o “Cujo” deve ser considerado uma entidade contrária a Cristo, uma vez que somente este salva; por conseguinte, ainda teria o poder do extermínio, estigmatizado que está por uma forte influência do helenismo e do judaísmo, passando inclusive a se perfazer centralmente nos evangelhos como oponente de Deus. Mas uma indagação inesperada me surge. Até que ponto o Criador corrobora, ou melhor, compactua, com as atividades destrutivas do Mal? Uma resposta se revelaria clara, porquanto exista em nossa realidade objetiva como algo que possa ser análogo a um juízo incerto daquilo que seria o Diabo: uma resposta a essa raiz, onde todo Mal é encontrado, como rosianamente concluo, faz-se estigmatizado na figura desmantelada do próprio homem."

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Fonte:
André Carneiro Ramos: “Desce-me ao fundo do peito a terra inteira: A aventura da palavra em Vergílio Ferreira, Guimarães Rosa e Aquilino Ribeiro”. (Dissertação apresentada como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre, ao programa de Pós-Graduação em Letras, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração: Literatura Portuguesa. Orientador: Profº. Drº. José Carlos Barcellos). Rio de Janeiro, 2008.

Nota
:
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As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

Disponível digitalmente no site: Domínio Público

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