São Bernardo



Em São Bernardo, a dor de Paulo Honório é deflagrada no movimento de permanente torção da narrativa, a partir da convulsão integradora entre o exercício de escrever um livro e, ao mesmo tempo, falar de si mesmo, um homem rude e mesquinho, cujo remorso pelo suicídio da esposa, Madalena, é justamente o que lhe impõe essa ânsia de realizar uma escritura confessional, que se constrói, pois, num ritmo vertiginoso em busca da totalidade: “Faz dois anos que Madalena morreu, dois anos difíceis. E quando os amigos deixaram de vir discutir política, isto se tornou insuportável. Foi aí que me surgiu a idéia esquisita de, com pessoas mais entendidas do que eu, compor esta história (RAMOS, 2003, p. 215.).

Ao “atar as duas pontas da vida”, Paulo Honório se desfaz em pedaços, uma vez que narrador e protagonista passam a ter, diante dos nossos olhos, personalidades diferenciadas: aquele, distanciado dos fatos, derrotado pela emoção da perda e pela desagregação do mundo que o cerca, é capaz de uma autocrítica impiedosa; esse, deslocado para um passado longínquo, é um fazendeiro frio e calculista, que nunca se permite despertar por qualquer tipo de afeto:

Graciliano Ramos envereda por um caminho trágico. Mais do que traduzir os meandros psicológicos de um indivíduo infeliz, recorre à mistura de clima de pesadelo e realidade prosaica para fazer-nos compreender a profundidade da tragédia que está sendo narrada, aproximando-se novamente dos preceitos básicos do Expressionismo.

De um lado, obcecado pelo “diabo do ciúme”, Paulo Honório vai ficando “quase maluco”. Ele não consegue mais dormir, ouvindo ruídos, “se roendo por dentro”, aflito, imaginando que a esposa o trai. De outro, Madalena, cada vez mais magra e pálida, chorando “como uma fonte”, perturbada com as desconfianças e com a crueldade do marido. A relação entre os dois torna-se extremamente conflituosa, restando a alternativa do aniquilamento.

Fui indo sempre de mal a pior. Tive a impressão de que me achava doente, muito doente. Fastio, inquietação constante e raiva. Madalena, Padilha, d. Glória, que trempe! O meu desejo era pegar Madalena e dar-lhe pancada até no céu da boca. Pancada em d. Glória também, que tinha gasto anos trabalhando como cavalo de matuto para criar aquela cobrinha
(IBID, p. 163.).

É a demonização da figura feminina. Madalena representa a imagem da nova mulher que surge na plena vigência do Expressionismo; politizada, instruída, bem falante, preocupada em encontrar seu próprio espaço no mundo e, por isso mesmo, perigosa e destruidora.

Não gosto de mulheres sabidas. Chamam-se intelectuais e são horríveis. Tenho visto algumas que recitam versos no teatro, fazem conferências e conduzem um marido ou coisa que o valha. Falam bonito no palco, mas intimamente, com as cortinas cerradas, dizem:
- Me auxilia, meu bem. (IBID, p. 158-159.).

Para Paulo Honório, “mulher é um bicho esquisito, difícil de governar”. De fato: Madalena não hesita em competir com ele em pé de igualdade nem tampouco a rebelar-se contra a submissão e a passividade:

No dia seguinte encontrei Madalena escrevendo. Avizinhei-me nas pontas dos pés e li o endereço de Azevedo Gondim.
- Faz favor de mostrar isso?
Madalena agarrou uma folha que ainda não havia sido dobrada.
- Não tem que ver. Só interessa a mim.
- Perfeitamente. Mas é bom mostrar. Faz favor?
- Já não lhe disse que só interessa a mim? Que arrelia!
- Mostra a carta, insisti segurando-a pelos ombros.
Madalena defendia-se, ora levantando o papel com os braços estirados, ora escondendo-o atrás das costas:
- Vá para o inferno, trate da sua vida.
Aquela resistência enfureceu-me:
- Deixe-me ver a carta, galinha.
Madalena desprendeu-se e entrou a correr pelo quarto, gritando: - Canalha1 (RAMOS, p. 165 - 166).

Esse tema sobre o impasse nas relações homem-mulher, alinhado com o que há de mais radical em termos de propostas estéticas expressionistas, em São Bernardo encontra no suicídio de Madalena, pois, o triunfo do niilismo total.

Pode-se dizer que, a partir daí, se inicia uma frenética experimentação de sensações por parte do protagonista, que passa a se questionar agudamente sobre o sentido e a validade de sua própria existência:

Sou um homem arrasado. Doença? Não. Gozo perfeita saúde. Quando o Costa Brito, por causa de duzentos mil-réis que me queria abafar, vomitou os dois artigos, chamou-me doente, aludindo a crimes que me imputam. O Brito da Gazeta era um besta. Até hoje, graças a Deus, nunca um médico me entrou em casa. Não tenho doença nenhuma.
O que estou é velho. Cinqüenta anos pelo S. Pedro. Cinqüenta anos perdidos, cinqüenta anos gastos sem objetivo, a maltratar-me e a maltratar os outros. O resultado é que endureci, calejei, e não é um arranhão que penetra esta casca espessa e vem ferir cá dentro a sensibilidade embotada. Cinqüenta anos! Quantas horas inúteis! Consumir-se uma pessoa a vida inteira sem saber para quê! Comer e dormir como um porco! Como um porco! Levantar-se cedo todas as manhãs e sair correndo, procurando comida! E depois guardar comida para os filhos, para os netos, para muitas gerações. Que estupidez! Que porcaria! Não é bom vir o diabo e levar tudo? (RAMOS, p. 216.).

O ambiente da fazenda torna-se decrépito e fantasmagórico, concretizando espacialmente o transtornado processo mental de Paulo Honório:

Sol, chuva, noites de insônia, cálculos, combinações, violências, perigos – e nem sequer me resta a ilusão de ter realizado obra proveitosa. O jardim, a horta, o pomar abandonados; os marrecos-de-pequim mortos; o algodão, a mamona – secando. E as cercas dos vizinhos, inimigos ferozes, avançam.
Está visto que, cessando a crise, a propriedade poderia se reconstituir e voltar a ser o que era. A gente do eito se esfalfaria de sol a sol, alimentada com farinha de mandioca e barbatanas de bacalhau; caminhões rodariam novamente, conduzindo mercadorias para a estrada de ferro; a fazenda se encheria outra vez de movimento e rumor.
Mas para quê? Para quê? Não me dirão? Nesse movimento e nesse rumor haveria muito choro e haveria muita praga. As criancinhas, nos casebres úmidos e frios, inchariam roídas pelas verminoses. E Madalena não estaria aqui para mandar-lhes remédio e leite. Os homens e as mulheres seriam animais tristes. (IBID, p. 217.).

Submetido, assim, a outra ótica, o protagonista funde ao seu drama pessoal uma visada esclarecedora da ética pequeno-burguesa, pautada na competição e na religiosidade, confessando que a superioridade que o envaidece é bem mesquinha, ou seja, o fato de ter se colocado acima da sua classe, transformando-se em um explorador feroz, não fez dele uma pessoa melhor nem mais feliz; pelo contrário, “hoje não canto nem rio’. Se me vejo ao espelho, a dureza da boca e a dureza dos olhos me descontentam”, pondera, depois de reconhecer que se desnorteou numa errada.

Trata-se de uma nova forma de ascese: a imagem final é a de um sujeito que evoluiu espiritualmente, mas essa evolução não chega a alterar o rumo dos acontecimentos, isto é, não soluções habituais como nos romances realistas: ”Penso em Madalena com insistência. Se fosse possível recomeçarmos... Para que enganar-me? Se fosse possível recomeçarmos, aconteceria exatamente o que aconteceu. Não consigo modificar-me, é o que mais me aflige” (IBID, p. 270.).

Nesse sentido, Paulo Honório, embora seja um “novo homem”, em virtude dessa “revolução do espírito”, longe de ter alcançado o equilíbrio, permanece um sujeito fraturado e incompleto, figura solitária, cuja identidade, construída paulatinamente a partir do foco radical no próprio eu, expõe, justamente na passagem dos contrários, a finitude escandalosa e a fragilidade do ser humano em meio ao embate de forças arquetípicas que o aprisionam: “Se houvesse continuado a arear o tacho de cobre da velha Margarida, eu e ela teríamos uma existência quieta. Falaríamos pouco, pensaríamos pouco, e à noite, na esteira, depois do café com rapadura, rezaríamos rezas africanas, na graça de Deus” (RAMOS, p. 218), lamenta-se.

Associados a essa imensa experiência da solidão, alguns elementos exteriores são recorrentes no texto e aparecem, à noite, como desencadeadores do processo narrativo: as corujas, as laranjeiras, os sapos, os grilos, o vento, funcionando, pois, como pressupostos estilísticos necessários à distorção subjetiva do objetivo. Em outras palavras, tais elementos da natureza acentuam a distância entre a realidade e o delírio (auditivo e visual), exprimindo com clareza as confusões entre o passado e o presente, o sonhado e o real, as quais, a partir do capítulo XIX, se tornam cada vez mais freqüentes:

Procuro recordar o que dizíamos. Impossível. As minhas palavras eram apenas palavras, reprodução imperfeita de fatos exteriores, e as dela tinham alguma coisa que não consigo exprimir. Para senti-las melhor, eu apagava as luzes, deixava que a sombra nos envolvesse até ficarmos dois vultos indistintos na escuridão.
fora os sapos arrengavam, o vento gemia, as árvores do pomar tornavam-se massas negras.
(...).
O tique-taque do relógio diminui, os grilos começam a cantar. E Madalena surge do lado de lá da mesa. Digo baixinho;
- Madalena!
A voz dela me chega aos ouvidos. Não, não é aos ouvidos. Também já não vejo com os olhos.
Estou encostado à mesa, as mãos cruzadas. Os objetos fundiram-se, e não enxergo sequer a toalha branca.
- Madalena...
A voz de Madalena continua a acariciar-me. Que diz ela? (...).
A toalha reaparece, mas não sei se é esta toalha sobre a que tenho as mãos cruzadas ou a que estava aqui há cinco anos.
Rumor do vento, dos sapos, dos grilos. A porta do escritório se abre de manso, os passos de seu Ribeiro afastam-se. Uma coruja pia na torre da igreja. Terá realmente piado a coruja? Será a mesma que piava dois anos? Talvez seja até o mesmo pio daquele tempo (RAMOS, p. 118 119.).

Interessante observar o apagamento corporal do protagonista, sentado à mesa, os impulsos retidos na ação sincopada, a energia comprimida na imobilidade, a síntese expressiva, numa espécie de transe extático.

Interessante também, nessa estranha mescla entre realidade e fantasia, é a surpreendente alternância entre os tempos verbais: “Lá fora os sapos arrengavam (...). O tique-taque do relógio diminui, (...)”, a qual contribui para caracterizar essa imagem ideal do homem expressionista, dividido entre os extremos. A redução física, bem como os ruídos exteriores e a quebra de luminosidade, aliados à concentração e intensidade da cena, absorvem o leitor numa imagem visual dominante, traduzindo estrategicamente a fuga do realismo. O resultado é o repositório de significações simbólicas que acabam por revelar verdades essenciais sobre a condição humana.

A noite representa o atual estado de “loucura” de Paulo Honório, que assim consegue perceber coisas que antes, quando “lúcido” (orientado pela razão), não conseguia. A coruja, símbolo dos adivinhos, costumeiramente associada à morte ou ao sacrifício, aparece na obra cumprindo bem esse papel de anunciar uma tragédia. A audição é anterior à visão. Desconfiado de que algo muito ruim está por acontecer, Paulo Honório ouve o pio dessas “aves amaldiçoadas”, mas não pode entender o seu significado, por isso mesmo quer exterminá-las (como se as exterminando pudesse mudar o destino inevitável). Entretanto, depois do suicídio de Madalena, é justamente a presença da coruja, agora conotando a possibilidade do conhecimento, que se torna essencial no ato criativo a que o protagonista se vê impelido.

Do mesmo modo, o som do vento (mensageiro divino), dos sapos (morte e renovação) e dos grilos (promessa de felicidade) funciona nesse sentido de presságio e, também, de pressão psicológica para o relato (demanda interna latente). Paulo Honório, num monólogo que envolve as personagens num diálogo de surdos, frenético e fragmentado na distorção da realidade, não se omite de expor os seus conflitos e acaba dramatizando o próprio processo temporal da percepção:

Há um grande silêncio. Estamos em julho. O nordeste não sopra e os sapos dormem. Quanto às corujas, Marciano subiu ao forro da igreja e acabou com elas a pau. E foram tapados os buracos de grilos.
Repito que tudo isso continua a azucrinar-me.
O que não percebo é o tique-taque do relógio. Que horas são? Não posso ver o mostrador assim às escuras. Quando me sentei aqui, ouviam-se as pancadas do pêndulo, ouviam-se muito. Seria conveniente dar corda ao relógio, mas não consigo mexer-me. (RAMOS, p. 120.).

Voltando-se para dentro de si, Paulo Honório “abole”, portanto, o tempo físico. Petrificado, ele agora é quase inumano. O homem transforma-se aos poucos num monstro: as mãos enormes, a boca enorme, o nariz enorme, as sobrancelhas cerradas, a barba por fazer... Pois essa sua imagem grotesca revela a crueldade e a incongruência do mundo moderno. De nada lhe adianta o poder (do capital) se o seu círculo social é restrito, se nem ao menos tem laços de afeto com o próprio filho. Com a morte de Madalena, até mesmo os “amigos mais íntimos” se afastaram: “Bichos. As criaturas que me serviram durante anos eram bichos. Havia bichos domésticos, como o Padilha, bichos do mato, como Casimiro Lopes, e muitos bichos para o serviço do campo, bois mansos” (IBID, p. 217), declara Paulo Honório.

É evidente que, por meio desse rigoroso domínio corporal do protagonista, com as mãos cruzadas sobre a mesa e a “máscara” moldada no exagero dos traços fisionômicos, lembramos de imediato O grito expressionista de Edward Munch (ver comentário na página 44 desta tese). O cenário é deslocado pela violência das emoções de Paulo Honório. Longe de ser passivo, interpreta a ação do drama:

Fecho os olhos, agito a cabeça para repelir a visão que me exibe essas deformidades monstruosas.
A vela está quase a extinguir-se.
Julgo que delirei e sonhei com atoleiros, rios cheios e uma figura de lobisomem.
fora uma treva dos diabos, um grande silêncio. Entretanto o luar entra por uma janela fechada e o nordeste furioso espalha folhas secas no chão.
É horrível! Se aparecesse alguém... Estão todos dormindo.
Se ao menos a criança chorasse... Nem ao menos tenho amizade ao meu filho. Que miséria!
Casimiro Lopes está dormindo. Marciano está dormindo. Patifes! E eu vou ficar aqui, às escuras, até não sei que hora, até que, morto de fadiga, encoste a cabeça á mesa e descanse uns minutos. (IBID, p. 221.).

Assim como Madalena, as demais personagens que costumavam freqüentar São Bernardo tornam-se espectros em meio ao monólogo impetuoso e explosivo de Paulo Honório, contribuindo para criar um efeito de aparição absurda e nos precipitar ainda mais no turbilhão profundo da alma desse narrador-protagonista, cujo desejo secreto é o de vir-a-ser-humano:

Penso que chamei Casimiro Lopes. A cabeça dele, com chapéu de couro de sertanejo, assoma de quando em quando à janela, mas ignoro se a visão que me dá é atual ou remota.
Agitam-se em mim sentimentos inconciliáveis: encolerizo-me e enterneço- me; bato na mesa e tenho vontade chorar.
Aparentemente estou sossegado: as mãos continuam cruzadas sobre a toalha e os dedos parecem de pedra. Entretanto ameaço Madalena com o punho. Esquisito. Distingo no ramerrão da fazenda as mais insignificantes minudências, Maria das Dores, na cozinha, dá lições ao papagaio. Tubarão rosna acolá no jardim. O gado muge no estábulo.
O salão fica longe: para irmos temos de atravessar um corredor comprido. Apesar disso a palestra de seu Ribeiro e d. Glória é bastante clara. A dificuldade seria reproduzir o que eles dizem. É preciso admitir que estão conversando sem palavras.
Padilha assobia no alpendre. Onde andará Padilha? (RAMOS, p. 119-120.).

Essa idéia nuclear de mundo visto através da alma de um único indivíduo, com personagens movimentando-se em zonas de sombra ao redor do protagonista, coloca mais uma vez em suspeita a impressão de realidade que São Bernardo estranhamente provoca, afinal, o espaço restrito da ação é uma propriedade rural bem característica do sertão nordestino (uma fazenda voltada para a prática da pecuária e da agricultura), com igreja, estábulo, curral, serraria, horta, pomares, campos extensos para o gado pastar e uma casa de alvenaria com alpendre para receber os visitantes. Mas o que faz a diferença aí em relação ao estilo realista é o tratamento dado a esse cenário, cujo ambiente é a um tempo convencional e carregado de sugestões simbólicas:

Uma tarde subi à torre da igreja e fui ver Marciano procurar corujas (...). de cima escutava o barulho que Marciano, invisível, fazia. E, pelas quatro janelinhas abertas aos quatro cantos do céu, contemplava a paisagem. Por uma delas via embaixo um pedaço do escritório, uma banca e, sentada à banca, minha mulher escrevendo. Com um ligeiro desvio de olhos, afastava a cena familiar e corriqueira, divisava o oitão da casa, portas, janelas, a cama de d. Glória, um canto da sala de jantar. Levantava a cabeça e o horizonte compunha-se de telhas, argamassa, lambrequins. Mais para cima, campos, serras, nuvens.
O capim-gordura tinha virado grama, e os bois que pastavam nele eram como brinquedos de celulóide. O algodoal galgava colinas, descia, tornava a mostrar-se mais longe, desbotado. Numa clareira da mata escura, quase negra, desmaiavam na sombra figurinhas de lenhadores.
Uma coruja gritava. E Marciano surgia de esconderijos cheios de treva, o pixaim branco de teias de aranha:
- Mais uma. É um corujão da peste, seu Paulo.
Eu fungava:
- Em que estará pensando aquela burra? Escrevendo. Que estupidez! (RAMOS, p. 183-184.).

A casa está no centro do mundo, ela é a imagem do universo. Próxima de um templo, exprime ainda com maior precisão esse simbolismo cósmico. Na torre da igreja, Paulo Honório parece buscar uma saída para a sua condição existencial. Ali, aparentemente, ele divisa a paisagem através de “quatro janelinhas abertas aos quatro cantos do céu”. Da mesma natureza do olho, a janela simboliza abertura para o ar e para a luz. Assim, o que importa nesta cena, pois, não é o que Paulo Honório enxerga, e sim o que ele consegue ver com a alma: o seu desejo orgulhoso e tirânico de dominação.

Mas enquanto se coloca assim, no topo do mundo, distante dele, Madalena escreve. A escrita representa um poder divino. Nesse sentido, o que mais dói no protagonista é saber que, por mais que edifique, nunca se aproximará desse poder, jamais subirá à altura de Deus, o que significa que o seu poder é limitado (e esse limite é simbolizado pelas quatro janelinhas: o quatro simboliza o sólido, o tangível, o sensível, enfim, o mundo material).

Entretanto, a despeito de todo o seu orgulho, Paulo Honório, a partir desse momento, “abre as portas para o aperfeiçoamento místico”, ou, em outros termos, assume uma atitude humana, que é a de buscar a perfeição (ainda que essa perfeição não possa ser atingida). Há inconscientemente uma vontade de transcendência. Pensamento, sentimento, intuição e sensação, as quatro funções da consciência estão aí representadas (totalidade dos processos psíquicos). Tanto que, neste mesmo capítulo (XXXI), depois de descobrir no chão uma folha da carta que Madalena estava escrevendo, Paulo Honório, cheio de raiva, exige da mulher uma explicação, mas, à medida que ela se mantém tranqüila nas suas respostas, essa raiva, já transformada em angústia, vai se abrandando aos poucos, a ponto de dar lugar ao arrependimento. Quando Madalena, então, se despede dele na sacristia, Paulo Honório sente que aquele ciúme ainda causaria infelicidades sem remédio: “Por que não acompanhei a pobrezinha? Nem sei. Porque guardava um resto de dignidade besta. Porque ela não me convidou. Porque me invadiu uma grande preguiça” (RAMOS, p. 192).

Não parece ser por acaso que esse arrependimento se dá numa sacristia, local onde são guardados os paramentos de culto. É ali, no chão, na mesma altura da esposa, que Paulo Honório inicia a sua referida evolução espiritual. Ali, diante do oratório, “cai num sono embrulhado e penoso”. Deus criou os sonhos para indicar um caminho aos homens. O caminho de Paulo Honório é o de “rios cheios e atoleiros”, isto é, o curso da sua vida, dali em diante, começa a sofrer uma mutação. A premonição da morte de Madalena o faz renascer. É como se ele, “um homem rude e mesquinho”, ressurgisse de uma lama (água contaminada, corrompida) que, através de seu simbolismo ético, o moldou, durante cinqüenta anos, como um ser moralmente inferior:

Quando dei acordo de mim, a vela estava apagada e o luar, que eu não tinha visto nascer, entrava pela janela. A porta continuava a ranger, o nordeste atirava para dentro da sacristia folhas secas, que farfalhavam no chão de ladrilhos brancos e pretos. O relógio tinha parado, mas julgo que dormi horas. Galos cantaram, a lua deitou-se, o vento se cansou de gritar à toa e a luz da madrugada veio brincar com as imagens do oratório
. (IBID, p.193.).

“O luar entrava pela janela”, ou seja, houve uma renovação. Paulo Honório intuitivamente percebe uma nova modalidade de existência. Como um bêbado, que acorda sem de nada se lembrar, ele está modificado. Madalena, assim como apareceu na sua vida, se retirou para que ele pudesse seguir outro itinerário. “O vento cansou de gritar à toa”, pois a violência e a cegueira de Paulo Honorário foram embora. Agora, embora a vela esteja apagada, “a luz da madrugada vem brincar com as imagens do oratório”, pois um evento importante está por acontecer. Tal conhecimento imediato opõe-se à luz lunar que, por ser refletida, representa o conhecimento indireto (intuitivo, portanto, aproximando o simbolismo da lua ao da coruja).

Se, por um lado, Paulo Honório ficou com o corpo todo doído por ter dormido sentado na sacristia, por outro, a sua disposição para a vida passa a ser outra: “Desci ao açude. Derreado, as cadeiras doendo. Que noite! Despi-me entre as bananeiras, meti-me na água, mergulhei e nadei” (RAMOS, p.193.). Pois mergulhar nas águas significa uma morte simbólica. As águas trazem vida, pureza, tanto no plano espiritual quanto no corporal. É esse imenso reservatório de energias que faz com que ele tenha forças para suportar a perda de Madalena, reconhecendo, finalmente, que “para Deus nada é impossível”, isto é, que só Deus tem poder ilimitado.

Com o suicídio de Madalena, então, a narrativa uma guinada. Ciente de que foram as suas próprias escolhas que o deformaram enquanto ser humano, por terem sido todas voltadas apenas para a ascensão material, Paulo Honório se fecha dentro de casa e passa a viver um inferno existencial. Tudo o que construiu deixa de ter valor e, sem que ele se importe, começa a ruir ao seu redor. Agora a propriedade assume tanto o sentido de refúgio temporário quanto o de identificação com o próprio corpo e com o ser interior que passa por uma fase estacionária do desenvolvimento psíquico: “Vivia agora a passear na sala, as mãos nos bolsos, o cachimbo apagado na boca. Ia ao escritório, olhava os livros com tédio, saía, atravessava os corredores, percorria os quartos, voltava às caminhadas na sala” (IBID, p.198.).

Podemos depreender desse passeio pelo interior da moradia ainda outras simbologias: a de caverna e a do labirinto, as quais, na verdade, se associam, pois ambas são figurações de provas discriminatórias, de iniciações anteriores ao encaminhamento na direção do centro escondido (a transformação do eu). A primeira nos aproxima da idéia de Platão, em A República (livro VII, 514, ab), de lugar de ignorância, de sofrimento e de punição; a segunda, do mito do Minotauro, monstro de corpo de homem e cabeça de touro para qual o rei Minos mandou construir o labirinto, onde o prendeu. Paulo Honório se sente um monstro, e essa monstruosidade simboliza a sua culpa, o seu erro, recalcados e ocultos no inconsciente.

A casa, assim, sombria, metaforizando o complexo processo mental do protagonista, forma dramática à jornada solitária desse indivíduo que, completamente amargurado, rejeita as relações inter-pessoais e trancafia-se dentro de si, passando a viver num mundo alienante e estagnado:

Bocejava. Cada bocejo de quebrar queixo. Vida estúpida1É certo que havia o pequeno, mas eu não gostava dele. Tão franzino, tão amarelo!
Se melhorar, entrego-lhe a serraria. Se crescer assim bambo, meto-o no estudo para doutor.
Lá vinham os projetos.
- Diabo leve os projetos.
O mundo que me cercava ia-se tornando um horrível estrupício. E o outro, o grande, era uma balbúrdia, uma confusão dos demônios, um estrupício muito maior. (RAMOS, p. 206.).

A sala de jantar é o espaço preponderante da ação subjetiva. Dali Paulo Honório parte para percorrer os caminhos do labirinto; para ali ele retorna e permanece “acorrentado à mesa”, tentando escrever o seu livro de memórias, sob a luz de uma vela, a única que lhe chega como um “sol invisível” a indicar-lhe o trajeto que sua alma deve seguir a fim de encontrar o bem e a verdade transcendental. Lá fora, as laranjeiras, indistintas nas trevas, se movimentam no pomar, como “massas negras”, a própria imagem das coisas fugidias, irreais e mutantes.

Nada parece mais louco do que Paulo Honório, um homem habitualmente tão contrário aos desregramentos da imaginação, sentado, escrevendo, acordando lembranças. Como um iniciado, ele está fora dos limites da razão, fora da sociedade. O louco, segundo a simbologia das cartas de tarô, quer dizer o limite da palavra, o lado de lá da soma que não é outra coisa senão o vazio, a presença superada, que se transforma em ausência. Ele não é o nada, e sim a totalidade humana e material, da qual ele se desligou para avançar mais a frente.

Outra vez a escrita reforça o seu símbolo de manifestação divina. Ao escrever, Paulo Honório expurga sua culpa e se aproxima de Deus. Trata-se de um esforço indireto (e perigoso) de se reapropriar simbolicamente da presença de Madalena:

Quando os grilos cantam, sento-me aqui à mesa da sala de jantar, bebo café, acendo
o cachimbo. Às vezes as idéias não vêm, ou vêm muito numerosas e a folha permanece meio escrita, como na véspera. Releio algumas linhas, que me desagradam. Não vale a pena tentar corrigi-las. Afasto o papel.
Emoções indefiníveis me agitam inquietação terrível, desejo doido de voltar, tagarelar novamente com Madalena, como fazíamos todos os dias, a esta hora. Saudade? Não, não é isto: é desespero, raiva, um peso enorme no coração. (IBID, p117-118.)

Por meio de todos esses recursos simbólicos, Graciliano Ramos encontra uma equivalência física entre o cenário e a tensão explosiva do protagonista, que representa, corporalmente, ora o desejo desmedido do poder, através de gestos violentos, às vezes incompletos; ora o arrependimento desse desejo que o levou à deformidade moral: “Se Madalena me via assim, com certeza me achava extraordinariamente feio” (RAMOS, p. 221.).

Seja com for, São Bernardo é um exemplo expressivo da influência de Nietzsche, não só pelo tom trágico da obra, mas também pela própria estrutura da narrativa, que, devido ao fluxo interrompido de ações (as ações são separadas por cortes bruscos entre as cenas), se configura como uma composição musical sinfônica. Cada capítulo é um episódio diferente, relatado de acordo com os insites de consciência do narrador-protagonista. Esse procedimento garante, a despeito da repetição de um leitmotiv, diferentes ângulos da personalidade de Paulo Honório, a expressão plena da sua identidade essencial, sem requerer, no entanto, uma continuidade naturalista.

O primeiro e o último capítulo “se tocam” em termos de ponto de origem. Fora isso, ainda que exista certa linearidade temporal (seqüência de fatos), à medida que o enredo se desenvolve, cria-se um vai-e-vem de reflexões existenciais, concentradas nos diálogos de tonalidade operística entre Paulo Honório e Madalena, e uma descontinuidade dramática que intensificam a beleza e o caráter absurdo do texto.

Paulo Honório se despersonaliza, tornando-se também protagonista de uma crise espiritual e metafísica que abala todo o mundo moderno. Tal despersonalização expressa na destruição paulatina do corpo da personagem, imobilizado numa cadeira (processo de apagamento da fisicalidade viva), se acentua no final, quando Paulo Honório fica reduzido a sobrancelhas, nariz, boca e dedos, lembrando os personagens de “Fim de Jogo” (Endgame), de Samuel Beckett. “O fim está no princípio e, no entanto, prosseguimos”, são palavras de Hamm, o patriarca, meio Hamlet, impossibilitado de ver e de se levantar, que comanda o patético e trágico universo da peça e simboliza, segundo Beckett, um mau jogador neste sórdido jogo existencial.

Mas essa despersonalização é levada ao paroxismo em Angústia, a obra de Graciliano Ramos que, indubitavelmente, mais reatualiza o legado expressionista e, por isso mesmo, merece um capítulo à parte."

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Fonte:
Luciana dos Santos Carvalho: “GRACILIANO RAMOS: A DOR E A NÁUSEA”. (Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Doutor, pelo Programa de Pós Graduação em Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Orientadora: Jane Fraga Tutikian). Porto Alegre/RS, 2009.

Nota
:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

Disponível digitalmente no site: Domínio Público

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