Tutaméia: da ruptura de paradigmas



POÉTICA ROSIANA: ESTÓRIAS ÀS AVESSAS

Tutaméia
: da ruptura de paradigmas
(...) o não-senso, crê-se, reflete por um triz a coerência do mistério geral, que nos envolve e cria. A vida também é para ser lida. Não literalmente, mas em seu supra-senso. João Guimarães Rosa

Tutaméia (Terceiras Estórias), de 1967, é o famoso livro de Rosa publicado apenas alguns meses antes da morte do autor e que, desde então, tem suscitado interesse nas pesquisas literárias por várias características que o tornam peculiar. No aspecto formal, essa peculiaridade apóia-se, principalmente na sinteticidade de seus contos e no uso de uma linguagem plurissignificativa fazendo com que as narrativas possuam desvãos linguísticos e operem como indicadores de leques de interpretações. Relativamente ao conteúdo, há uma tendência para a inversão de fórmulas consagradas, como se fossem “estórias às avessas” das conhecidas, das que já nos são familiares, fazendo surgir novas criações.

Talvez por essa última característica, em História Concisa da Literatura, Alfredo Bosi chama Guimarães Rosa de “artista-demiurgo” (1995, p. 484), ou seja, na concepção dos filósofos platônicos, o nome dado ao criador dos homens. É interessante notar que, de uma forma ou de outra, o que sobressai na escritura rosiana (como afirma a maioria de seus estudiosos) é a sua faculdade de subverter a ordem comum das coisas e criar outras, novas e inesperadas.

Todo pesquisador que lance um olhar pelos estudos já efetivados, logo se habitua a termos como “alquimia”, “transmutação”, “transfiguração”, “transcendência”, isto é, termos que implicam em alguma espécie de
criação, de transformação, de mudança de um estado para outro. E, num certo paralelo ao termo usado em As Formas do Falso, de Walnice Nogueira Galvão, no qual a autora percebe em Grande Sertão: veredas um padrão dual recorrente na estrutura narrativa de coisa dentro da outra” (p.13) pode-se dizer que o autor está sempre transformando uma coisa em outra coisa.

Chamado por Antonio Candido de “O Homem dos Avessos” na obra
Tese e Antítese, também Vera Novis, no artigo “Mínima Mímica”, afirma: “[...] Guimarães Rosa sugere a inversão, o “avesso” como um “outro modo” de acesso ao conhecimento.” (NOVIS, 1989, p.70)

Em
Tutaméia (Terceiras Estórias) essa característica começa a manifestar-se pela própria obra em si. O lançamento do volume causou surpresa pelo inusitado do título, afinal, se o volume de contos anterior tinha sido Primeiras Estórias, obviamente que se esperavam as Segundas Estórias.

Paulo Rónai, provavelmente, um dos últimos críticos a conversar com Rosa sobre o livro
, narra em artigo de jornal esse diálogo e a expectativa do escritor mineiro a respeito de como seria recebido pela crítica o seu último trabalho. Conforme conta o autor, “Rosa, para quem escrever tinha tanto de brincar quanto de rezar, antegozava-lhes a perplexidade encontrando prazer em aumenta-la” (ROSA, 1979, p.194). Com Tutaméia, quis submeter os críticos a uma verdadeira “corrida de obstáculos” (ROSA, 1979, p.194).

Rónai destaca a necessidade do livro “a exigir leitura e reflexão” (ROSA, 1979, p.193). De início intrigado com o título da coletânea, logo abandona o sentido de “ninharia” do vocábulo tutaemeia. E, confia no que lhe havia sido segredado por Rosa sobre o livro: “surgido em seu espírito como um todo perfeito não obstante o que os contos necessariamente tivessem de fragmentário” (ROSA, 1979, p. 194)

Logo mais, o elemento enigmático do título é questionado: por que
Terceiras Estórias? Nesse ponto, reproduz as palavras esquivas de Rosa que brinca com várias conjecturas, mas, não fornece resposta alguma:

─Uns dizem: porque escritas depois de um grupo de outras não incluídas em
Primeiras estórias. Outros dizem: porque o autor, supersticioso, quis criar para si a obrigação e a possibilidade de publicar mais de um volume de contos, que seriam então as Segundas estórias.
─E que diz o autor?
─O autor não diz nada (...) (ROSA, 1979, 194).

Porém, talvez a resposta ao enigma não seja tão obscura assim. Observando-se o volume de contos, percebe-se que na verdade são dois livros completamente diferentes e não apenas um. O primeiro intitula-se
Tutaméia e seu subtítulo, entre parênteses, é Terceiras Estórias. Este volume possui quarenta contos e quatro prefácios entremeados entre eles, todas as unidades em ordem alfabética. A epígrafe, como orientação de leitura, é um fragmento de Schopenhauer: “Daí, pois, como se disse, exigir a primeira leitura paciência, fundada em certeza de que, na segunda, muita coisa, ou tudo, se entenderá sob luz inteiramente outra.”

Ao final do volume, uma curiosa página, em cujo topo pode-se ler:
Terceiras Estórias e como subtítulo, entre parênteses, Tutaméia. A epígrafe é novamente de Schopenhauer e contém outra orientação de leitura: “Já a construção, orgânica e não emendada, do conjunto, terá feito necessário por vezes ler-se duas vezes a mesma passagem.”


Desta feita a posição dos textos é completamente diferente: os quatro prefácios estão apartados do conjunto dos contos e, em um só bloco de textos, antecedem a leitura.

Contrariamente a regra matemática que diz que a ordem não altera os fatores, sabe-se que a linguagem, plástica e fluida, pode alterar-se completamente devido a simples rearranjos em seus termos. Por tal motivo é que a inversão dos signos na titulação da obra, automaticamente muda todo o conjunto e faz improvável que
Tutaméia (Terceiras Estórias) seja igual a Terceiras Estórias (Tutaméia).

Desse modo singular, lúdico e inventivo, o autor lança simultaneamente as
Segundas e Terceiras Estórias e desafia o leitor para que as encontre. Pode-se dizer, então, que há dois significados diferentes em um grupo de mesmos significantes, dependendo apenas da ordenação dos textos e da perspectiva pela qual se leia a obra.

Rosa levou a todos os recantos de sua obra, em todos os níveis possíveis essa capacidade que privilegia o contrário, o diferente, o inverso. Assim é que sua “rearrumação” inicia-se nos aspectos formais de
Tutaméia, desde titulação, o inusitado de quatro prefácios, a ordem dos contos, passando pelas inovações lingüísticas no corpo das estórias até o conteúdo em si referente a modificações ou mesmo rupturas de hábitos sociais, crenças, mundividências.

Como exemplo desse modo de traduzir literariamente o inusitado, é possível citar o exemplo de “Reminisção” e “Desenredo”.

No primeiro, estória permeada de concepções platônicas, uma mulher extremamente feia e má desperta o mais puro e ardoroso sentimento de amor no sapateiro Romão. Esse amor, assim tão desmotivado e gratuito, causa estranheza e desconforto, inclusive na própria amada, porque contraria a característica mais necessária àquilo ou àquele que se ama: a capacidade de ser “amável”. Com a personagem Drá passava-se exatamente o contrário, feia por dentro e por fora, tinha todos os motivos para não o ser:

Divulgue-se a Drá: cor de folha seca escura, estafermiça, abexigada, feia feito fritura queimada, ximbéximbeva; primeiro sinisga de magra, depois gorda de odre, sempre própria a figura do feio fora-da-lei. Medonha e má; não enganava pela cara.
(ROSA, 1979, p.81)

Apesar disso, Romão a expressão “o amor”, ao contrário, como percebido por Heloísa Vilhena de Araújo (2001, p.97) mantém-se inabalável diante da comunidade e da própria Drá, refutando a realidade imediata em busca de outra, apenas pressentida. O que sobressai de tal concepção é a recusa em aceitar a aparência como reveladora da essência, aceitar o senso comum como verdade.

“Reminisção” é exemplo perfeito da arte rosiana referentemente ao seu tão propalado horror ao lugar-comum, à lógica aparente das coisas. Rosa procurava novas dimensões, novos sistemas de pensamento que quebrassem a inércia do corriqueiro, do comezinho, buscando uma passagem, um salto que transcendesse o superficial. A aposta do autor, filosoficamente, é pela intuição, pelo irracional, pelo alógico como formas de apreender o real. Por esta perspectiva, as criações e personagens do autor refletem este modo de pensar e viver a literatura e a vida. Para eles, a lógica cartesiana tem pouca valia, pois seus métodos e meios são outros.

Coerentemente com este sistema de pensamento, Romão, contra tudo e contra todos, persiste em sua visão interior que lhe mostrava o que os outros pela Razão, jamais veriam. A comunidade, presa à segurança e à armadilha do lugar-comum, tem seus sentidos embotados e conseguirá, mais tarde, no momento da morte do sapateiro, partilhar em um átimo a transfiguração de Drá na deslumbrante Nhemaria.

O autor desestabiliza os estados fossilizados, convencionais, de todas as formas possíveis. Essa ruptura faz parte da ânsia desestruturadora que procura usar a expressão lingüística em toda sua potencialidade como instrumento para atingir seus fins. Tal processo para o autor é sempre positivo, construtor, em sentido ascendente e por este motivo crenças devem ser postas à prova em todos os momentos duvidando-se do racional, do aparente, do fácil.

A poética rosiana revela-se no tratamento ao aspecto formal da linguagem tanto quanto às vozes dos diferentes da sociedade, àqueles que se embebem de outros modos de pensar: as crianças, os visionários, os lunáticos, os santos, os transgressores, pois são exatamente estes seres que desestabilizam a ordem das coisas e deixam entrever os mistérios do mundo.

Outro dos contos “avessos” é “Desenredo”, centrado na singular proposição de alterar fatos, mudar o passado, reescrever a própria vida, agir sobre o acontecido. Seria possível? Jó Joaquim realizou este grande feito.

O protagonista do conto rosiano intervém em sua vida, como um autor intervém na estória que cria. Dono de seu próprio destino, não aceita o estabelecido e longe de considera-lo concretizado impõe a si a tarefa de transforma-lo. Jó Joaquim, diferentemente do conhecidíssimo triângulo amoroso faz parte do que poderíamos chamar a rigor de um “quadrângulo amoroso” uma vez que a mulher em questão interage com três homens, ao invés de dois. A estória narra a descrição da dupla traição da mulher que ao arrumar um segundo amante engana o marido e o amante de uma só vez. Desconsolado, Jó Joaquim afasta-se em dores: “Imaginara a jamais a ter o em três estribos” (ROSA, 1979, p.38)

No entanto, o intrincado da situação traz consigo o desenlace, pois, o marido mata o amante e morre fugindo da justiça. Jó Joaquim então, recuperado da decepção, casa-se com a amada. Após uns tempos de alegria, eis que a situação se repete e lá está a mulher outra vez em novas traições. Não resta ao protagonista, desesperado, senão expulsa-la. Quando parecia que nada mais havia a fazer, dá-se o fenômeno: Jó Joaquim decide tomar o enredo de sua vida em suas próprias mãos e reescreve-lo, realizando um verdadeiro “desenredo”. Peculiarmente, através de palavras ele muda toda a feição dos acontecimentos e interfere em sua realidade, não apenas mudando o passado, mas incrivelmente transformando o presente, ficcionalizando-o a seu bel-prazer. Mais: transportava a ficção para a realidade. A veracidade dos fatos desmanchava-se diante de sua nova versão, de sua vontade pacientemente aplicada: “Jó Joaquim, genial, operava o passado plástico e contraditório rascunho. Criava nova, transformada realidade, mais alta.” (ROSA, 1979, p.40)

Ora, sendo impossível alterar o passado sem que o presente também se altere, a comunidade convenceu-se da inocência da mulher, tudo não passara afinal de um grande mal-entendido, injustiças foram cometidas. A tal ponto espraiou-se a nova crença que até a mulher atingiu:

Chegou-lhe a notícia, onde se achava, em ignota, defendida, perfeita distância. Soube-se nua e pura. Veio sem culpa. Voltou, com dengos e fofos de bandeira ao vento.
(ROSA, 1979, p.40)

Contrariamente ao senso comum, prevalece o indivíduo sobre a coletividade mudando-lhe o consenso. No entanto, não se pense em fingimento, ou apenas em cínico fechar de olhos em prol de um interesse recíproco. O termo “convolados” aplicado ao casal ao fim da estória significa “mudados”.

A viga mestra de “Desenredo” é a visão da vida à semelhança de um texto literário que pode ser escrito e reescrito de acordo com a vontade do autor. Jó Joaquim altera o próprio enredo e comporta-se não como personagem e sim como autor de sua própria estória. Ao desconstruir o passado, reinterpretando-o em seu discurso, Joaquim altera o presente e ao invés de tentar mudar o caráter volúvel da mulher, aplica seus esforços em transformar o pensamento da comunidade a seu respeito, invertendo o “cair na boca do povo” para o “cair no ouvido do povo”. Por este meio a realidade é transformada, sofrendo um processo de inversão em que os fatos adquirem um lugar secundário e desimportante, prevalecendo uma realidade inventada, um faz-de-conta, enfim, com valor de verdade absoluta. Talvez seja possível, então, pensar na inversão, no avesso das ideias, como alternativa à lógica habitual.

O horror ao lugar-comum, constantemente lembrado pelo autor em várias ocasiões, vai além das inovações linguísticas e derruba tradições, conceitos, preconceitos, modelos de comportamento cristalizados ao longo do tempo. São às estas estruturas, tão entranhadas nas dimensões do viver e do literário, que Rosa dirige sua atenção, propondo um novo rearranjo não só na linguagem que as descreve, mas, no próprio cerne do sistema de pensamento que as cria.”

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Fonte:
ÂNGELA BOLORINO MARTINS: “FLAUSINA E MARIA MISS, DUPLO SIGNO, DUPLA FACE: MORTES E SAUDADES”. (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Estadual de Londrina para obtenção do Titulo de Mestrado em Letras. Orientadora: Prof.a Dr.a Regina Helena Machado Aquino Correa). Londrina, 2010.

Nota
:
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As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

Disponível digitalmente no site: Domínio Público

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