“O tom mais duro de Memórias do Cárcere decorre da consciência do sujeito de que o espaço do encarceramento é mais um que ele precisa entender e ao qual deve se adaptar, o que só é possível, para o homem adulto, através de uma constante retomada de referenciais passados, como das experiências do hospital e da infância, nas quais ele também havia se sentido fortemente limitado pelo mundo. Antes da entrada na prisão, fatos externos são valorizados por permitirem que, a partir deles, o homem construa sua nova realidade:
Na atrapalhação da partida, esquecera-me de um aviso importante. De fato não havia importância, mas ali, ausentando-me do mundo, começava a dar às coisas valores novos. Sucedia um desmoronamento. Indispensável retirar dele migalhas de vida, cultivá-las, ampliá-las. De outro lado, seria o desastre completo, o mergulho definitivo.
O homem sente a necessidade de manter os vestígios do que conhece para suportar o novo, pois ainda que a realidade conhecida não seja coerente (como indica sua própria prisão, sem motivo ou julgamento), a cadeia representa o vazio, a impossibilidade de compreensão. Mas não é apenas por isso que o desmoronamento do mundo é grave: sem guardar seus vestígios, o homem coloca em risco sua própria existência, pois mesmo a sua singularidade foi formada em condições de liberdade. As referências externas à prisão são fundamentais para que a pessoa compreenda sua nova realidade e lembre-se de quem é, algo fundamental em um meio de singularidades opacas, em que tantos outros homens, também destituídos de referenciais, encontram-se amontoados em um pequeno espaço, privados dos recursos básicos de manutenção da vida.
Enquanto no início de Memórias do Cárcere considera-se mundo aquilo que é externo à cadeia, após o encarceramento, a prisão já é entendida como “um” mundo, uma realidade com marcas específicas:
Na verdade me achava num mundo bem estranho. Um quartel. Não podia arrogar-me inteira ignorância dos quartéis, mas até então eles me haviam surgido nas relações com o exterior, esforçando-se por adotar os modos e a linguagem que usávamos lá fora. Aparecia-me de chofre interiormente, indefinido, com seu rígido simbolismo, um quadro de valores que me era impossível recusar, aceitar, compreender ao menos.
O quartel configura um espaço determinado, apenas uma parte do mundo ao qual pertencia o personagem. Este, ao mostrar sua dificuldade para lidar com esse contexto peculiar, revela a fragilidade do seu conhecimento, construído através de uma imagem do exército adaptada à sociedade civil. Estar em contato direto com o que antes era visto na superficialidade revela ao sujeito um ambiente com valores que sequer poderiam ser compreendidos, o que o obriga a trazer os parâmetros do seu mundo anterior, por meio dos quais ele não se sente fora de toda a realidade, apenas de uma faceta específica. Sem os referenciais externos, o mundo militar, com toda sua ordenação, apontaria a incoerência do sujeito e o tornaria objeto de dúvida.
Ao longo do livro, a retomada do que é externo à cadeia não diminui, mas gradativamente deixa de encobrir a realidade do cárcere, que passa a colocar-se ao seu lado e constituir, também, um mundo, embora com limitação estabelecida:
Lá fora tínhamos funções, representávamos de qualquer modo certo valor. Pelo menos julgávamos representar. Agora nos faltava o mínimo préstimo, e o pior é que sabíamos disso. Arrastávamos as pernas ociosas; uma vez por dia deixávamos a gaiola – um, dois, um, dois – alcançávamos o banheiro, o limite do mundo; regressávamos à sonolência e à imobilidade.
Agora, ao opor o mundo de fora e o de dentro da cadeia, é neste que o narrador finca suas certezas, ainda que negativas. A descoberta de um mundo inimaginável faz com que ele questione dados que antes podiam ser considerados certeiros, como o fato de sua própria vida ter algum valor. A experiência da cadeia evidencia sua inutilidade lá dentro, mas também coloca em dúvida a sua importância quando estava em liberdade, pois se ele, de fato, representasse alguém considerável, não poderia ser mantido preso. O encarceramento revela o valor negativo do homem, cuja pretensa nocividade teria obrigada a sua retirada da sociedade. A prisão instaura a dúvida, que ao se estender sobre a sociedade e seus valores, coloca em xeque o próprio homem, que julgava não agir contra os parâmetros impostos.
Contrariando a hipótese de que a cadeia ofereceria incertezas em oposição às certezas da liberdade, o narrador propõe, por vezes, uma inversão: fora da cadeia, tudo é incerto sob a aparência da certeza, enquanto ali dentro, algumas certezas são bem definidas (por exemplo: regras, punições, alimentação), especialmente por se guiarem pela conduta militar, representada na cena com certa ironia pela contagem dos passos. A cadeia, configurada como um mundo amplamente coerente dentro de seus limites estreitos, não restringe o sujeito na mesma proporção de seu espaço físico. Muitas descobertas são possíveis em seu meio e, em alguns momentos, tornadas compulsórias justamente por obrigar o contato tão próximo entre as pessoas:
Agora na prisão havia mais espaço: deixaram aberta uma grade e nosso mundo se estendeu alguns metros, pudemos andar na sala vizinha. Estive ali parte do dia, a contar os passos de uma a outra parede, a imaginação presa no curral de arame, as palavras insensatas de Medina fervilhando-me na cabeça.
Quase no final de Memórias do Cárcere, a cadeia é chamada de “nosso mundo”, o que revela uma mudança no papel daquele espaço para o personagem. Cabe observar que nossa análise não está unicamente centrada no rastreamento do termo “mundo”, pois é possível que ao longo do livro ele tenha sido utilizado de formas distintas das que apresentamos, mas julgamos interessante apontar suas marcas nas citações selecionadas, pois são indicativas da relação que o homem estabelece com sua nova realidade. A cadeia, vista como uma outra face do mundo conhecido - espécie de vazio - é encarada, aos poucos, como o seu mundo, inclusive mais coerente que o anterior. Diante do reconhecimento da cadeia como um espaço de convívio de muitas pessoas, é possível entender o tom de coletividade que distingue as memórias de Graciliano. Um único homem narrará fatos compartilhados por tantas pessoas sujeitas a um convívio estreito, de intensa vigilância.
No mundo de todos, o espaço é um grande ganho, pois permite um mínimo afastamento. A contagem dos passos, dessa vez sem a marcação militar, representa uma pequena vitória individual, pois ainda que as palavras do outro não saíssem de sua cabeça, fisicamente Graciliano poderia ganhar um distanciamento, algo incomum: “Essa impossibilidade de isolamento, a obrigação de sentir a miséria alheia, é imposta lá dentro.” O contato permanente com as pessoas é um dos aspectos que dificulta, mesmo anos depois, uma percepção meramente individual dos fatos, pois os sofrimentos e opiniões de todos estão sempre em cena.
No reconhecimento de um mundo tão marcado pela coletividade, o espaço merece grande destaque precisamente por ser o elemento de ligação entre todas as pessoas da cadeia, sejam os vigilantes, sejam os vigiados. A especificidade do espaço deixa sua marca sobre todos, mas apesar disso ela não restringe a imprevisibilidade humana. É precisamente por isso que a descrição é um recurso tão forte em Memórias do Cárcere: ela é essencial para mostrar a situação de adversidade em que vivem as pessoas e, consequentemente, destacar as ações que contrariam as expectativas criadas por um espaço tão precário, de tal modo que seja impossível reconhecer no livro uma oposição entre a narração e a descrição. As fortes descrições, por exemplo, do sufocamento no porão do navio e da opressão das celas pequenas levam o leitor, talvez influenciado pela forte tendência naturalista da literatura brasileira, a pensar que é possível prever as ações das pessoas. Mas Graciliano mostra o quanto elas podem ser surpreendentes. O espaço precário torna-se parte das pessoas (é o “nosso mundo”), mas não as determina. Assim, embora o sujeito se esforce para reconhecer seu espaço, logo verá que está na singularidade de cada pessoa a chave para o reconhecimento daquele mundo:
Imaginara-o tenente – e surpreendia-me que houvesse inferiores tão bem educados. Julgava-os ásperos, severos, carrancudos, possuidores de horríveis pulmões fortes demais, desenvolvidos em berros a recrutas, nos exercícios. E aquele, amável, discreto, de aprumo perfeito e roupa sem dobras, realmente me desorientava. Surpresa tola, por causa das generalizações apressadas.
O encarceramento obriga o contato entre os presos, mas também com os militares, que deixam de ser vistos apenas como representantes de uma instituição desagradável, para se mostrarem como pessoas, igualmente capazes de surpreenderem por suas ações. A surpresa é considerada tola, pois como grande observador dos homens, o autor sabe que não se pode reduzir a ação humana a mero comportamento. Atento a toda sua realidade, Graciliano oferece um livro que, como afirma Lima, não é surpreendente por testemunhar sobre o horrível, mas sim por mostrar algo positivo. Ao longo de Memórias do Cárcere, as atitudes das pessoas, inclusive as suas, ainda irão surpreendê-lo outras vezes:
Como iria comportar-me? Se me dessem tempo suficiente para refletir, ser-me-ia possível juntar idéias, dominar emoções, ter alguma lógica nos atos e nas palavras, exibir a aparência de um sujeito mais ou menos civilizado. Mas na situação nova que me impunham, fervilhavam as surpresas, e diante delas ia decerto confundir-me, disparatar, meter os pés pelas mãos.
A ação humana provoca surpresa, e as surpresas provocam a ação humana. Ou seja: não é apenas o narrador que se surpreende com os homens, ele próprio pode ser surpreendente ao agir no novo ambiente, no qual necessitaria de muito mais tempo e tranquilidade para organizar reações que seriam comuns em liberdade.
A surpresa torna-se uma marca da experiência no cárcere, configurando-se como um signo do profundo processo de descoberta. Através dessa ruptura com o esperado, surge a constante necessidade de (re)construção do próprio sujeito, que está sempre se defrontando com situações inusitadas, existentes apesar das rígidas regras da cadeia. A instabilidade do ambiente, ao fazer com que o sujeito perceba sua fragilidade, torna -o mais aberto ao outro, em quem identifica suas próprias incoerências, medos, erros e acertos. Assim, o homem adulto, que já conhece a arbitrariedade da justiça, como vemos em Infância, não se surpreende por ser preso. A prisão sem acusação é uma incoerência, mas não uma surpresa, pois configura uma concretização da injustiça conhecida. Já o ser humano, em sua pluralidade, oferece diversas oportunidades de surpresa, pois contrariando qualquer expectativa pessimista, muitos agem de maneira desinteressada, o que obriga Graciliano a repensar sua concepção de mundo e a de si mesmo."
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Fonte:
PATRÍCIA TRINDADE NAKAGOME: "DESCOBERTA E LIMITAÇÃO: os livros autobiográficos de Graciliano Ramos". (Dissertação apresentada à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo para a obtenção do título de Mestre em Letras. Área de concentração: Teoria Literária e Literatura Comparada. Orientadora: Profa. Dra. Andrea Saad Hossne).São Paulo, 2008.
Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Um mundo desconhecido
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