Por: Iba Mendes (novembro de 2011)
A aflição de Luis da Silva, personagem central do romance “Angústia”, de Graciliano Ramos, é parte intrínseca do emaranhado lingüístico de que se utiliza o autor para tornar a obra aquilo que sintetiza o seu título. A frustração, a insatisfação e o sentimento de inutilidade do funcionário público Luís, sua impossibilidade de lutar contra uma rotina que consome seu tempo e sua existência, são assim destrinchados nas palavras que este emprega para entender o mundo e aqueles que o cercam. “A minha linguagem”, diz ele: “é baixa, acanalhada. Às vezes sapeco palavrões obscenos. Não os adoto escrevendo por falta de hábito e porque os jornais não os publicariam, mas é a minha maneira ordinária de falar quando não estou na presença dos chefes”. É com essa linguagem que ele constrói sua realidade solitária, e é com ela que sua angústia e frustração existencial sobressaem do início ao fim do livro. Palavras como carne, sangue, entranhas, ventre, tripas e outras correlatas, tornam sua angústia à própria angústia de quem o ler:
“Parecia-me que aquilo estava chiando dentro de mim, que a minha carne se assava e chiava”.
“O que eu desejava era apertar o pescoço do homem calvo e moreno, apertá-lo até que ele enrijasse e esfriasse. Lutaria e estrobucharia a princípio, depois seriam apenas convulsões, estremecimentos. Os meus dedos continuariam crispados, penetrando a carne que se imobilizaria, em silêncio.”
“Enquanto ele batia na testa, avançava e recuava, eu ia pouco a pouco distinguindo uma figura nua e preta estirada nas pedras da rua. O ventre era uma pasta escura de carne retalhada; os membros, torcidos na agonia, estavam cobertos de buracos que esguichavam sangue; a boca, sem beiços, mostrava dentes acavalados e vermelhos, numa careta medonha; os olhos esbugalhados tornavam-se vermelhos. O negro arquejava. Corria sangue entre as frestas dos parallepípedos e empoçava na sarjeta. A poça crescia, em pouco tempo transformava-se num regato espumoso e vermelho.”
“Necessário que ele morresse. Julião Tavares cortado em pedaços, como o moleque da história que seu Ramalho contava. Logo me aborrecia da tortura comprida. Nojo, medo, horror ao sangue. Julião Tavares morreria violentamente e sem derramar sangue. Em sonhos ou acordado, vi-o roxo, os olhos esbugalhados a língua fora da boca. Pensei muitas vezes nos bíceps do homem acaboclado que ensinava capueira ao rapaz, no alto do Farol. Por uma aberração, imaginava que aqueles músculos eram meus”.
“Era o tipo da mulher de subúrbio mesquinho, que varre a casa, lava as panelas e prega os botões com as dores do parto, pare sozinha e se levanta três dias depois, vai tratar da vida. Vida infeliz, vida porca. O homem para um lado, ela para outro, arrastando a filha pequena, a barriga deformada, estazando-se, agüentando pancadas nos olhos. Talvez estivesse na véspera de ter menino, talvez estivesse no dia, talvez já sentisse as entranhas se contraírem. Rebolar-se-ia dentro de algumas horas na cama dura, a carne cansada se rasgaria, os dentes morderiam as cobertas remendadaz.”
“Parecia que Marina queria esfolar-se. Imaginava-a em carne viva, toda vermelha. Imaginava-a branquinha, coberta de uma pasta de sabão que se rachava, os cabelos alvos, como uma velha Essas duas imagens me davam muito prazer. Queria que aparecesse a Julião Tavares assim encarnada e pingando sangue, ou encarquilhada e decrépita, os pêlos do ventre como um capulho de algodão. A torneira se abria. Lá estava Marina outra vez nova e fresca, enchendo a boca e atirando bochechos nas paredes, resfolegando, sapecando frases desconexas.”
“Os músculos de mestre Domingos eram do velho Trajano. Os músculos e o ventre de Quitéria também. Sinha Germana concebia e paria no couro de boi, a que o atrito e a velhice tinham levado o cabelo. Quitéria engendrava filhos no chão, debaixo das catingueiras, atrás do curral, e despejava-os na esteira da Isidora, em partos difíceis.”
“Com um pouco de esforço podia admitir-se que fosse redondo, mais ou menos redondo, comparável a uma cabeça chata feita de curva, caprichosas que se torciam como tripas. Pensei em circunvoluções cerebrais, levantei-me e fui beber um gole de aguardente.”
“Na escuridão do cárcere, depois que a chave tilintava na fechadura da grade, o juiz da cadeia recebia os duzentos réis do torno e desfazia os laços que deslocavam os ossos, entravam na carne do homem. Um ladrão de cavalos seria maltratado, agüentaria facão, de joelhos, nu da barriga para cima, um soldado segurando-lhe o braço direito e batendo-lhe no peito, outro segurando o braço esquerdo e batendo nas costas. Depois os presos se aproximariam, camaradas, de repente lhe afastariam as pernas. O corpo cairia na pedra negra, suja de escarros, sangue, pus e lama. O cipó de boi chiaria no ar, cortaria o lombo descoberto.”
A linguagem, portanto, é o que caracteriza não apenas a angústia da personagem, como à do próprio autor, que vivenciou na “própria carne” o tormento do cárcere. Quando escreveu esta obra, Graciliano tinha sido preso a mando do governo ditatorial de Getúlio Vargas, daí, por exemplo, às constantes menções à “água de bacalhau”, subterfúgio utilizado pela polícia getulista para torturar seus adversários políticos: “Não me matem de fome nem me dêem água de bacalhau. Eu me explico.” / “Não seria preciso me darem água de bacalhau. A garganta ardia-me, passei a língua seca nos beiços gretados. Água de bacalhau, dias de fome, noites em claro, um tipo martelando horas a fio...”/ “A garganta doía-me, os beiços colavam-se. Precisava beber água e pensava no caldo de bacalhau. Confessaria tudo, mostraria á roupa rasgada, os bilhetes, as cartas, os artigos.” / “As grades que a gente não pode tocar, tão nojentas são elas, as esteiras, as cortinas de pucumã, os muros grossos, fome, sede, caldo de bacalhau, e nesta miséria José Baía fabricando piteiras, pentes de tartaruga, objetos miúdos de casca de coco.”
O assassinato de seu rival Julião Tavares, que seu deu com uma corda que ganhara de presente do pedinte Ivo, torna-se assim o ápice da sua desesperação, o terrível instante
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É isso!
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