O ethos e o pathos do filósofo

Podemos afirmar que Platão é o primeiro a identificar um conjunto de qualidades mentais e arregimentá-las sob uma única classificação: o filósofo. Na República, dedica diversas passagens, especialmente o Livro V, à definição do que seja o filósofo e à distinção entre saber e opinião, entre o philósophos e o philodoxos. Em meio aos seus contemporâneos, o filósofo se diferencia dos políticos, dos oradores e dos artistas em geral, philodoxoi que se comprazem com o reino da opinião e que, por isso, se encontram ainda aquém dos sophoi, na hierarquia de prestígio:

É nesse ponto que estabeleço a distinção: para um lado os que ainda agora referiste – amadores de espetáculos, amigos das artes e homens de ação – e para outro aqueles de quem estamos a tratar, os únicos que com razão podem chamar-se filósofos. Os demais são incapazes de discernir e de amar a natureza do belo em si . (...) se, na verdade, cada potência tem o seu objeto, e se as duas – a opinião e a ciência – são potências, sendo cada uma delas diversa, decorre que a mesma coisa não possa ser objeto de conhecimento e de opinião. O objeto da ciência é o Ser e o da opinião o não-Ser (...). Por conseguinte, devemos chamar philosophoi, e não philodoxoi aos que se dedicam ao Ser em si.

Nesta visão/divisão do mundo social, philósophos e philodoxos são termos antitéticos. A escolha subjetiva de um pressupõe a renúncia do outro. Os pares de opostos do repertório conceitual da filosofia platônica são, assim, transpostos para a representação da realidade social, desqualificando os concorrentes do campo pedagógico.

Ao examinarmos o nível mais primário, o da etimologia da palavra philósophos, já identificamos aí o sentido passional que o termo evoca, a atitude radical diante do mundo. De acordo com a análise de Eric Havelock, phil é um termo que designa estimulação psíquica, condução e ansiedade; um desejo de consumo. O filósofo é, então, um homem de instintos e energias especiais, dirigidos para a sophia, entendida por Platão como conhecimento das identidades que são, “são para sempre”: as formas.

De fato, antes da fixação conceitual que lhe atribui Platão, o termo philósophos e seus derivados (philosophia e philosophein) eram utilizados muito raramente, nos textos anteriores ao IV século que conhecemos. As poucas ocorrências traziam um sentido vago e indeterminado,indicando hábitos mentais como um todo. Segundo Luc Brisson, “nos sofistas Antifonte e Górgias, philósophos sugere a qualidade de um discurso que exprime o pensamento de forma adequada. Em Heráclito e nos historiadores Heródoto e Tucídides, o mesmo termo evoca a aquisição de conhecimentos em geral”.

Cabe ressaltar que mesmo Xenofonte quase não faz referência ao termo, até quando se trata de caracterizar as práticas e os ensinamentos de Sócrates. Em sua Apologia, Platão abusa da alusão ao vocábulo para naturalizar a perseguição ao filósofo, como se a ekklesia do início do século IV fizesse qualquer distinção entre sofistas e filósofos. Já Xenofonte, em sua defesa de Sócrates, não menciona uma vez sequer o vocábulo, ou qualquer outro a ele aparentado. Em todas as suas obras ditas socráticas sobressai um grande sábio bastante à vontade na tradição dos sophoi e poucas e sempre imprecisas referências ao philósophos. A formalização da diferença, como dissemos, compete a Platão. O sucesso que obteve na fixação do significado da categoria philósophos pode ser mensurado pelo relato de Heráclides do Ponto, um de seus principais alunos na Academia. O discípulo remete a Pitágoras a responsabilidade pela origem do termo:

Pitágoras foi o primeiro a se chamar philósophos; não apenas empregou uma palavra nova, como ensinou uma doutrina original. Tendo ido a Phlionte, conversou longamente com Léon, tirano da cidade. Admirando seu espírito e sua eloqüência, Léon perguntou-lhe que arte lhe agradava mais. Ao que Pitágoras respondeu que nada conhecia de arte, que era philósophos. Surpreendendo-se com a novidade da palavra, Leon indagou-lhe sobre o que eram, afinal, os philósophoi e o que os distinguia dos outros homens. Pitágoras respondeu-lhe que nossa passagem por esta vida se parece com a da multidão que se encontra nos jogos panegíricos. Alguns aí vão pela glória que lhes promete a força física, outros pelo ganho que provém do comércio de mercadorias, e há uma terceira classe de pessoas que aí vão para ver o panorama, as obras de arte, as proezas e os discursos virtuosos que se apresentam nos panegíricos. Mas nós proviemos de uma outra vida e de uma outra natureza em relação àquela. Alguns são escravos da glória, outros da riqueza. Ao contrário, raros são aqueles que receberam a contemplação das coisas mais belas e são estes que chamamos philósophoi, e não sophoí, porque ninguém é sábio, se não for deus.

Por longo tempo, os especialistas endossaram a afirmação do fragmento, creditando a Pitágoras a origem da definição e do emprego do termo. A crítica filológica mais recente, porém, estabelece, sem ressalvas, que o composto em questão ascende ao ensino da Academia. Partilhamos da mesma posição, dado o caráter sectário e místico da confraria que Pitágoras funda na Sicília, em meados do século VI. Uma comunidade soteriológica que via na purificação da alma o caminho para restaurar a unidade perdida com o divino. Fechada à ordem políade, tal organização não poderia separar o domínio de atuação do filósofo, situado no trânsito entre as categorias sociais da cidade, como dá a entender o registro de Heráclides do Ponto.

Ao contrário, Pitágoras é, antes de tudo, um indivíduo excepcional e inspirado, bastante próximo do antigo poeta-adivinho e de suas técnicas de imersão espiritual, que ilustra exemplarmente o sentido arcaico atribuído ao sóphos. Neste uso bastante impreciso, não havia linha de demarcação entre o conhecimento do passado, do presente e do futuro, o que aproximava o sábio dos poetas e dos adivinhos.

Exatamente contra este atributo inspirado e impreciso que se insurge Platão, reivindicando o plano de distinção do filósofo. A julgar pelo nível do discurso e das práticas da Academia, seu empenho parece exitoso, pois é sintomático que um aluno destacado como Heráclides do Ponto reproduza, de forma integral e em primeira pessoa, a alegoria platônica para a origem do filósofo e da filosofia. Este fato indica a estabilidade da transmissão dos ensinamentos e das práticas na Academia. Sua abordagem do mito de origem que referencia a identidade do grupo revela a auto-consciência discursiva dos filósofos platônicos. Após valer-se do prestígio de sua genealogia familiar como fonte de autoridade, Platão evoca novamente o valor da tradição. Desta vez, procura legitimar a posição social do filósofo na anterioridade da experiência, no recurso ao passado de uma organização estável e coesa como a dos pitagóricos, que supomos bem afamada no mundo grego.

Por que Pitágoras e não algum outro pré-socrático entre tantos, como Heráclito e Parmênides, que parecia conhecer tão bem? Que fundamentos, do ponto de vista da legitimação e da ética comunitária, orientaram sua escolha? As razões para essa opção merecem uma análise, que, em função de nossos objetivos, infelizmente não poderemos empreender aqui. Em ao menos um sentido, porém, sugerimos o propósito da apropriação. No plano ideal de sua filosofia, a iniciação pressupõe uma “escolha total”, ou seja, a praeparatio philosophica impõe limites à obediência cívica, exige a renúncia do apego à família e, no caso limite, da própria vida. Neste sentido, a atitude abnegada com que Sócrates se porta diante de sua esposa e filhos, e mesmo em seu julgamento e execução, é verdadeiramente um paradigma, nos diálogos platônicos.

A convicção do indivíduo na transformação radical de sua vida, a compensação pela renúncia à satisfação pessoal, assenta no carisma grupal distintivo, na “certeza de que provém de uma outra vida e de uma outra natureza”, nas palavras do Pitágoras de Heráclides do Ponto. A filosofia não é aqui uma atividade a que alguém possa ligar-se como a uma carreira, ou como a um interesse entre vários outros.

É como modo de vida que a filosofia, em seu mito de origem, desqualifica os sophoi, “porque ninguém é sábio, se não for Deus”. Não é mero desejo de saber. É um ethos. Platão afirma o regime do filósofo em oposição ao sábio inspirado e sequioso de conhecimentos em geral. Em seu lugar, a aspiração à verdadeira sophia, perseguida pelo filósofo, não transpassa as possibilidades humanas, na medida que funda o domínio desta sabedoria na contemplação de um único objeto: “o mundo das formas inteligíveis, do qual o mundo dos sensíveis, onde por apenas algum tempo encontra-se a alma humana, nada mais é do que um reflexo”.

Na direção desta contemplação, o filósofo deve empenhar todos os seus esforços. Lembremos do significado etimológico da palavra philósophos, da estimulação psíquica orientada para a sophia. Percebemos que no estágio mais básico de sua própria etimologia, a invenção platônica pressupõe um estado de incitação do espírito favorável à aprendizagem. É preciso produzir e canalizar os instintos e energias especiais, segundo normas de procedimento adequadas ao processo de aprendizagem.

Na República, Platão afirma que as vicissitudes emocionais, como o desejo e o medo, podem afastar o homem do pensamento racional, levando-o a agir contra sua vontade. Ao mestre, como Platão, cabe combater aquelas inclinações desviantes, incitando uma alteração particular no estado emocional dos discípulos, predispondo-os ao conselho, à aprendizagem e ao comportamento moral. Trata-se da paramythia, recurso amplamente utilizado na paidéia grega, que consiste em provocar o medo nas crianças para estimular a obediência. De acordo com estudo de Michael Erler, a paramythia assume feições próprias em Platão, mesclando intenções terapêuticas e argumentos racionais. Ela aparece com freqüência em sua literatura, destacando- e nas Leis, na República e no Fédon.

A utilização de intenções terapêuticas como expediente pedagógico, justamente no diálogo que, como vimos, melhor expõe o êxtase dos discípulos frente ao carisma de Sócrates, que figura a frieza com que o mestre participa de suas relações familiares e o destemor libertário com que encara sua própria morte, não nos parece casual. O diálogo recria uma situação exemplar para os discípulos. Mostra a necessidade de domesticar suas emoções e exalta o valor superior da filosofia como ética comunitária. Ao mesmo tempo, produz uma disposição espiritual de medo e debilidade nos discípulos, explorando a iminência da morte de Sócrates, que lhes exorta a ascese e o desprendimento diante da vida, acenando, logo após, para a profunda compensação afetiva que dele emerge. Vejamos.

Cebes pede a Sócrates: “Procura convencer-nos Sócrates, a respeito do assunto que tanto tememos, ou melhor, não que tenhamos medo, e sim a criança (epode) apreensiva que reside em nós. Por isso, esforça-te por convencer esta criança a não sentir diante da morte o mesmo medo que lhe infundem as assombrações”. E Sócrates consente: “É preciso que exorcizem estes epodai todos os dias até libertá-los de todo o medo”.

A alusão aos epodai é muito significativa. Platão os personaliza como uma indesejável inclinação emocional de todos os homens, os interioriza como a parte perturbada da alma. Para estirpá-la, o filósofo precisa observar certas interdições. Além da atitude moral mais geral de desprendimento, de que falamos acima, o filósofo deve evitar “dedicar-se avidamente aos prazeres de comer e de beber, (...) os prazeres do amor, (...) os cuidados com o corpo, como vestimentas e calçados de boa qualidade”, e demais privações desta ordem, diluídas no conjunto dos textos platônicos.

Das prescrições de renúncia sobressai uma grande compensação afetiva, que transparece na estratificação antropológica de Platão. Curiosamente, tal compensação é enunciada pela primeira vez no Fédon, seguindo de perto as passagens que versam sobre a paramythia e as interdições, acima citadas. Ao abordar a questão do destino das almas, assim se pronuncia o Sócrates de Platão:

Em corpos de asno ou de animais semelhantes é que muito naturalmente irão entrar as almas daqueles para quem a voracidade, a impudicícia, a bebedeira constituíram um hábito, as almas daqueles que jamais praticaram a sobriedade (...). E para aqueles para os quais o mais alto prêmio era a injustiça, a tirania, a rapina, esses animarão corpos de lobos, falcões e milhafres. Ou acaso pode haver outro destino para essas almas? (...) os mais felizes serão aqueles cujas almas hão de ter um destino e lugar mais agradáveis, serão aqueles que sempre exerceram essa virtude social e cívica que nós chamamos de temperança e de justiça e nas quais eles se formaram pela força do hábito e do exercício, sem oauxílio da filosofia e da reflexão? (...) sua migração se fará para alguma espécie animal que tenha hábitos sociais e seja organizada de modo policiado, sem dúvida abelhas, vespas ou formigas (...). E quanto à espécie divina, absolutamente ninguém, se não filosofou, se daqui partiu sem estar totalmente purificado, ninguém tem o direito de atingi-la, a não ser unicamente aquele que é filósofo.

De pronto, afigura-se-nos a superioridade do caminho do filósofo, o único capaz de liberar-se da cadeia de reencarnações, regressando à plenitude atávica do estado puro da alma. Desse modo, o Fédon aponta para a compensação afetiva reservada àqueles que observam as abstinências de uma vida inteiramente consagrada à filosofia. Nesta opção, a morte não é mais que o completo desligamento da alma imortal de seu corpo, e a vida do filósofo é um ensaio ou preparação para a liberação final. No Fedro, voltamos a encontrar a afirmação do pathos da distância, desta vez com uma nova roupagem:

Uma lei estabelece que, no primeiro nascimento, a alma não entra no corpo de um animal: aquela que mais contemplou gerará um filósofo, um esteta ou um amante favorito das Musas; a alma de segundo grau irá formar um rei legislador, guerreiro ou dominador; a do terceiro grau forma um político, um economista, ou financista; a do quarto, um atleta incansável ou um médico; a do quinto seguirá a vida de um profeta ou adepto dos mistérios; a do sexto terá a existência de um poeta ou qualquer outro produtor de imitações; a do sétimo, a de um artesão ou camponês; a do oitavo, a de um sofista ou demagogo; a do nono, a de um tirano. Quem, em todas estas situações, praticou a justiça moral, terá melhor sorte. Quem não a praticou cai em situação inferior.

Diferentemente do trecho anterior, vemos aí uma hierarquia construída no trânsito entre as categorias sociais classificadas por Platão. Sendo Fedro um texto posterior ao Fédon, é interessante notarmos o processo de desenvolvimento das alteridades da filosofia no âmbito mesmo do discurso filosófico. Feita a exceção ao tirano, os últimos degraus desta pirâmide são ocupados, respectivamente, por indivíduos inspirados (profeta), os praticantes do que Platão entende por arte imitativa (poeta e artesão) e, finalmente, o sofista. Se excluirmos o artesão, “herói secreto da democracia ateniense", todos os demais são oriundos da tradição dos sóphoi. Os sofistas, os primeiros a utilizar a técnica discursiva da retórica, em meados do século V, concorriam com os poetas pela honra de transmitir este saber: sophistés deriva de sóphos.

---
Fonte:
ALEXANDRE DE PAIVA RIO CAMARGO: “A diakrisis dos mais sábios: associação comunitária e dissidência política na filosofia grega (séc. IV a.C.)”. (Dissertação apresentada ao curso de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para obtenção do título de mestre. Área de concentração: Poder e Idéias Políticas. Orientador: Prof. Dr. Marcelo Rede). Niterói, 2008.

Nota
:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Disponível digitalmente no site: Domínio Público

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Excetuando ofensas pessoais ou apologias ao racismo, use esse espaço à vontade. Aqui não há censura!!!