O prudente e a justa regra

O que vimos que parece ser um problema, com efeito, segue-se da interdependência entre prudência e virtude moral. Trata-se de reconhecer, em vista disso, que o critério para determinar a boa ação é imanente àquele que é virtuoso; ele é o padrão das ações porque é prudente. O prudente é aquele que possui a justa regra ou dispõe dela. Mas é preciso esclarecer ou mesmo corrigir essa afirmação.

Quando dizemos que a justa regra pertence ao prudente, não queremos dizer que ela é algo externo a ele. Não é o caso, assim, de compreender que, por ser virtuoso, o prudente tem um acesso privilegiado à justa regra. Não há uma regra e um padrão de ação fora de si para o qual o prudente olhe e determine quais são as boas ações. Como afirma Aubenque, o critério de determinação da boa ação não é transcendente àquele que dizemos que o possui:

O valor do spoudaios não é medido por qualquer Valor transcendente, mas é ele mesmo a medida do valor. Propomos, nesse sentido, assim chamá-lo: o nobre. Este personagem aparece na sua função de critério e fundamento de medida desde o livro I da Ética Nicomaquéia. (...)

Em nenhum momento Aristóteles desconectou, na Ética Nicomaquéia, a razão do desejo no que concerne à ação; devemos disso concluir que ele jamais separou a justa regra da justeza e nobreza do caráter daqueles que são ditos virtuosos ou nobres. É nisto que consiste ser bom e ser, no sentido próprio da palavra, a justa regra da bondade das ações. No livro VI, a justa regra e sua imanência àquele que a possui são tornadas explícitas; não são, contrariamente, introduzidas como algo novo. Aristóteles nos pede para relembrar com atenção o que já foi dito afirmando que a justa regra opera desde sempre em um caráter virtuoso, tal como foi exposto no livro II. No livro VI, é preciso apenas mostrar que o virtuoso é padrão para a ação por causa da presença nele da justa regra, ou seja, por causa de uma perfeição, ao lado da perfeição adquirida em seus desejos, em sua razão prática.

É assim que bom é aquilo que os homens bons julgam como tal. Isto é assim não porque eles fazem com que algo seja, através do seu juízo, bom, mas porque eles são o critério de reconhecimento para aquilo que deve ser feito. Eles aprenderam a desejar e julgar adequadamente, de modo que as coisas só aparecem como boas para eles quando o são realmente. Como observa Aubenque:

O bem real é aquele que aparece como tal à vontade do homem bom; nele, phainomenon agathon [o que aparece como bom] e agathon haplos [bom absolutamente ou sem qualificações] coincidem; o que permite, em todo caso, distinguir a verdade da aparência, é a decisão do spoudaios, cuja vontade é menos esclarecida (pois, para quem seria?) do que esclarecedora (...).

Não há vontade, aqui entendida como desejo e razão prática operando harmonicamente em vista da eudaimonia, superior a uma vontade prudente, a qual seria capaz de funcionar como critério para ela, verificando se ela é realmente boa ou não. A vontade do prudente esclarece o modo pelo qual devemos agir, mas não pode ser esclarecida, ou seja, atestada como correta por nenhuma outra instância superior a ela; com efeito, uma tal instância inexiste. Através da sua vontade, assim, o prudente esclarece a conduta das pessoas na medida em que uma tal vontade não se presta a ser esclarecida, mas a esclarecer como devem ser as condutas das pessoas. Ela mostra, porque foi bem educada, que espécie de coisas devem ser buscadas, quais devem ser evitadas e de que modo. É vendo o que é verdadeiro no domínio prático que a vontade do nobre pode guiar as ações das pessoas e funcionar como padrão para elas.

Na medida em que a regra e o padrão de ação do prudente são dados por ele e nele mesmo, é novamente Platão o alvo de Aristóteles. É preciso negar uma maneira platônica de conceber a justa regra, como algo supranatural, transcendente e, portanto, independente da conduta virtuosa particular dos seres humanos. Segundo Aristóteles, essa regra nos pertence: é através dos homens e como homens perfeitos, na medida em que isso nos é possível, que podemos determinar o que deve ser feito. Como afirma Aubenque, “(...) se não há mais [para os homens], como para Platão, uma Medida transcendente que lhes permita julgar, resta que sejam os homens de valor os juízes do valor ele mesmo”.

Isso, no entanto, embora aproxime a posição aristotélica da protagórica no que concerne à tese do homem-medida, não pode ser confundida com ela. Trata-se de um critério imanente, o que não constitui uma arbitrariedade ou relativismo.Também nesse ponto, como em outros momentos, a comparação com a arte ajuda Aristóteles. Trata-se do caso da saúde, novamente. Como Aristóteles afirma:

(...) assim é no caso dos corpos, onde também as coisas que são saudáveis são saudáveis para os corpos que estão em boa condição, enquanto que para aqueles que estão doentes outras coisas são saudáveis – ou amargo ou doce ou quente ou pesado e assim por diante –; pois não é o caso que o homem bom julga cada classe de coisas corretamente e em cada uma delas a verdade aparece para ele? Pois cada disposição de caráter tem as suas próprias idéias sobre o nobre e o prazeroso e talvez o homem bom distinga-se dos demais porque ele vê a verdade em cada classe de coisas, sendo como que a norma e a medida delas. (1113a25-34)

O critério para determinar se alguém tem saúde são as pessoas saudáveis. Não existe “A Saúde” independentemente daqueles que a têm, como um padrão externo por comparação ao qual as demais pessoas devem ser ditas saudáveis; são as próprias pessoas saudáveis o padrão para julgar a saúde dos demais. Assim, o paladar de uma pessoa saudável é o padrão para determinar se algo é doce, amargo, azedo ou salgado; a boa visão de alguém é padrão para determinar as cores dos objetos e não a visão de um daltônico; a temperatura de uma pessoa sem febre é padrão para afirmar o quanto uma outra está ou não febril. Do mesmo modo, é o caráter de alguém que é virtuoso que deve ser tomado como o padrão do que devemos fazer: ele é o corpo saudável em função do qual podemos saber o quanto estamos doentes, fornecendo-nos o modelo que o nosso “corpo moral” deve seguir.

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Fonte:
Priscilla Tesch Spinelli: “A Prudência na Ética Nicomaquéia de Aristóteles”. (Dissertação de Mestrado). Universidade Federal do Rio Grande do Sul - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Orientador: Prof. Dr. Balthazar Barbosa Filho. Porto Alegre, 2005.

Nota
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