Alencar e as mulheres

A função de “ledor” para as mulheres traz outro aspecto importante que precisa ser analisado. Eram elas as donas-de-casa ou senhoras solteiras à espera de marido, que, ao lado dos estudantes, formavam os dois principais públicos de leitores do país.

Afora os dias de sessão, a sala do fundo era a estação habitual da família. Não havendo visitas de cerimônia, sentavam-se minha boa mãe e sua irmã, D. Florinda, com os amigos que apareciam, ao redor de uma mesa redonda de jacarandá, no centro da qual havia um candeeiro. Minha mãe e minha tia se ocupavam com trabalhos de costuras, e as amigas, para não ficarem ociosas, as ajudavam. Dados os primeiros momentos à conversão, passava-se à leitura e era eu chamado ao lugar de honra. (ALENCAR, 1998, p. 29).

Havia uma mudança no perfil feminino a partir de 1850. Primeiro a questão da superação do analfabetismo. A partir dos anos 40 surgem os primeiros colégios femininos na Corte e nas principais províncias, os quais, além das “prendas para o sexo frágil”, como dizia um anúncio de um destes colégios, imprimiram o gosto pelas artes e pela literatura. A maioria dos cronistas da época, entre eles Morales de Los Rios, relata que no cenário do século, após a vinda da Corte Portuguesa, as mulheres tinham muitos filhos, não havia padrão de moda e de beleza rígido, e as esposas viviam confinadas em casa, sendo tratadas com extrema severidade pelos maridos: qualquer suspeita era justificativa para enviá-las à reclusão num convento.

Mas com as escolas ,a abertura dos espaços públicos, lojas e ruas, como a do Ouvidor, estas mulheres, anteriormente confinadas em suas casas, saem às compras, passam a exercer novas funções sociais como de receber e promover eventos sociais, bailes, saraus, recepções, o que passa a influenciar a própria vida do marido.

Estas mulheres passam, junto com estudantes a ler jornais, poesia e romances folhetins. “Na década de 40 vendia-se cerca de 5 mil periódicos. Em 1860 este número pula para 20 mil, em 1870 calcula-se em 30 mil o número de exemplares vendidos” (MACHADO, 2001, p. 41).

Os jornais, percebendo este público, passam a atrair e satisfazer o mercado feminino, cada vez mais interessado por literatura: a princípio com poesia, e logo a seguir, com ficção, que encontra no folhetim o veículo ideal.

No início, as obras eram traduzidas, sobretudo do francês. As traduções eram feitas sem qualquer autorização dos autores ou editores. Em 1853, o Jornal do Comércio começa a publicar uma tradução de O Conde de Monte Cristo. O sucesso foi tanto que, ao terminar, o jornal resolveu fazer uma continuação da obra de Alexandre Dumas, caseira, intitulada: “A mão do finado”. O verdadeiro autor era Alfredo Polosso Hogan – jornalista português radicado no Brasil. Alertado para o fato, Dumas escreveu uma carta indignada para o jornal. De nada adiantou, o folhetim prosseguiu com o mesmo êxito.

Esta experiência fez pipocar os primeiros folhetins nacionais. “O grande marco neste sentido” narra Ubiratan Machado, foi o sucesso de O Guarani, quando publicado no Diário do Rio de Janeiro em 1857. Foi como o desencadear de uma força natural. O entusiasmo despertado em particular nos públicos feminino e jovem constituiu uma autêntica “novidade nacional”, conforme Taunay (s/ano apud MAGALHÃES JÚNIOR, 1977).

Escrever folhetim significava entrar no mercado novo que traria novas recompensas simbólicas e a mudança nos hábitos cotidianos dos jornalistas-folhetinistas. No caso de O Guarani, escrito entre fevereiro e abril de 1857, Alencar, que era gerente do diário, responsável pelo conteúdo e setor comercial, passa a ter uma intensa jornada de trabalho:

[...] no meio das labutações do jornalismo, oberado não somente com a redação de uma folha diária, mas com a administração da empresa, desempenhei-me da tarefa que me impusera, e cujo alcance eu não medira ao começar a publicação, apenas com dois primeiros capítulos escritos. Meu tempo dividia-se desta forma. Acordava, por assim dizer, na mesa do trabalho; e escrevia o resto do capítulo começado no dia antecedente para enviá-lo à tipografia. Depois do almoço entrava por novo capítulo, que deixava em meio. Saía então para fazer algum exercício antes do jantar no Hotel Europa. À tarde, até nove ou dez horas da noite, passava no escritório da redação, onde escrevia o artigo editorial e o mais que era preciso. O resto do serão era repousar o espírito dessa árdua tarefa jornaleira em alguma distração, como teatro e as sociedades (ALENCAR, 1998, p. 61).

A partir desta experiência de vida atribulada, Alencar passa a atribuir-se em todos os momentos o evangelho do trabalho que era então um ideal burguês. E na sua autobiografia este aspecto vai ser retratado a partir destes três anos de experiência como jornalista e folhetinista, ganhando em todas as biografias de Alencar, lugar de destaque.

Este credo do trabalho, então em expansão naquele novo mundo, era dirigido “[...] ao macho da espécie, menino, rapazes e homens, mas incluíam tacitamente as mulheres em seu escopo.” (GAY, 2002, p. 219). Apesar da entrada das mulheres nos espaços públicos e na nova visibilidade que elas ganhavam, o culto ao trabalho destinava-lhes a gerência do lar: administrar criados, cuidar do orçamento doméstico, assumir um papel importante na criação dos filhos. A casa era o espaço delas por excelência. No caso de Alencar, os móveis e praticamente todos os objetos existentes eram escolhidos pela esposa dedicada, Georgiana Augusta Cochrane. Mas ela não vai merecer do autor uma única menção específica na sua autobiografia literária. Para falar do casamento, ele usa toda sutileza, além de falar da literatura como mero passatempo, dizendo que o casamento “não marca época na sua crônica literária”:

Pouco depois (20 de junho de 1864) deixei a existência descuidosa e solteira para entrar na vida da família, onde o homem se completa. Como a literatura nunca fora para mim uma boêmia, e somente um modesto Tibur para o espírito arredio, este sempre grande acontecimento da história individual não marca época na minha crônica literária. (ALENCAR, 1998, p. 72).

Mas quando enfatiza a vida do trabalho, em lugar de mostrar qualquer contribuição ou solidariedade feminina, Alencar localiza um detalhe da sua memória que mostra mesmo sua independência total a qualquer relação familiar e cria uma figura que seria símbolo tanto de sua capacidade de trabalho, quanto de sua simplicidade na vida intelectual, uma banquinha de cedro:

Nossa casa no Largo do Roccio número 73 estava em reparos. Trabalhava eu num quarto do segundo andar, ao estrépito do martelo, sobre uma banquinha de cedro que apenas chegava para o mister da escrita; e onde minha velha caseira Ângela servia-me o parco almoço. Não tinha comigo um livro; e socorria-me unicamente a um canhenho, em que havia em notas o fruto de meus estudos sobre a natureza e os indígenas do Brasil. (ALENCAR, 1998, p. 62).

Então, se a literatura era um momento de sinceridade, desprendimento, e tão feminino quanto sua relação com a mãe, era também uma atividade só dele, sem nenhuma relação com sua mulher.

Ao descrever a burguesia vitoriana, Gay fornece uma chave para o entendimento desta discrição de Alencar em relação a sua companheira:

[...] os homens não precisariam temer o poder secreto da mulher se ela fosse suficientemente discreta quanto a isso – em suma, a musa, a inspiradora silenciosa dos grandes homens. Trata-se da esposa que toma lugar secundário enquanto o marido se exibe no grande palco do mundo, mesmo reconhecendo (ainda que ele não o faça) ser a verdadeira inteligência da casa (GAY, 2002, p. 224).Quanto a esta discrição exagerada, um dos mais experientes biógrafos de Alencar e de vários outros literatos brasileiros, Raimundo Magalhães Júnior, iria observar:

Surpreende, na vida de Alencar, a discrição acerca de seus problemas sentimentais e da sua vida conjugal. Se muito escreveu a respeito de si mesmo e de suas obras, quase não deu palavra sobre o modo pela qual conheceu aquela que seria sua esposa, como a cortejou e obteve, por fim, a sua mão (MAGALHÃES JÚNIOR, 1977).

O casamento tardio de Alencar é um importante momento de posicionamento do literato em relação à aristocracia e à burguesia financeira. Por isso deve ser interpretado não como um simples registro biográfico, mas como uma tomada de posição, um deslocamento para um campo social que sempre lhe fascinou.

O escritor já tivera uma forte inclinação por uma jovem da aristocracia do Império, Francisca Calmon Nogueira Vale da Gama, que mesmo incensada por ele nas suas crônicas “Ao correr da pena”, trocou-o por um nobre português.

É importante perceber que a decisão de trocar Alencar por um nobre português é atribuída à família da moça. É que o casamento nestes tempos já se transformara num grande e sério negócio. “A maior parte dos casamentos fazem-se independentemente do amor”, escreveu Machado de Assis em 1872 (TRIGO, 2001, p. 129), lembrando em seguida que, “nos casamentos de conveniência”, a civilização aliou “dois vocábulos inimigos”.

Inimigos ou não, era a praxe do tempo. Se no caso de Alencar ocorreu com certa espontaneidade por parte dos dois, teve certamente uma troca firme de interesses. Pela importância desta troca de interesses e por seu significado no intricado posicionamento de campo de Alencar vale uma descrição detalhada deste casamento.

Tudo começou quando Alencar, depois de ter escrito Diva, declarou-se esgotado e doente; tendo recebido conselhos médicos para evitar qualquer esforço intelectual, resolveu se hospedar no Hotel Bennett, no Alto da Tijuca, em busca de descanso e ares mais puros. Alencar andava pelo parque, contemplava a cascatinha e, por vezes, ia a cavalo até a Vista Chinesa. Thomas Cochrane e sua esposa, a brasileira Helena Augusta Cochrane, filha do Coronel Inácio José Nogueira da Gama e sobrinha do Marquês de Baependi, tinham uma grande mansão no alto da Tijuca.

Mesmo biógrafos poucos afeitos à análise destes aspectos, viram em Thomas Cochrane um interesse num encontro com Alencar. E no convite feito ao escritor para visitar sua mansão e conhecer a filha mais velha do segundo casamento de Helena Augusta – Georgiana, então com 18 anos –, havia algo mais que amizade desprendida.

Alencar foi à mansão, conheceu esposa e filhas e passou rapidamente a namorar a filha do casal. Obviamente, o escritor nunca explicitou qualquer jogo de interesses publicamente, mas seu livro Sonhos d’Ouro, é para alguns analistas, baseado neste romance do escritor com Georgiana. O personagem principal Ricardo é um advogado pobre que começa a lutar pela vida no Rio de Janeiro. Ricardo conhece a linda e caprichosa Guida, a quem encontra acidentalmente num passeio. A moça falava inglês corretamente e andava com uma governante inglesa.

Alencar descreve Ricardo como um trabalhador infatigável, com amor pela literatura mais do que por sua profissão de advogado:

Ricardo bem sentia que não tinha real vocação para a profissão forense; a aridez desses estudos, que os rábulas costumam amenizar com desbragadas verrinas, não se conforma por certo à sua inteligência brilhante, colorida por uma imaginação de artista. Mas o mancebo, não obstante, aceitava essa carreira como dever, pela impossibilidade de escolher outra que lhe proporcionasse os maiôs de subsistência e os recursos para manter sua família, que se achava em circunstâncias precárias. (ALENCAR, 1959, p. 788).

Muitos outros detalhes mostram que o autor fez uma novela à clef, um auto- retrato. No romance há mesmo um amigo dos tempos dos bancos universitários que lhe oferecera para obter alguma colaboração nos jornais da Corte, exatamente como Francisco Otaviano fez como Alencar. O biógrafo Magalhães Júnior encontrou as letras do nome Ricardo, todas tiradas de Martiniano de Alencar, e depois afirma que a história é mesmo de José de Alencar:

[...] [a] história do advogado pobre, atraído e fascinado pela moça rica, de educação européia e modos desembaraçados, mas hesitando em casar-se com ela, um tanto por orgulho e um tanto, ainda, por medo de ser acusado de ter feito um casamento de interesse (MAGALHÃES JÚNIOR, 1977, p.175).

Em Sonhos d’Ouro, Ricardo e seu amigo Nogueira falam sobre a questão do casamento e dos interesses envolvidos:

Só lhe falta um casamento rico, para coroar sua rápida fortuna. O casamento rico é em verdade um achado da maior importância. Se o indivíduo não tem pátria, nem família, dá-lhe uma apresentável; se já possuiu esses trastes, ficam-lhe duas, o que não é para desprezar. São duas amarras, lá e cá [...]. (ALENCAR, 1959, p. 775).

De fato, ao casar-se Alencar tinha uma carreira fulminante: cronista, diretor de jornal da corte, autor de romances e peças de sucesso, consultor jurídico de Ministério, conselheiro do Império e deputado geral. Faltava-lhe entrar diretamente para a aristocracia e garantir-se numa família financeiramente rica. Isto o casamento o fez num passe de mágica, como era hábito à época.

O curioso é como se para conseguir a posição de poder no campo político, Alencar, depois do insucesso da primeira eleição ao lado dos liberais, não hesita em trocar de lado aderindo para o resto da vida aos conservadores. O casamento foi uma segunda traição familiar, pois sua esposa era prima em segundo grau do famoso Almirante Thomas Cochrane, Marquês do Maranhão, o mesmo que pôs a prêmio, e conseguiu, a cabeça do tio de Alencar, o revolucionário Tristão Gonçalves de Alencar Araripe.

A biografia tradicional faz aqui um estudo ideográfico do caso particular “José de Alencar” e ignora quase completamente o esforço para inserir a obra e o autor num sistema de relações. No entanto, é preciso voltar a relacioná-lo com a classe dos fatos que estruturam sua trajetória sociologicamente.

Não é por acaso que na formatação clássica do projeto de Alencar há uma dupla determinação: a criação de um indivíduo criativo, esforçado, decidido a ser grande, digno de obter uma atenção reverencial e também o político que busca ser verdadeiro e fracassa diante da realidade cruel. Tal campo ideológico na verdade expressa, embora de forma transfigurada a posição de Alencar no campo literário, onde ali ele é o grande pai, o vendedor de livros, o fundador de uma nação literária, e a posição do campo literário em relação ao campo de poder, onde a fração intelectual e artística se encontra inteiramente dominada.

A busca da autonomia aumentaria o interesse pela persona do escritor e do artista, mas exigiria um completo sistema formado por crítica, instância de prestígio, autonomia financeira, autonomia intelectual, entre outros.

A análise tradicional que identifica as condições sociais que produzem singularidade de um autor e sua obra e as determinações de classe também não enxerga as mudanças de posições dentro do campo literário, e este dentro do campo maior de poder. Por isso mesmo, as biografias mais contemporâneas de Alencar que querem integrar a questão da classe social, mediadas pela estrutura familiar e pelas experiências biográficas, não encontram explicações para os vaivéns de Alencar.

A simples ascensão social, e luta de um pequeno burguês para subir, teriam permitido sua chegada ao poder (o que efetivamente aconteceu) sem os efetivos reveses a que Alencar se submeteu e ao seu melancólico final de vida (que tanto impressionou a Machado). A análise, portanto, não é de que maneira Alencar chegou a ser o que é, mas quais foram os condicionantes individuais (capital social, herança, domínio da palavra falada, domínio de boas maneiras, o habitus – para usar o conceito de Bourdieu) dos escritores que formavam o campo literário nesta época para poder ocupar as posições pré-dispostas para eles e para poder adotar, em consequência, as tomadas de posições estéticas e ideológicas ligadas objetivamente às posições ocupadas. E mais: de que maneira os intelectuais e literatos se portavam em relação ao poder?

O casamento de Alencar é nestes termos uma tomada de posição em relação ao campo de poder, a conquista de uma honorabilidade aristocrática (embora não tão garantidora de poder quanto seria o casamento com uma aristocrata brasileira íntima da corte) e uma estabilidade financeira burguesa (garantida pelo suporte de um grande burguês inglês).

Alencar, neste caso, já chegara ao máximo de poder dentro dos espaços sociais dos literatos, e como produtor de bens simbólicos, neste momento ele entra no jogo dos conflitos entre facções da classe dominante. Não esqueçamos de que os escritores e artistas de praticamente todo o mundo (inclusive na França onde este campo se autonomizaria bem mais rapidamente) eram uma fração da classe dominante a partir do Romantismo, contudo, trata-se de

[...] uma fração dominada da classe dominante que em razão de sua posição estruturalmente ambígua está necessariamente obrigada a manter uma relação ambivalente tanto com as frações dominantes da classe dominante (os burgueses), como com as classes dominadas (o povo), e a fazer-se uma imagem ambígua da própria função social, mas exatamente, dado que o mercado literário e artístico, com suas sanções anônimas, imprevisíveis e mutáveis, pode criar disparidades sem precedentes entre os intelectuais, estes estão obrigados a identificar-se, mais ou menos claramente, em função de que realmente são, quer dizer, produtores de mercadorias. Desta relação sua com o mercado depende a imagem que os escritores e artistas fazem diante do grande público [...]. (BOURDIEU, 1983, p. 23).

É importante ressaltar neste caso da tomada de posição pelo casamento, que Alencar ao casar-se com Georgiana Cochrane faz uma adesão a um representante da burguesia financeira internacional que ele tratara até então com profundo desprezo. Basta lembrar o episódio de sua saída do escritório do “Correio Mercantil”, de seu amigo Francisco Otaviano.

Nos anos de 1855, José de Alencar lutou “com unhas e dentes” através de sua coluna “Ao correr da pena” contra os privilégios concedidos às chamadas “sociedades em comanditas” (surgidas a partir da criação do Código Comercial de 1850). Eram empresas que obtinham concessões para construção de estradas de ferro, navegação a vapor, bondes urbanos, e até bancos de crédito, e que a partir daí atuavam com captação de recursos na bolsa (então denominada Praça do Comércio). O escritor cearense chamava estas concessões de “a grande loteria do caminho de ferro”.

Alencar inicia sua crítica moderadamente, ao reconhecer que:

Este espírito de empresa e atividade comercial prometem sem dúvida alguns grandes resultados para o país; porém é necessário que o governo saiba corrigi-lo e aplicá-los para o país; porém é necessário que o governo saiba dirigi-lo e aplicá-lo convenientemente; do contrário, teremos de sofrer males incalculáveis. (MAGALHÃES JÚNIOR, 1977, p. 51).

Com o passar do tempo, o escritor começa a ficar cada dia mais contrário a companhias criadas para o jogo nas bolsas e a conquista de concessões. Diz ele: “Nada hoje se faz senão por companhia. A iluminação a gás, as estradas, os açougues, o asseio público, a construção das ruas, tudo é promovido por este poderoso espírito de associação que agita atualmente a praça do Rio de Janeiro”. E começa a mostrar sua irritação com o próprio tipo do investidor, o burguês ligado ao novo setor industrial e financeiro que assusta os grandes proprietários de terra:

[...] se encontrardes por aí algum sujeitinho de chapéu rapado, de laço de gravata à banda, roendo as unhas, ou coçando a ponta da orelha, não penseis que é um poeta ou romancista à cata de uma rima ou de um desfecho para seu último romance. Nada! O tempo destas bagatelas já passou. Podeis apostar que o tal sujeitinho rumina o projeto de uma empresa gigantesca, e calcula na ponta dos dedos o ganho provável de uma companhia qualquer. E assim tudo o mais. Vê-se hoje pelos salões, pelas ruas a cada canto, certos indivíduos a segredarem, a trocarem palavras ininteligíveis e a falar à mezza voce uma linguagem incompreensível, cabalística. Um homem pouco experiente tomá-los-ia por carbonários ou membros de alguma sociedade invisível ou confraria secreta. Qual! São finórios que farejam a criação de uma companhia, e que tratam de se arranjarem para não ficarem sós, isto é, sem dinheiro. (apud MAGALHÃES JÚNIOR, 1977, p. 52).

Nesta mesma crônica, Alencar faz-se precursor das estatais:

[...] podia o Governo aproveitar em muitos outros objetos de serviço público o espírito de empresa e associação que tão rapidamente se desenvolveu em nosso comércio. [...] Por que, em vez de esperar que os interesses individuais especulem sobre a utilidade pública, não promove ele mesmo a criação das companhias que entende convenientes para o país?
(MAGALHÃES JÚNIOR, 1977, p. 53).

E mostra mesmo grande preocupação com os proletários:

Esta classe, pois, merece do governo alguma atenção; o que hoje é apenas carestia e vexame, se tornará em alguns anos miséria e penúria. É preciso, ao passo que o país se engrandece, prevenirmos a formação dessa classe proletária, dessa pobreza, que é a chaga e ao mesmo tempo a vergonha das sociedades européias. Apliquem-se os nossos espíritos econômicos a este estudo digno de uma grande inteligência e de um grande povo. Porque a Europa ainda não conseguiu chegar à solução deste grande problema social, não é razão para desanimarmos. Somos um país novo; o progresso espantoso da atualidade deve ter reservado alguma coisa para nós; o mundo velho eleva a indústria a um desenvolvimento admirável; talvez os segredos da ciência tenham de nos ser revelados na marcha da nossa própria sociedade. O que é verdade é que não devemos deixar de concorrer com as nossas forças para essa obra filantrópica da extinção da pobreza proletária. E isso não porque receemos tão cedo a existência deste cancro social, mas porque semelhante estudo deve-se guiar nos meios de prevenir os vexames e misérias por que pode passar a classe pobre no nosso país. (MAGALHÃES JÚNIOR, 1977, p. 53).

Os jornais estampavam neste ano matérias pagas a favor e contra privilégios outorgados pelo governo. O inglês Thomas Cochrane, seu futuro sogro, publicava em nome de um grupo de capitalistas chefiados por seu compatriota William Kennard, uma página de jornal lutando pelo privilégio de construir uma estrada de ferro. Cochrane se fixara no Brasil em 1829 e já a 4 de novembro de 1840 se torna detentor da primeira concessão para a construção da estrada de ferro do Rio a São Paulo, por um período de 80 anos. Por falta de início da obra a concessão foi considerada caduca em 1843, mas foi revalidada por insistência do ex-concessionário em 1849, vindo a ser de novo anulada por deliberação legislativa. Contudo, ao ser organizada a companhia, que Alencar inclusive atacará em suas crônicas, o Dr. Thomas Cochrane recebeu uma indenização de 30 mil libras do tesouro nacional.

A posição crítica de Alencar culminou com a famosa demissão do “Correio Mercantil” depois de atacar a lista dos subscritores das ações da Estada de Ferro Dom Pedro II (exatamente a de Thomas Cochrane, que viria a ser sogro do romancista).

Ao casar-se, Alencar se une a um grande beneficiário das concessões e não a um proprietário de terras. Esta nova reconversão do cearense significa que os apoios oligárquicos até então conquistados já lhe permitiam seguir um novo modelo de excelência disponível: em vez de grande mandarim do Império, graças a uma aliança por casamento com uma filha de alto dirigente da oligarquia imperial, a tranquilidade financeira de ter uma família ligada a um grande burguês inglês envolvido nas negociatas das concessões. Dominado nas relações de forças internas de poder em virtude da posição frágil que ocupa perante a oligarquia.

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Fonte:
PAULO SÉRGIO BESSA LINHARES: “O PROFETA E O CHOCOLATE DISPOSIÇÕES SOCIAIS E APETENCIAS NA TRAJETÓRIA DE JOSÉ DE ALENCAR”. (ORIENTADORA: PROF.ª DRA.ª IRLYS ALENCAR FIRMO BARREIRA. Tese submetida ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFC – Universidade Federal do Ceará, como parte dos requisitos para a obtenção do grau de Doutor em Sociologia). Fortaleza, 2010.

Nota
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O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
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Disponível digitalmente no site: Domínio Público

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