Alencar e a Língua Literária



A língua é a nacionalidade do pensamento como a pátria é a nacionalidade do povo. (José de Alencar)

O jornalista e escritor Alencar vai conturbar o Império com a sua verve polêmica na defesa de um estilo brasileiro na literatura, coisa que portugueses e alguns dos nossos literatos não admitiam, por não verem aqui um passado a que recorrer, ou por não se sentirem estes tomados do espírito nacionalista, fruto da independência política do Brasil, preferindo a cômoda situação de servis escritores na imitação dos clássicos portugueses. “Gente retrógrada” (...) que a pretexto de classismo aparece em todos os tempos e entre todos os povos, defendendo o passado contra o presente” (Diva, v. 1, p. 559).

Os ensaios literários de Alencar, particularmente A Confederação dos Tamoios, Questão Filológica e O Nosso Cancioneiro, os “póscritos” e prefácios passam a ser escritos na intenção de acabar com essa letargia e traçar uma estética direcionada à formação de uma literatura eminentemente brasileira, escrita ao sabor de modos diversos de elocução do brasileiro e enriquecida de novas palavras. Sem a intenção de confronto, mas com ele, se necessário, Alencar teceu com este expediente a sua estética, surgida da necessidade de mostrar que algo novo em matéria de língua acontecia no país. Neste sentido, encontramos em Melo, um estudioso da linguagem alencariana, o depoimento: não raro um pensador acerta na intuição mas é inaceitável na dialética. (...) quer-nos parecer que algo semelhante se dá com Alencar. Sentiu ele que chegado era o momento psicológico de se criar uma literatura nacional e que essa literatura só se podia manifestar num estilo nacional. Artista que era e de força, meteu ombros à tarefa. Foi tachado de inovador, sofreu ataques veementes e teve de sustentar forte campanha de desmoralização. Picado no orgulho, defendeu-se, fez pendão do labéu, e pôs-se em campo a batalhar por suas idéias e posição. ‘Assumiu atitude dialética para justificar sua intuição. Daí certas demasias. Dado isso, ser-nos-á mais importante e elucidativo examinar o que Alencar fez em matéria de língua do que saber o que ele disse. O estudo da linguagem alencarina é que é decisivo. E realizando-o, verificaremos que ela confirma a intuição de Alencar e lhe apara os excessos dialéticos (apud Elia, 1975:36).

O pós-escrito à 2a edição de Iracema (v. 3, p. 308-320) vem dividido em três partes, nas quais o romancista explicita a sua estética e defende algumas teorias gramaticais que tem por crenças, por outros consideradas controversas; mas que hoje se creditam à falta de estudos avançados da ciência da linguagem àquela época.

I – Introdução: Alencar tece considerações sobre gramática, prosódia, “muito mais suave no nosso dialeto”, e ortografia;

II – Resposta a Pinheiro Chagas, que o acusa de “incorreto”, “desleixado”, “inovador”, por não se sujeitar à gramática, “um padrão inalterável, a que o escritor se há de submeter rigorosamente. Aqui, Alencar reclama para si o direito de inovar, como o fizeram Beethoven, Rossini, Fídias, Rafael, Praxíteles, Miguel Ângelo e tantos outros que tiveram o poder de “criar uma escola, de abrir novos horizontes à sua arte, de revelar formas antes desconhecidas” (op. cit., p.313) e argumenta que Pinheiro Chagas interpretou Müller equivocadamente, cuja lição sustenta que “só o povo tem a força de transformar uma língua, modificar sua índole, criar novas formas de dizer”. Segundo Alencar, Pinheiro Chagas reduz os escritores, os “obreiros da palavra”, a simples condição dos mecânicos “mais ou menos destros no manejo de um instrumento bruto”(op. cit.); questiona também a controversa interpretação do literato português que “os sábios enriquecem um idioma”, mas ao mesmo tempo nega esse direito a ele, Alencar, e vê nos escritores brasileiros “crime de insurreição contra a gramática de nossa língua comum (...) possuídos da mania de tornar o brasileiro uma língua diferente do velho português!”(op. cit). Argumenta que há um tendência incontestável para a transformação profunda do português do Brasil, “mas não para a formação de uma nova língua”, e acrescenta que o crítico, para ser coerente, deveria buscar o “germe dessa transformação e seu fomento no espírito popular, no falar do povo(op. cit., p. 314). Alencar apela para a teoria do filólogo Webster a fim de mostrar que a tendência de mudança se manifesta principalmente quando dois povos distintos estão separados pela distância territorial, que contribui para a linguagem de cada um desses povos começar a divergir. Em seguida, nega a acusação de afrancesar o discurso, mas assegura que o procedimento era usual entre os clássicos “sempre que o pronome possessivo o tornava escusado, e que afrancesamos o discurso, fazendo em geral preceder o pronome, quando em português de bom cunho a regra é pospor o pronome.

Tal regra não passa de arbítrio que sem fundamento algum se arrogam certos gramáticos. Pelo mecanismo primitivo da língua, como pela melhor lição dos bons escritores, a regra a respeito da colocação do pronome e de todas as partes da oração é a clareza e elegância, eufonia e fidelidade na reprodução do pensamento.
Em latim coloca-se ao gosto do escritor e segundo aquela regra (...) (op. cit.).

Alencar acusa ocorrências em que a eufonia pede a antecipação do pronome, como em “se recolhem só”, para evitar o sibilo desagradável de “se só”. Outras vezes, alega, não é a cacofonia, mas o acento tônico que determina a colocação da partícula, conforme o ritmo da frase exige o repouso antes ou depois. Sustenta que na frase “Tu não me sabes querer”, o pronome não só antepõe-se ao infinito de que é complemento como ao indicativo: o rigor da ordem gramatical exigiria tu não sabes querer-me; mas a frase não seria tão cadente e expressiva.

Trata ainda de algumas palavras que trazem “a mácula de francesismo”, como brusco, que cita como ocorrência em Fr. Francisco de S. Luís, e flanco: usei dela para designar a ilharga, porque em minha opinião não temos vocábulo que exprima a idéia com tanta propriedade e energia. Ilharga é muito restrita, refere-se ao quadril; lado é muito genérico aplica-se a toda face obliqúe de qualquer objeto. O flanco é o lado do homem, ou do animal; nesta acepção foi adotado do alemão flanke pelo italiano, espanhol ou francês. Tratando-se de guerreiros, essa palavra ainda mais adequada me pareceu pelo seu uso na arte da estratégia (op. cit., p. 317).

Ainda nesta parte, manifesta a intenção de no futuro preocupar-se com assuntos de ordem gramatical “em uma pequena obra”, na qual se propõe a fazer “um estudo sobre a índole da língua portuguesa, seu desenvolvimento e futuro, considerando especialmente a tão cansada questão do estilo clássico(op. cit., 312). Posteriormente, Alencar rabiscou alguns itens sobre o assunto, mas mesmo sem escrever a sua gramática, o que havia elaborado sobre a língua do Brasil já fora suficiente para ser considerado como um escritor “separatista”.

III – Este item traz uma resposta à censura de Henriques Mendes Leal ao “estilo frouxo e desleixado, especialmente a propósito do Guarani”, e aborda praticamente os mesmos assuntos tratados com Pinheiro Machado. Alencar argumenta em defesa do seu estilo que poucos dão tanta importância à forma do que ele, pois entende que “o estilo é também uma arte plástica, por ventura muito superior a qualquer das outras destinadas à revelação do belo”. Discorre sobre sua preferência por um estilo mais leve e com frase mais simples, assim, aqueles que censuram minha maneira de escrever, saberão que não provém ela, mercê de Deus, da ignorância dos clássicos, mas de uma convicção profunda a respeito da decadência daquela escola” (op., cit., 319). Para melhor destacar a diferença entre o seu estilo brasileiro e o estilo clássico, sustenta sua resposta com o texto de O Guarani, objeto da censura de Henriques Leal:

A tarde ia morrendo.
O sol declinava no horizonte se deitando sobre as grandes florestas, que iluminava com seus últimos raios.
A luz frouxa e suave do ocaso, deslizando pela verde alcatifa, enrolava-se em ondas de púrpura e ouro sobre a folhagem das árvores. Os espinheiros silvestres desatavam as flores alvas e delicadas, e o ouricuri abria as tenras palmas para receber no cálice o orvalho da noite, etc.

A seguir, coteja o texto “vestido à moda clássica”, alinhavado por conjunções “que teciam a frase dos autores clássicos, e serviam de elos à longa série de orações amontoadas em um só período. Argumenta que o processo adotado pelos clássicos, longe de robustecer e dar vigor ao texto, “relaxa a frase, tornando o pensamento difuso e lânguido, e imprime certo caráter pesado, monótono, e prolixo, que tem sua beleza histórica, sem dúvida, mas está bem longe de prestar-se ao perfeito colorido da idéia”. O seu estilo, ao contrário, tira efeito aos traços largos do painel, e cita o trato literário que dá ao ocaso do sol, à “flutuação da luz”, à sombra, às “flores noturnas que se abrem, e que à moda dos clássicos, a redação de O Guarani perderia toda esta dinâmica que ele impõe ao texto, e passaria a ser: E porque ia a tarde morrendo e o sol declinava no horizonte e deitava-se sobre as grandes florestas que iluminavam seus últimos raios, à luz frouxa e suave do ocaso, que deslizava pela verde folhagem das árvores; e ao ponto que desatavam os pinheiros silvestres as suas flores alvas e delicadas, abria o ouricuri as tenras palmas, para que recebesse no seu cálice o orvalho da noite.

Principalmente nos pós-escritos à segunda edição de Iracema, Diva, e no ensaio O Nosso Cancioneiro, principia-se a notar o esteta Alencar a jogar com o crítico implacável, que discute sobre gramática, aponta caminhos, refuta a pecha de incorreto, separatista, e vai longe para caracterizar o seu conceito de língua literária, o seu processo criador, “o cumprimento de uma alta missão social” com a literatura, uma profissão de fé da qual não abrirá mão: Todo homem, orador, escritor ou poeta, todo homem que usa da palavra, não como um meio de comunicar as suas idéias, mas como um instrumento de trabalho; todo aquele que fala ou escreve, não por uma necessidade da vida, mas sim para cumprir uma alta missão social; todo aquele que faz da linguagem, não um prazer, mas uma bela e nobre profissão, deve estudar e conhecer a fundo a força, e os recursos desse elemento de sua atividade. A palavra tem uma arte e uma ciência: como ciência, ela exprime o pensamento com toda a sua fidelidade e singeleza; como arte, reveste a idéia de todos os relevos, de todas as graças e de todas as formas necessárias para fascinar o espírito (Ensaios, v.4, p. 889-890).

No cumprimento da missão de esteta, Alencar não se empolga como um demolidor, mas quer apressar o sonolento desabrochar da literatura brasileira, e o faz no “Póscrito” da 2a. edição de Diva (v. 1, p. 559-563), que ressoa e reforça a idéia de um manifesto de independência literária e lingüística. Amparado no princípio da teoria evolucionista de que as línguas nascem, modificam-se e morrem, revolta-se contra a estagnação lingüística e prega que “não se pode imobilizar a língua, quando o espírito de que é ela a expressão, varia com os séculos de aspirações e de hábitos”, e que novas maneiras de dizer devem ser aceitas, sob pena de vê-la aniquilada. Sem conhecer os ensinamentos de Saussure, que só aparecem no início do século XX, Alencar adianta-se e faz a diferença entre a “linguagem” literária e a linguagem comum, como forma e expressão: A linguagem literária, escolhida, limada e suave, não é por certo a linguagem cediça e comum, que se fala diariamente e basta para a rápida permuta de idéias: a primeira é uma arte, a segunda é simples mister. Mas essa diferença se dá unicamente na forma e expressão; na substância, a linguagem há de ser a mesma, para que o escritor possa exprimir as idéias de seu tempo, e o público possa compreender o livro que se lhe oferece (op. cit).

Alencar sente-se na obrigação de convocar os escritores nacionais para que se unam a ele nesta missão, e aconselha que, se quiserem ser entendidos pelo povo, devem falar e escrever na língua do povo, com os termos ou locuções que ele entende e que traduzam os usos e sentimentos, pois o povo deve exercer o seuinauferível” direito de imprimir o cunho de sua individualidade, abrasileirando o instrumento das idéias no vocabulário e na sintaxe da língua. Reclama para o escritor brasileiro o direito de criar termos novos, “necessários para exprimir os inventos recentes”, e a assimilação de outros que, “embora oriundos de línguas diversas, sejam indispensáveis”; exorta-os a que explorem “as próprias fontes, veios preciosos onde talvez ficaram esquecidas muitas pedras finas, essa é a missão das línguas cultas e seu verdadeiro classismo”. Recomenda a aceitação de novas maneiras de dizer, “graciosas e elegantes”, que não repugnem o gênio da língua, e argumenta que reconhece o valor histórico do estilo quinhentista, e que este deve apenas servir de fonte, “mas não exclusiva”, para escritor aperfeiçoar o seu estilo. Reformula o conceito de “clássico”, e compromete-se a rejeitar toda palavra ou frase que se não recomende pela sua utilidade ou beleza de sua obra, a par da sua afinidade com a língua portuguesa e de sua correspondência com os usos e costumes da atualidade; porque são estas as condições que constituem o verdadeiro classismo, e não o fato de achar-se a ocução escrita em algum dos velhos autores portugueses (op. cit.).

A lição de Alencar em favor dos estrangeirismos é bastante atual, quando se discute o Projeto de Lei nº 1676, de l999, “Culta, bela e ultrajada”, do deputado Aldo Rebelo, em defesa da língua portuguesa (disponível em http://www.camara.gov.br/sileg/integras/153443.pdf), e que visa a proibir palavras estrangeiras em anúncios publicitários, mídia, documentos oficiais, letreiros de lojas e restaurantes, na percepção de que a língua portuguesa está sendo ultrajada pelo ataque de estrangeirismos. Este Projeto objetiva enfrentar a “desnacionalização lingüística”, eliminar a “invasão impertinente e insidiosa” dos estrangeirismos, “uma verdadeira descaracterização da língua portuguesa”, uma “invasão indiscriminada e desnecessária”, como “holding”, “recall”, “franchise””, “coffee-break”, “self-service” – e de “aportuguesamentos de gosto duvidoso”, como “startar”, “printar”, “blindar”, “atachar”, “database”.

Consultado, o filólogo Evanildo Bechara (Revista Veja, 26-12-2007, p. 86) comenta que o projeto é inviável, pois a história mostra que palavras de outras línguas são absorvidas pelo idioma, passam a ampliar o vocabulário, evoluem, ficam mais ricas: “O projeto do deputado Rebelo está fadado ao fracasso porque quem manda nos rumos do idioma é a língua falada. Já passou a época em que o estrangeirismo era considerado um invasor. Hoje, sabe-se que ele enriquece o léxico”.

Alencar não muda de tom no prefácio de Sonhos d’Ouro (v. 1, p. 692-702), que recebeu o sugestivo nome de Bênção Paterna, quando legisla pelo direito de uma literatura própria para o Brasil, “uma grande questão, que por aí está mal intrincada e de todo ponto desnorteada” por parte dos portugueses e dos “oráculos de cá”; “esses querem que tenhamos uma literatura nossa, mas é aquela que existia em Portugal antes da descoberta do Brasil”. Defende-se da atuação dos críticos e toma para si o propósito de dividir “o período orgânico” da história da literatura brasileira em três, sendo os dois primeiros relativos à fase colonial: o primitivo ou aborígene, que trazem “lendas e mitos da terra selvagem e cultivada”, a qual pertence Iracema; o histórico, do período colonial à Independência, quando se estabeleceu “o consórcio do povo invasor com a terra americana (...), a gestação lenta do povo americano, que devia sair da estirpe lusa, para continuar no novo mundo as gloriosas tradições de seu progenitor, no qual se encontram O Guarani e As Minas de Prata; o terceiro, “a infância” da literatura brasileira, nascida com a independência política e segue aguardando “escritores que lhe dêem os últimos traços e formem o verdadeiro gosto nacional, fazendo calar as pretensões hoje tão acesas, de nos recolonizarem pela alma e pelo coração, já que não o podem pelo braço”.

Ao encerrar este prefácio, consagra o direito que têm os autores brasileiros de utilizarem-se de um estilo próprio na língua, porque há muito ele já fez a sua opção, e da qual não arredará pé: “Censurem, piquem ou calem-se como lhes aprouver. Não alcançarão jamais que eu escreva neste meu Brasil coisa que pareça vinda em conserva de outra banda, como a fruta que nos mandam em lata.

Talvez inspirado nas polêmicas envolvendo o escritor cearense, que não foram poucas, em nota preliminar ao romance Iracema, Machado de Assis (apud Alencar, v.3, p. 225-226) chama a atenção para o fato de que no Brasil era coisa antiga, controversa e apaixonante a discussão literária, ora “travada no gabinete, na rua, e nas salas (...) uma espécie de steeple-chase, que se organiza de quando em quando. Observa que a escola americana sempre teve adversários, levando-os a considerá-la “uma aberração selvagem, uma distração sem graça, sem gravidade”, e que os opositores creditavam esse juízo aos maus poetas, por se limitarem a explorar elementos poéticos do vocabulário indígena e a rimar palavras sem deixar uma contribuição efetiva para a literatura:

Os críticos dessa poesia, confundiram no mesmo desdém os criadores e os imitadores, e cuidaram desacreditar a idéia fulminando os intérpretes incapazes. Condenavam-na também por supor que “a vida indígena seria, de futuro, a tela exclusiva da poesia brasileira, e nisso erravam “pois não podia entrar na idéia dos criadores obrigar a musa nacional a ir buscar todas as suas inspirações no estudo das crônicas e da língua primitiva”. Esse estudo era um dos modos de exercer a poesia nacional; mas, fora dele, não está aí a própria natureza, opulenta, fulgurante, vivaz, atraindo os olhos dos poetas, e produzindo páginas como as de Porto Alegre e Bernardo Guimarães?
Felizmente, o tempo vai esclarecendo os ânimos: a poesia dos caboclos está completamente nobilitada; os rimadores de palavras já não podem conseguir o descrédito da idéia, que venceu com o autor de I-Juca-Pirama, e acaba de vencer com o autor de Iracema.

Os adeptos do purismo, na intenção de resistir ao avanço que as idéias de Alencar assumem, e partindo do receio de que a sua pretensão era criar uma língua diferente da língua portuguesa, fundam em 1876 a Sociedade Filológica do Rio de Janeiro, que pouco durou, com a finalidade de se fazer voltar a escrever como no século XVI para fixar a língua portuguesa, por entenderem que a língua em uso no Brasil soava cheia de defeitos, com termos novos e injustificáveis, construções mais diretas, extrema liberdade na colocação dos pronomes, entre tantos outros defeitos.

Essa disputa deixará tacitamente acordado uma espécie de bilingüismos na língua portuguesa do Brasil: uma língua portuguesa para a escrita, apoiada na gramática normativa, e uma variante dialetal falada em formação, reconhecendo-se já aí que na língua escrita se insinua a modalidade brasileira. Essa variante já produzia literatura, e conseqüentemente, já era língua literária. Alencar (Iracema, v.3, p.309-320), não só relacionou “língua literária” e “fala”, mas as reconheceu por “arte literária”, “escolhida”, “limada”, “grave”; enquanto a outra, a “comum que se fala diariamente”, não passava, no seu entender, de “um simples mister”, e não foi objeto de suas cogitações para avançar na questão de uma forma brasileira para a literatura.

No estudo que trata do assunto, Câmara Júnior (1972:199-200) analisa que os românticos não souberam identificar as três partes do problema para uma norma literária do Brasil:

1 – a questão da relação da língua literária com a língua oral cotidiana;
2 – a tendência conservadora da língua literária, particularmente no caso do português, “em que o passado representa um período “clássico”, aureolado por uma grandeza política, hoje desaparecida, e prestigiada por uma literatura brilhante;
3 – o processo de adaptação de uma língua de uma “sociedade européia, etnicamente fechada, com a cultura consolidada há muitos séculos, a um novo ambiente geográfico e social, etnicamente aberto”, a que teve de se adaptar aos poucos para resistir e continuar.

No Brasil, a resistência à rígida atitude normalizante, que paralelamente se encontra em alguns escritores e teoristas, também não procurou, em face daqueles a que se opunha, distinguir os três aspectos que se emaranharam no problema de uma norma para a nossa língua literária. José de Alencar, por exemplo, cuja posição revolucionária marcou época, ora apela para o exemplo de Almeida Garrett, desobediente também em Portugal aos cânones clássicos, ora invoca a necessidade de uma língua própria para o habitat físico e social brasileiro, ora nos fala de um apuramento da língua cotidiana,“que é simples mister (op. cit.).

A partir da intervenção de Alencar se criará um conflito maior entre as várias facções que se formaram: os legitimistas, partidários da língua portuguesa; os dialetistas, que entendiam ser dialeto a língua falada no Brasil; e os separatistas, com destaque para Alencar, que também figurava entre os dialetistas, com uma proposta de língua do Brasil.

Araripe Júnior colheu um comentário de Aluízio Azevedo considerando injustas as acusações a Alencar de “hóspede na língua em que escrevia”, no qual defende que o romancista utilizava-se do “dialeto brasileiro perfeitamente, admiravelmente, e que seu nome ficaria para a história como uma das maiores autoridades do “neoportuguês”: Foi ele o primeiro que se abalançou a dizer que os lábios que chupavam a mangaba e o caju não podiam pronunciar palavras pelo mesmo feitio, nem exprimir-se do mesmo modo que os lábios que premiam a maçã e a uva alentejana. (...) A semente plantada pelo autor do Guarani frutificou; e, atualmente, quer entre gramáticos, quer entre literatos, romancistas e poetas, nota-se uma salutar tendência para esse Ipiranga das letras (apud Pinto, v.1, 1978:231).

O pré-Modernista Monteiro Lobato também tem a sua atenção centrada na dualidade língua popular - língua culta, e entendeu que, em parte, esse contraste era o responsável pelo fato dos autores brasileiros serem pouco lidos. Considerava que a literatura seria mais autêntica se escrita em língua que o povo entendesse, a língua “brasileira”. Nesta língua, o escritor deveria encontrar uma adequação entre a língua literária e a língua do povo e rejeitar, conseqüentemente, a norma culta.

Tanto as idéias de Alencar quanto as de Monteiro Lobato serão resolvidas no Movimento Modernista, com as propostas de Andrade. Mas foi com a geração dos românticos, particularmente com Alencar, naquele “simples mister” da fala cotidiana, no “emaranhado” que os românticos não souberam equacionar, segundo Câmara Júnior, que se começou a consolidar no Brasil uma norma lingüística escrita diferenciada da portuguesa, mas não dela desvinculada, e em cuja pauta não se pode esquecer a questão do estilo, reclamada por Alencar e aproveitada pelos modernistas para cunhar a literatura brasileira.

Os escritores românticos do Brasil, ao renovarem os usos lingüísticos aproximando-o do coloquialismo, promoveram a reabilitação da língua popular, por lhes parecer mais representativa da expressão do sentimento nacional, dando início à criação de uma literatura despojada e independente em relação à língua e à literatura de Portugal.

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Fonte:
ARILDA RIANI: “LÍNGUA PORTUGUESA / LÍNGUA BRASILEIRA: ATITUDES E CRENÇAS DE JOSÉ DE ALENCAR E MÁRIO DE ANDRADE”. (Tese apresentada à Coordenação da Pós-graduação em Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro como requisito para obtenção do título de Doutora em Língua Portuguesa. Área de Concentração: Língua Portuguesa. Orientador: Prof. Dr. André Crim Valente). Rio de Janeiro, 2008.

Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Disponível digitalmente no site: Domínio Público

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